Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
179/13.1TBPTB.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOA COLECTIVA
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Sempre que não se verifique acordo entre os sócios gerentes de uma sociedade por quotas sobre a apresentação desta à insolvência, pode cada um deles decidir por tal apresentação e fazê-lo em representação da sociedade.
II - O princípio da cooperação previsto no artigo 7º do Código de Processo Civil, é um princípio transversal a todo e qualquer processo, não se encontrando razão válida que justifique a sua inaplicabilidade ao processo de Insolvência e de Recuperação de Empresas, nomeadamente quando está em causa a junção de documentos aos quais não tem acesso o sócio gerente que decidiu pela apresentação da sociedade à insolvência.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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“A…, Ldª” veio apresentar-se à insolvência pelos fundamentos que constam da respectiva petição inicial.
Recebida esta, foi proferido despacho que ordenou a notificação da Requerente para vir ao processo regularizar o mandato conferido ao signatário daquela peça, pois que a procuração apenas se encontra assinada por um dos sócios quando é certo que, de acordo com o respectivo pacto, a sociedade se obriga com a assinatura dos dois sócios.
Para além disso, ordenou ainda que a Requerente desse cabal cumprimento ao preceituado na alínea a) do nº 1 do artigo 24º do CIRE, relativamente às datas de constituição e vencimento dos créditos, devendo fazê-lo por documento anexo à petição inicial e bem assim dar cumprimento ao preceituado na alínea b) do nº 2 do artigo 23º e nas alíneas e), f) e i) do nº 1 do artigo 24º do CIRE.
Uma vez que não foi pela Requerente dado integral cumprimento ao decidido, apenas tendo sido junta lista dos maiores credores conhecidos da Requerente/apresentante elencados por ordem alfabética, que requereu ainda, uma vez que, face à conflitualidade existente entre o sócio gerente que tomou a iniciativa da apresentação e o sócio gerente B… se lhe torna impossível dar cumprimento ao preceituado na alínea b), nº 2 do artigo 23º do CIRE e nas alíneas e), f) e i) do artigo 24º do mesmo diploma, que tais elementos fossem ser solicitadas a sociedade C…, com sede social no …, …, Ponte da Barca, que realiza a contabilidade da sociedade insolvente, permanecendo, pois, por juntar todos os demais elementos, foi o requerimento indeferido liminarmente.
Deste despacho apelou a Requerente, que conclui a sua alegação da seguinte forma:
- atento ao disposto nos artigos 19º, 6º nº 1, a), 18º, nº 1 e 186º, nº 3 a) do CIRE, a recorrente entende que o sócio gerente B…, que possui a maior parte do capital social da sociedade insolvente (60%) pode apresentar a recorrente a insolvência;
- embora o pacto social estabeleça que é necessário a assinatura de ambos sócios gerentes para vincular a recorrente, deve-se entender que o sócio gerente B… possui legitimidade por si só para apresentar a referida sociedade a insolvência (artigo 19º do CIRE) pois que se verificam os pressupostos previstos no CIRE para apresentação da mesma a insolvência;
- o sócio gerente B… não consegue obter a concordância do outro sócio gerente, D… para apresentação à insolvência da sociedade “A…, Ldª”, que com a sua teimosia está a agravar a situação já delicada da sociedade insolvente;
- a situação deficitária da recorrente é grave e a referida sociedade só está aberta ao público devido aos esforços financeiros realizados pelos sócios da mesma, que realizaram diversos empréstimos de dinheiro à referida sociedade;
- se esta situação se mantiver por muito mais tempo, colocará em risco a sobrevivência do sócio gerente B…, da sua família, dos outros sócios, empregados e credores;
- caso o sócio gerente B… não actuasse da forma como actuou nos presentes autos, uma posterior apresentação à insolvência da sociedade “A…, Ldª”, pode ser declarada culposa por não se ter sido cumprido os prazos para apresentação obrigatória à insolvência previstos no CIRE, com as consequências negativas que isto pode acarretar ao referido administrador;
- a apresentação tardia a insolvência ainda pode causar enormes prejuízos aos credores sociais que continuam a trabalhar com a sociedade, pois desconhecem que a mesma se encontra em uma situação de insolvência técnica;
- situação essa que o legislador quis acautelar com a criação da legislação que regulou o processo de insolvência;
- salvo o respeito por melhor opinião, a recorrente entende que não existe insuficiência de procuração ou irregularidade de mandato nos presentes autos;
- em relação a questão da falta de junção aos autos dos documentos que foram aludidos no despacho recorrido e motivo alegado pelo Tribunal a quo para realizar o indeferimento liminar da pretensão da recorrente, cabe dizer que o sócio gerente B… não está a exercer de facto a administração da sociedade insolvente;
- pelo que não é possível ao referido sócio gerente dar cumprimento ao preceituado na alínea b), nº 2 do artigo 23º do CIRE e nas alíneas e), f) e i) do artigo 24º do CIRE, conforme convite realizado pelo Tribunal a quo no despacho proferido em 20 de Junho de 2013, devido às más relações com outro sócio gerente D…, que de facto está a exercer sozinho a administração da sociedade insolvente;
- devido a essa situação de enorme conflituosidade, o sócio gerente B… da recorrente entende que apenas através do Tribunal a quo seria possível recolher as informações necessárias para instrução do presente processo de insolvência;
- as referidas informações deveriam ser solicitadas pelo Tribunal a quo a sociedade C…, com sede social no …, …, Ponte da Barca, que realiza a contabilidade da sociedade insolvente.
- a recorrente entende que o Tribunal a quo não deve ter uma posição meramente passiva no âmbito do processo de insolvência, devendo promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção;
- o recorrente entende, assim, que o Tribunal a quo não esteve acertado ao dispor no despacho recorrido que não incumbe ao referido Tribunal realizar a solicitação da documentação da sociedade recorrida a empresa que realiza a sua contabilidade e em consequência indeferiu liminarmente a pretensão da recorrente pela falta de junção da referida documentação.
- foram violados os artigos 19º, 6º, nº 1, a), 18º, nº 1 e 186º, nº 3, a) do CIRE.
Termos em que revogando-se o despacho recorrido e substituindo-se por outro que aprecie os factos atrás descritos, será feita JUSTIÇA.
Não foram oferecidas contra alegações.
Cumpre-nos agora decidir.
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Delimitado como se encontra o objecto do recurso pelas conclusões da alegação – artigos 635º, n.º 4 e 640º do Código de Processo Civil – das apresentadas pela Apelante resulta que as seguintes as questões que nos são colocadas:
I. saber a quem compete o pedido de declaração de insolvência, sendo a devedora uma sociedade comercial por quotas;
II. decidir se ao tribunal está vedado suprir a falta de junção de documentos que a lei exige que o devedor junte com a petição inicial.
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I. Em relação à primeira das questões equacionadas, rege o disposto no artigo 19º do CIRE: “Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração ou, se não for o caso, a qualquer dos seus administradores”.
Comentando esta norma, escrevem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, página 126 e seguintes: “... o dever se apresentação comporta dois momentos ou etapas que cabe distinguir. Um respeita, sem dúvida, à realização das diligências operativas que se traduzem na abertura do processo, mediante a entrega do requerimento inicial e demais documentação apropriada. Outro, porém, lógica e cronologicamente anterior, reporta-se à decisão do recurso ao tribunal para dar satisfação ao dever legal”.
É neste segundo momento que se situa a questão que nos ocupa e logo a partir da letra da norma fica-se com a ideia de que o legislador atribui a competência para tomar a decisão de apresentação à insolvência ao órgão social a quem incumbe a administração da sociedade e, num segundo momento, a cada um dos titulares da administração.
Com efeito, como referem aqueles autores, “... se o sentido o sentido do artigo 19º se esgotasse na confiança aos administradores do poder para simplesmente praticar os actos necessários à concretização da apresentação , ele seria totalmente inútil” porquanto, quer a formação da vontade social, quer a representação da sociedade se encontram regulados no Código das Sociedades Comerciais.
Por outro lado, como impressivamente salientam, “Como se pode ver nos artigos 187º, n.ºs 3 e 4, 188º e 189º, no caso de falta de apresentação atempada, os administradores ficam pessoalmente sujeitos a sanções diversas de carácter pessoal e patrimonial. Ora, não pode razoavelmente aceitar-se que os administradores sejam penalizados pela falta de apresentação se, simultaneamente, eles não estivessem investidos da competência necessária para decidir a instauração da acção” sempre que se não verifique acordo entre os titulares do órgão incumbido da administração, como alegadamente é o caso dos autos.
Só colocando ao dispor de cada um dos titular da administração a possibilidade de decidirem da sua apresentação à insolvência é que lhe poderá ser censurada a sua não apresentação atempada.
Como assim, face ao disposto no artigo em análise, podia um só dos sócios gerentes da Requerente decidir pela sua apresentação à insolvência e fazê-lo em sua representação.
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II. Passando à questão de saber se ao tribunal está vedado suprir a falta de junção de documentos que a lei exige que o devedor junte com a petição inicial de apresentação à insolvência, valem também as considerações acabadas de expender a propósito da anterior questão.
É certo que o CIRE o não prevê expressamente, mas também o não proíbe e sabe-se que o princípio da cooperação processual, previsto no artigo 7º do Código de Processo Civil, é um princípio transversal a todo e qualquer processo e não encontramos razão válida que justifique a sua inaplicabilidade ao de Insolvência e Recuperação de Empresas, um processo em que se estabelecem, verificados determinados pressupostos, um dever legal de apresentação à insolvência e graves sanções no caso de inobservância de tal dever, quando se sabe da possibilidade de ocorrerem situações de conflito entre os titulares do órgão competente para decidir pela apresentação e aquele que entenda que se justifica tomar a iniciativa da mesma poder não ter acesso aos documentos necessários.
Cremos, assim, que também no caso do processo de insolvência e recuperação de empresas se justifica plenamente que se observe aquele princípio, designadamente na modalidade prevista no n.º 4 do citado artigo 7º: “sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
É o que sucede no caso que apreciamos, justificando-se o deferimento da requerida notificação da sociedade C…, com sede social no …, …, Ponte da Barca, para juntar ao processo os elementos e documentos necessários à apreciação do mérito da causa, conforme requerido.
Termos em que se acorda em conceder provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento do processo, solicitando-se os elementos pretendidos à C…, com sede social no …, …, Ponte da Barca, conforme requerido.
Sem custas.
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Guimarães, 26 de Setembro de 2013
Carlos Carvalho Guerra
José Estelita de Mendonça
Conceição Bucho