Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2141/16.3T8VCT.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
PREÇO
JUÍZOS DE EQUIDADE
JUROS DE MORA
ILIQUIDEZ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Se, num contrato de empreitada, o preço não tiver ficado contratualmente determinado, nem tiverem sido acordadas as regras e princípios a que ficava sujeita a sua determinação, cumpre recorrer, com as necessárias adaptações, aos critérios estabelecidos no art.º 883.º, ex vi do n.º 1 do art.º 1211.º, do C.C..

II – Assim, se o preço não estiver fixado por uma entidade pública, valerá como preço aquele que o empreiteiro praticava normalmente, nos contratos que celebrou com os demais clientes, com referência à data da conclusão do contrato de empreitada.
Se não houver elementos para aplicar aquele critério, vale o preço normalmente praticado na realização de obras daquele tipo, no momento do contrato e no lugar em que o comitente deva efectuar o pagamento, ou seja, deva cumprir a sua prestação contratual.
Se nenhum destes critérios puder ser adoptado, o preço é determinado pelo tribunal segundo juízos de equidade.

III - O julgamento segundo a equidade permite ao tribunal decidir o litígio apenas fundado em critérios de justiça, não estando subordinado aos critérios normativos fixados na lei.

IV – Resultando a decisão condenatória da aplicação de juízos de equidade, só a partir dessa decisão a obrigação se tornou líquida, sendo a falta de liquidez imputável ao próprio credor, que não cumpriu com o ónus da prova. “
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- João intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum contra Manuel, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia global de € 13.935,00, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa legal, no valor de € 2.968,11 e, ainda, de € 3.126,93, tudo num total de € 20.030,04 (vinte mil e trinta euros e quatro cêntimos), este montante acrescido de juros vincendos contados desde a data de citação até efectivo e integral pagamento; bem, assim, ainda, a condenação do réu no pagamento da quantia diária em montante não inferior a € 10,00 (dez euros) por cada dia em que o carro estiver guardado pelo Autor, desde a data da sua citação.

Alegou, para o efeito e em síntese, que se dedica profissionalmente e com escopo lucrativo à reparação de veículos automóveis e ao restauro de carros clássicos e no âmbito dessa actividade aceitou uma obra de reconstrução de um automóvel clássico do réu, um carro de marca Van den Plas, modelo Princess, com a matrícula DH, restauro esse que compreendia várias fases, designadamente desmontagem e reconstrução da carroçaria, reparação mecânica, pintura, montagem e acabamentos finais; assim que o réu lhe entregou o carro e lhe deu ordem para iniciar o restauro, ele, autor, deu início à primeira e segunda fase acima referenciadas, tendo executado a primeira, e entregue a segunda a um mecânico; autor e réu haviam combinado que o pagamento do preço de cada uma das fases seria pago aquando da conclusão de cada uma delas, não tendo sido fixado nenhum prazo para a conclusão de cada uma das fases; os serviços de desmontagem e reconstrução da carroçaria decorreram entre 8 de Janeiro de 2008 e 10 de Março de 2009, tendo ele, autor, despendido nesse período 686 horas de trabalho, sendo que cada uma delas tem um custo de €19,00 (dezanove euros) que corresponde à quantia de €13.034,00 (treze mil e trinta e quatro euros), acrescido de IVA à taxa legal; além disso, o autor teve que comprar peças, designadamente embaladeiras e painéis de portas, que tiveram um custo de € 635,40 (seiscentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos), acrescidos de IVA à taxa legal em vigor àquela data; o réu apenas entregou inicialmente a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), para aquisição de peças; o réu era então devedor de € 13.169,40 (treze mil cento e sessenta e nove euros e quarenta cêntimos), acrescidos de IVA, o que totaliza a quantia de € 15.935,00 (quinze mil novecentos e trinta e cinco euros); por outro lado teve, ele autor, que solicitar os serviços de um mecânico, por indicação do réu, e que originaram uma despesa no valor de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos); deu conhecimento ao réu da conclusão da reconstrução da carroçaria, tendo-a este examinado, e não tendo apresentado qualquer reclamação; deu-lhe ainda conhecimento da conta que o mecânico apresentou; o réu passou então a evitar o contacto consigo, mesmo nas diversas vezes que o procurou no domicilio profissional, até que, após a insistência do Autor, no inicio do ano de 2011, ou seja, cerca de dois anos após a conclusão daquela fase da obra, o réu deu indicação para emitir a factura, pois afirmou pretender pagar o montante em dívida àquela data, e o Autor assim fez e emitiu a factura n.º 172 de 31 de Março de 2011, no valor de € 13.169,42 (treze mil cento e sessenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de IVA à taxa em vigor naquela data, no valor de € 2.765,58 (dois mil setecentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), o que perfaz a quantia de € 15.935,00 (quinze mil novecentos e trinta e cinco euros); o réu continuou sem pagar a quantia em dívida, apesar de ter sempre reconhecido que era devedor; perante tão grande dificuldade em receber o preço por parte do réu, e o montante em dívida ter atingido um valor consideravelmente elevado, não mais continuou com a execução da obra enquanto não obtivesse da parte do Réu o cumprimento, ainda que parcial, da sua prestação; todavia, o carro, bem como as suas peças, permaneceram guardadas na sua oficina até à presente data; porém, desde a data em que, por não receber, interrompeu o restauro, tem procedido a intervenções necessárias à conservação da obra, de modo a evitar o perecimento da mesma, de modo regular e continuado, encontrando-se a carroçaria do carro e as suas peças em perfeito estado de conservação; em 15 de Janeiro de 2013, um amigo comum, entregou-lhe, a ele autor, em nome do réu, a quantia de €2.000,00 (dois mil euros), com a promessa que nos próximos meses, faseadamente este iria proceder ao pagamento da quantia remanescente, e o autor continuaria o restauro do automóvel até final; ora, tal nunca sucedeu, e o réu, ao contrário daquilo com o que se tivera comprometido, nunca entregou qualquer quantia; como nada recebeu, e porque lhe assistia esse direito, recusou-se, ele autor, a prosseguir para a fase seguinte da reparação, designadamente o envio do carro para a oficina de pintura e seguidamente a sua montagem; desde aquela data nada mais recebeu, permanecendo o montante peticionado em dívida.
Regularmente citado, o réu apresentou articulado de contestação, desde logo arguindo a respectiva ilegitimidade (que se entendeu substantiva) porquanto a factura junta aos autos por aquele respeita a pessoa colectiva e não ao réu pessoa singular; por outra via, veio o réu impugnar os factos alegados pelo autor, quer quanto aos trabalhos efectuados quer quanto às horas alegadamente despendidas ou valores reclamados; tendo ainda requerido a condenação do autor em multa e indemnização nos termos do regime previsto pelos art.os 542.º e segs. do Cód. Proc. Civil.
Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de “5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), aos quais deverá acrescer o correspondente IVA à taxa legal, e, bem assim, juros moratórios que se vencerem desde a data da prolação da presente decisão até efectivo e integral pagamento”, absolvendo-o do demais peticionado.
Inconformado, traz o Autor o presente recurso pedindo a revogação da sobredita decisão e a sua substituição por outra que condene o Réu “nos termos do pedido formulado na petição inicial”.
Contra-alegou o Réu propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação com efeito devolutivo.
Colhidos que se mostram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Convidado a corrigir as suas conclusões o Autor/Apelante formulou as seguintes:

2. Há uma manifesta incongruência entre estes dois factos, um considerado provado e outro não provado, que constitui pois uma nulidade insanável.
"c) por indicação e instruções do Réu, o Autor solicitou os serviços de um mecânico, os quais originaram uma despesa no valor de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos)".
Ora, salvo devido respeito, se a Mma. Juiz dá como provado que "o restauro que o Réu pretendia compreendia várias fases, sendo elas as seguintes:

desmontagem e reconstrução da carroçaria; reparação mecânica (...)" e que “assim que o Réu lhe entregou o carro e lhe deu ordem para iniciar o restauro, o Autor deu início à primeira fase acima referenciada, tendo-a executado na íntegra",
3. Não se vislumbra qual o motivo que levou a Mma. Juiz a considerar não provado o facto c).
4. Devia ter a Mma. Juiz atribuído maior credibilidade e fundado a sua convicção através do depoimento da testemunha M. M., que se reportou a datas concretas e a trabalhos exactos.
5. Mais grave, seria agora considerar que a mecânica pertence ao carro ora discutido, pertença do Réu, que está reparada, e que tenha de lhe ser entregue sem mais, o que permitiria que o Réu se locupletasse injustamente à custa do Autor, constituindo uma situação de enriquecimento sem causa.
6. A Mma. Juiz refere na sua análise crítica da prova, que:

"Tendo o Autor dado conhecimento ao Réu da conclusão da reconstrução da carroçaria, este contestou os valores reclamados pelo primeiro, mormente os constantes da factura junta aos autos, sendo que, por conta da reparação da viatura em sujeito, apenas entregou ao Autor a quantia global de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros)
Ora, o Autor, uma vez não liquidada a quantia que reclamava do Réu, designada pela factura supra descrita, interrompeu os trabalhos."
Nenhum destes factos decorre da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
7. A equidade é o último critério para efeitos de determinação do preço conforme se disse supra, e o que decorre da própria norma do artigo 883º do Código Civil.
8. No caso sub judice, esta foi aplicada em primeira linha, de uma forma arbitrária e desprovida de qualquer fundamento.
9. Salvo devido respeito, teve o Tribunal a quo elementos de prova, produzida em sede de audiência de discussão e julgamento para poder fixar um valor por cada hora de trabalho,
10. E de igual modo, teve também elementos mais do que suficientes para ficar esclarecido sobre o número de horas de trabalho despendidas na obra.
11. Por outro lado, em relação ao preço normalmente praticado pelo Autor à data da conclusão do contrato ou então, em segunda linha, ao preço de mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir, teremos naturalmente que considerar o valioso depoimento da testemunha Fernando.
12. Ou seja, uma vez mais, o tribunal a quo não considerou os elementos essenciais trazidos por uma testemunha perfeitamente conhecedora do caso concreto e de toda a negociação que envolveu Autor e Réu.
13. Mesmo que não considerasse o depoimento da testemunha Fernando, como não considerou,
14. O Tribunal não pode por isso considerar que não foi carreada prova suficiente nos Autos para provar quer o número de horas de trabalho despendidas bem como o custo por cada uma delas.
15. São ainda devidos juros de mora desde a data da emissão da factura, nos termos dos artigos 805º n.º 1 e 806º n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

Como se extrai das conclusões acima transcritas, cumpre:

- reapreciar a decisão de facto quanto aos segmentos fácticos impugnados;
- reapreciar a decisão de mérito, o que passa por determinar o preço que o Réu terá de pagar como contrapartida da obra executada, e, sendo devidos juros, definir o momento a partir do qual se vencem.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- Como resulta das conclusões 2 a 4 o Apelante impugna a decisão de facto.

a) O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
O Apelante cumpriu com todos os ónus que aquele dispositivo legal impõe, quer os enunciados nas três alíneas do n.º 1, quer o da alínea a) do n.º 2, na medida em que, de modo inequívoco, indicou os pontos da decisão de facto que considera incorrectamente julgados, e apresentou o seu projecto de decisão, enunciando os meios de prova em que fundamenta o seu dissenso.
Transcrevendo as expressões que, a seu ver, justificam a decisão que pretende, faz a indicação dos tempos da gravação dessas passagens.
Não há, assim, obstáculo legal a que se reaprecie a decisão de facto, nos segmentos fácticos impugnados.
b) Na reapreciação da decisão da matéria de facto cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., sem excluir que, como consta da “Exposição de Motivos”, foi intenção do legislador reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.
Como refere o art.º 341.º do Código Civil (C.C.) as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos. Não se podendo exigir que esta demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que sempre seria impossível de atingir), quem tem o ónus da prova de um facto terá de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem Antunes Varela et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
Se, depois de reapreciadas as provas, subsistir a dúvida quanto à realidade de um facto ou sobre a repartição do ónus da prova, decide-se contra a parte a quem o facto aproveita, segundo o princípio consagrado no art.º 414.º do C.P.C..
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V.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:

1. O Autor dedica-se profissionalmente e com escopo lucrativo à reparação de veículos automóveis e ao restauro de carros clássicos.
2. No âmbito dessa actividade aceitou uma obra de reconstrução de um automóvel clássico do Réu, um carro de marca Van den Plas, modelo Princess, com a matrícula DH.
3. O restauro que o Réu pretendia compreendia várias fases, sendo elas as seguintes: desmontagem e reconstrução da carroçaria; reparação mecânica; pintura; montagem e acabamentos finais.
4. Autor e Réu não fixaram nenhum prazo para conclusão de cada uma das fases.
5. Assim que o Réu lhe entregou o carro e lhe deu ordem para iniciar o restauro, o Autor deu início à primeira fase acima referenciada, tendo-a executado na íntegra.
6. Com data de 31.03.2011, o Autor emitiu em nome de “Prova – Turismo e Animação Desportiva, Ld.ª”, a factura n.º 172, com a designação de “reparação da viatura Van den Plas, modelo Princess, com a matrícula DH”, no valor de € 13.169,42 (treze mil cento e sessenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de IVA à taxa de 21%, no valor de € 2.765,58 (dois mil setecentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e oito cêntimos), num total de € 15.935,00 (quinze mil novecentos e trinta e cinco euros).-
7. O Autor deu conhecimento ao Réu da conclusão da reconstrução da carroçaria, tendo este entretanto contestado os valores reclamados pelo primeiro.
8. Por conta da reparação da viatura em sujeito, o Réu entregou ao Autor a quantia global de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros).
9. Entretanto, o Autor, uma vez não liquidada a quantia que reclamava do Réu, designadamente titulada pela factura supra descrita, interrompeu os trabalhos.
10. A viatura id. em 3.1., totalmente reparada, terá um valor de mercado não superior a € 10.000,00 (dez mil euros).---

ii) julgou não provado que:

a) Os serviços de desmontagem e reconstrução da carroçaria levados a cabo pelo Autor decorreram entre 8 de Janeiro de 2008 e 10 de Março de 2009, no que aquele despendeu um total de 686 horas de trabalho, a cada uma correspondente um custo de €19,00 (dezanove euros), tudo num total de €13.034,00 (treze mil e trinta e quatro euros), acrescido de IVA à taxa legal.
b) Ainda para o efeito, o Autor adquiriu peças, designadamente embaladeiras e painéis de portas, que tiveram um custo de € 635,40 (seiscentos e trinta e cinco euros e quarenta cêntimos), acrescidos de IVA à taxa legal.
c) Por indicação e instruções do Réu, o Autor solicitou os serviços de um mecânico, os quais originaram uma despesa no valor de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos).
d) Após examinar a reconstrução da carroçaria, o Réu não apresentou qualquer reclamação.
e) O Autor deu conhecimento ao Réu da conta que o mecânico tivera apresentado.
f) O Autor tem, de modo regular e contínuo, procedido a intervenções necessárias à conservação da obra, de modo a evitar o perecimento da mesma.
g) A carroçaria do carro e as suas peças encontram-se em perfeito estado de conservação.
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VI.- 1.- Como se extrai das conclusões 2 a 4 pretende o Apelante que se julgue provado o facto que consta da alínea c), que o Tribunal a quo julgou não provado, invocando aquele, para o efeito, o depoimento da testemunha M. M., que “se reportou a datas concretas e a trabalhos exactos”.
O Tribunal a quo, declarando ter formado a sua convicção “para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, no teor conjugado dos documentos juntos a fls. 7 (orçamento), 7vº (factura), 46-47vº (certidão permanente), 60 (orçamento), 64 (informação AT), 66 (factura), 67 (nota de crédito), 68 (declaração periódica IVA), 69 (factura), 70/71 (correspondência), das declarações e depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento”, faz um extenso resumo do depoimento de parte do ora Apelante, realçando as incongruências entre o que este declarou na audiência e o que alegara na petição inicial, e faz ainda um resumo dos depoimentos das testemunhas, deixando subentendido que julgou não provados os factos acima elencados de a) a g), essencialmente porque estas testemunhas revelaram faltas de precisão quanto a eles.
Alega o Apelante haver incongruência entre os factos acima transcritos sob os n.os 3.3 e 3.5, por um lado, e a referida alínea c), pelo outro, já que, tendo ficado provado que o restauro pretendido pelo Réu compreendia, designadamente, as fases de “desmontagem e reconstrução da carroçaria” e a “reparação mecânica”, e que ele, Apelante, logo que o Réu lhe entregou o carro e lhe deu ordem para iniciar o restauro “deu início à primeira fase acima referenciada, tendo-a executado na íntegra”, não podia ter sido julgado não provado que “por indicação e instruções do Réu”, ele, Apelante, “solicitou os serviços de um mecânico, os quais originaram uma despesa no valor de € 3.126,93”.
Crê-se que, face ao acordo estabelecido (mas que não chegou a cumprir-se) entre o ora Apelante, o Réu e a testemunha Luís, nos termos do qual este último assumiria os custos da reparação posteriores à data desse acordo, e tendo o mesmo declarado que «o carro estava pronto de chapa e era necessário avançar com a mecânica» (tendo sido por isso que fez entrega ao Apelante da importância de € 2.000), o Tribunal a quo terá ficado na dúvida sobre quem, de facto, deu a indicação e instruiu o Apelante para solicitar “os serviços de um mecânico” e qual o valor desta despesa.
Elementos de prova essenciais para dirimir este “conflito” são, indubitavelmente, o depoimento da testemunha M. M., que tem conhecimento directo destes factos, visto ser a sócia-gerente da empresa que procedeu à “reparação do motor e do charriot”; o depoimento do acima referido Luís; e os documentos: de fls. 7 (orçamento datado de 18/11/2013, no valor acima referido de € 3.126,93); de fls. 60 (orçamento datado de 03/06/2011, no valor de € 1.920,28); e de fls. 70 e 71 (que é uma carta que o Mandatário do ora Apelante enviou ao Réu em 20/12/2011, na qual refere como custos da “reparação dos componentes mecânicos” do veículo aquele valor de € 1.920,28).
A testemunha M. M. afirmou (deixando a gravação perceber claramente que, para tanto, se socorreu de um apontamento escrito) que deu ordem para «desmontar o motor» em «11/03/2008», e disse ainda que «houve ali uma altura que o sr. Luís disse para parar que o sr. (referindo-se ao Réu) não estava a dar dinheiro nenhum. Depois deu ordem para continuarmos», e, já no final do depoimento, instada novamente, acrescentou que quando o Apelante deu instruções para continuar o trabalho referiu que era um seu primo «que parece que vai ficar com ele» (com o carro), afirmando que «está lá (na sua oficina) tudo prontinho». Tendo sido confrontada com o “orçamento” de 03/06/2011, constante de fls. 60, afirmou desconhece-lo, muito embora, como infra se verá, há rúbricas comuns a ambos e têm valores iguais.
A testemunha Luís perguntado pela data em que foi estabelecido o acordo (pelo qual se responsabilizava pelo pagamento das despesas futuras, ficando com o carro), mostrou-se muito hesitante, oscilando entre os anos de «2012… 2013 … 2011… talvez», para concluir «não faço ideia». Afirmou, porém, que nessa altura «o carro estava pronto de chapa e era necessário avançar com a mecânica», acrescentando, «foi por isso que dei os dois mil euros», daqui se podendo concluir que a primeira fase, aquela que é específica do Apelante, estava concluída, pelo que se impunha dar seguimento à segunda, a de mecânica, que, como ele demonstrou saber, estava na altura parada devido à falta de pagamentos.
Os documentos de fls. 60, datado de 03/06/2011, e de fls. 7, datado de 18/11/2013 confirmam esta asserção.
Com efeito, no primeiro são referidos os mesmos trabalhos, as mesmas peças aplicadas, e os mesmos valores, que vêm indicados nas cinco primeiras parcelas do segundo, constando do primeiro “material de limpeza” no valor de “15,00” e no segundo, sob a rúbrica “Diversos e material de limpeza” “20,00”, sendo no primeiro debitadas “58,50” horas de mão-de-obra, ao mesmo preço unitário que consta do segundo, no qual, mercê da “oferta” de 46 horas, acabam por ser debitadas 100 horas de trabalho. São neste ainda debitados os preços de um “termostato”; dos “batentes de suspensão”; da “tinta para pintura de peças”, o que, tudo, perfaz a quantia peticionada nos autos, de € 3.126,93.
Da conjugação daqueles depoimentos e destes documentos se extrai, pois, com o grau de certeza necessário ao convencimento, que os trabalhos de mecânica foram também concluídos, e o seu custo ascende ao valor que consta do “orçamento” de 18/11/2013 (elaborado com esta designação para evitar a emissão de uma factura, que, sabia-se, não iria ser liquidada no imediato, como justificou a testemunha M. M., o que se aceita por ser um “estratagema” habitual para evitar o desembolso do IVA).

Termos em que, eliminando-se a alínea c) dos “factos não provados”, se adita à facticidade provada, com esta redacção, o número:

3.11. Por indicação e instruções do Réu, o Apelante solicitou os serviços de um mecânico, os quais originaram uma despesa no valor de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos).
2.- O trecho transcrito pelo Apelante na conclusão 6 não consta da “análise crítica da prova”, como aí se refere. Consta antes do ponto 4 da douta sentença, onde se faz “a análise dos factos e a aplicação do direito”, análise que, diga-se, é pertinente já que está conforme com os factos transcritos sob os n.os 3.7, 3.8, e 3.9, que tampouco vêm impugnados.
3.- Nas conclusões 7 a 14, o Apelante insurge-se contra a opção do recurso à equidade para a fixação dos valores devidos pelo seu trabalho, alegando ter sido produzida prova do número de horas que despendeu e que o recurso ao depoimento da testemunha Fernando permite igualmente saber qual o preço da hora de trabalho normalmente praticado no mercado.
No corpo das alegações transcreve as suas próprias afirmações (produzidas em depoimento de parte) e a afirmação produzida por aquela testemunha.
Reconduzem-se aqueles factos aos que constam das alíneas a) e b) da facticidade julgada não provada.
O Apelante, na factura que fez juntar aos autos não discriminou os trabalhos que correspondem ao valor aí debitado - € 13.169,42 -, e, como bem observa o Tribunal a quo, enquanto na petição inicial alega que aquele valor é o que corresponde a 686 horas de trabalho, ao preço de € 19,00 por hora (o que perfaria, porém, apenas € 13.034,00), no seu depoimento começou por dizer ter gasto «seiscentas e qualquer coisa horas», para, na contra-instância, acabar por afirmar que o valor da factura corresponde a «622 horas» de trabalho debitadas pelo valor de «19 euros e qualquer coisa», sendo o remanescente «o valor das peças, material que foi aplicado, chapa…».
Estas desconformidades, a par de outras, apontadas pela Meritíssima Juiz, designadamente a que se refere à entrega inicial de € 500, alegada no artigo 9 da petição e negada com convicção no depoimento de parte, põem em causa a credibilidade do Apelante, instalando a dúvida sobre a realidade dos factos que afirma.
E o certo é que o depoimento da testemunha Fernando não consegue remover essas dúvidas, não só porque relativamente às horas de trabalho este admitiu: «em termos de horas não sei», e quanto ao “preço médio de cada hora”, referindo que «num concessionário anda perto de € € 40 à hora» e na oficina do Apelante «era à volta de € 25», para além da imprecisão também não indicou a sua razão de ciência.
Não assiste, pois, razão ao Apelante no que afirma quanto à consistência da prova relativamente àqueles dois elementos fácticos, que são constitutivos do direito que pretende fazer valer.
Corrobora-se, pois, o julgamento do Tribunal a quo quanto a esta parte.
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VII.- É pacífico nos autos que o Apelante e o Réu celebraram um contrato pelo qual, a pedido deste, aquele se comprometeu a restaurar-lhe um veículo automóvel, mediante o pagamento do preço dos respectivos serviços.

Celebraram, pois, um contrato de empreitada.
Este contrato, que é uma das modalidades do contrato de prestação de serviços – cfr. art.os 1154.º e 1155.º, ambos do Código Civil, (C.C.) – é um contrato típico, que vem regulado nos art.os 1207.º a 1230.º do C.C., configura-se como sinalagmático, visto dele emergirem obrigações recíprocas interdependentes; oneroso, já que o esforço económico é suportado pelas duas partes; comutativo, na medida em que as vantagens patrimoniais dele emergentes são conhecidas das partes no momento do ajuste; podendo, salvas as excepções consagradas na lei, ser consensual, não estando sujeito a forma especial – artº. 219º., do C.C. (Cfr., v.g., ROMANO MARTINEZ in “Direito das Obrigações” (Parte Especial) Contratos, pág. 362).
A prestação contratual do empreiteiro é a execução da obra, em conformidade com o que foi convencionado, sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato, como resulta do disposto no art.º 1208.º do C.C..
Por sua vez, o comitente terá de pagar o preço que tenha sido acordado, nos termos e prazos que constem do contrato ou dos usos, de acordo com o disposto no art.º 1211.º, n.º 2 do C.C., sem embargo de o art.º 1207.º não fazer depender a perfeição do contrato de empreitada da prévia fixação do preço, que pode ser determinado em momento ulterior, como se extrai do n.º 1 daquele art.º 1211.º.
É pacífico nos autos que, nos termos contratados, o restauro do veículo automóvel compreendia quatro fases: desmontagem e reconstrução da carroçaria; a reparação mecânica; a pintura; e a montagem e acabamentos finais.
Terminada a primeira fase, que é a específica do Apelante, este solicitou ao Réu o pagamento do custo respectivo, o que este recusou, contestando os valores por aquele reclamados.

E, no essencial, é este o cerne do presente litígio.
a) Mostrando-se inultrapassada a divergência quanto ao preço, uma vez que ele não ficou contratualmente determinado, cumpre recorrer, com as necessárias adaptações, aos critérios estabelecidos no art.º 883.º, ex vi do n.º 1 do art.º 1211.º, do C.C..
Deste modo, se o preço não tiver sido fixado por uma entidade pública, valerá como preço aquele que o empreiteiro praticava normalmente, nos contratos que celebrou com os demais clientes, com referência à data da conclusão do contrato de empreitada que, como referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “terá servido as mais das vezes de ponto de referência ao dono da obra” (in “Código Civil Anotado”, 2ª. ed., vol. II, pág. 711).
Se não houver elementos para aplicar aquele critério, vale o preço normalmente praticado na realização de obras daquele tipo, no momento do contrato, e no lugar em que o comitente deva efectuar o pagamento, ou seja, deva cumprir a sua prestação contratual.
Se nenhum destes critérios puder ser adoptado, o preço é determinado pelo tribunal segundo juízos de equidade.
Não resulta da facticidade provada que tenha sido acordado um preço, seja relativo aos trabalhos globais de “reconstrução” do automóvel, seja aos trabalhos atinentes a cada uma das fases em que essa “reconstrução” estava previsto desenvolver-se, e também não provou o Apelante os alegados critérios que presidiram à fixação do preço que exige do Réu, constante da factura a que alude o ponto 3.6 dos factos provados.
Na supramencionada factura não vêm discriminados os trabalhos realizados e nem as horas despendidas e nem o custo de cada hora de trabalho, não havendo o Apelante logrado convencer na tentativa que realizou no seu depoimento de parte.
Por outro lado, os factos apurados não permitem fazer funcionar nenhum dos critérios supletivos enunciados no art.º 883.º do C.C., a que acima se aludiu.
Como referiu o Tribunal a quo, não resta, pois, outra alternativa que não a do recurso a um juízo de equidade para determinar o valor devido pelo Réu relativo aos trabalhos de reconstrução da carroçaria executados pelo Apelante.
O julgamento segundo a equidade permite ao tribunal decidir o litígio apenas fundado em critérios de justiça, não estando subordinado aos critérios normativos fixados na lei.
Como refere o Ac. do S.T.J. de 25/03/2010, “É uma questão de proporção ou de equilíbrio, fora das regras rígidas da norma” (in C.J., Acs. do S.T.J., ano XVIII, tomo I, pág. 164).
Na fixação do valor do preço a pagar pelo Réu, discorreu assim o Tribunal a quo: “resulta apurado nos autos a natureza e extensão dos trabalhos efectuados – desmontagem e reconstrução da carroçaria – tendo-se ainda em conta ter logrado apurar-se que a respectiva viatura, totalmente reparada, terá um valor de mercado não superior a € 10.000,00 (dez mil euros) … consideramos reportar-se justo e equilibrado fixar o respectivo preço em € 8.000,00”.
Crê-se merecer acolhimento este raciocínio, uma vez que o único elemento objectivo que se provou foi aquele valor de mercado e, na decorrência da alteração agora introduzida à decisão de facto, o preço da segunda fase do restauro, que consistiu na reparação mecânica (referiu a testemunha Luís que quando fizeram o acordo a que acima se aludiu o custo da parte restante do restauro «foi estimado em seis ou sete mil euros).
E, igualmente como se refere na douta sentença, àquele valor haverá de descontar-se a quantia de € 2.500 que o Apelante provadamente recebeu (cfr. ponto 3.8) pelo que terá este a haver do Réu a importância de € 5.500 (cinco mil e quinhentos euros), acrescida do IVA à taxa legalmente estabelecida.
b) O Apelante não provou a aquisição das peças que refere no artigo 8 da petição inicial pelo que, quanto a esta parte, é apodíctico que o seu pedido terá de improceder.
Já não assim no que se refere aos serviços de mecânica, que, como acima se decidiu, foram provadamente prestados e o seu custo é de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos).
Posto que tais serviços se integravam na obra contratada, tendo sido executados no veículo do Réu, impõe-se-lhe pagar o respectivo custo, cumprindo a prestação a que contratualmente se obrigou.
c) A última questão suscitada no presente recurso é a de definir o momento da constituição em mora, já que é a partir dessa data que se vencem os juros.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos – cfr. n.º 1 do art.º 406.º do C.C. -, e a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, tendo-se o devedor como constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido – cfr. art.º 804.º do C.C..
Em princípio, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, salvo se a obrigação tiver prazo certo, ou provier de facto ilícito, ou o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido – cfr. art.º 805.º, n.os 1 e 2 do C.C..
Ainda de acordo com o disposto no n.º 3 deste at.º 805.º, se o crédito for ilíquido não há mora enquanto se não tornar ilíquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor (a responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco tem regras próprias de que não cabe, aqui, conhecer).
Ora, relativamente à reconstrução da carroçaria, uma vez que a decisão condenatória resulta da aplicação de juízos de equidade, só a partir dela a obrigação se tornou líquida, sendo a falta de liquidez imputável ao próprio Apelante, que não cumpriu com o ónus da prova.
Os juros quanto a esta parte vencem-se, pois, a partir da data da decisão da 1.ª Instância, como aí se decidiu.
Já, porém, no que se refere aos serviços de mecânica, impõe-se aplicar a regra vertida no n.º 1 do art.º 805.º do C.C., fazendo-se coincidir a data da constituição em mora com a data da citação, pela qual o Réu foi interpelado para cumprir.
Nos termos do disposto nos art.os 806.º e 559.º do C.C. e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, é de 4% ao ano a taxa dos juros devidos.
Nesta parte, pois, procede a pretensão recursiva do Apelante.
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C) DECISÃO

Considerando tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, em consequência do que:

a) condenam o Réu/Apelado a pagar ao Apelante a importância de € 3.126,93 (três mil cento e vinte e seis euros e noventa e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento;
b) no mais, confirmam e mantêm os segmentos condenatório e absolutório constantes de i) e ii) da decisão impugnada.
Custas pelo Apelante e pelo Apelado, na proporção do vencido.
Guimarães, 08/03/2018
(escrito em computador e revisto)

(Fernando Fernandes Freitas)
(Alexandra Rolim Mendes)
(Maria Purificação Carvalho)