Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
162/07.6TBCHV-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - Tendo o contrato de crédito/mútuo sido concluído com pessoa diversa do vendedor, para que as vicissitudes do contrato de compra e venda possam ter influência no contrato de crédito, exige-se um acordo de colaboração entre financiador e vendedor, prévio e exclusivo.
2 - Não se provando a colaboração exclusiva e o necessário acordo prévio com a financiadora para o financiamento de qualquer contrato de compra e venda celebrado por um vendedor em concreto, não existe uma unidade económica qualificada entre os dois contratos que permita a demanda do financiador, não dependendo a validade do contrato de financiamento da validade do contrato de compra e venda.
3 - O mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade do contrato de crédito com fundamento na falta de informação e explicitação de cláusulas, 7 anos após a outorga do mesmo, nunca antes tendo invocado qualquer incompreensão das ditas cláusulas, nem ela tendo qualquer relação com o incumprimento contratual, que se ficou a dever a defeitos na viatura que, apesar disso, acabou por ser entregue para abatimento na dívida perante o credor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
A… e M…, deduziram oposição à execução que lhes move “S…, SA”, excecionando a ineptidão do requerimento executivo, a prescrição da ação cambiária, a inexequibilidade do título, o incumprimento do dever de informação, o erro vício como vício da vontade e o abuso de direito, para além de defesa por impugnação.
A exequente contestou.
Foi proferido despacho saneador no qual se julgaram improcedentes as exceções de nulidade de todo o processado por ineptidão do requerimento inicial e de prescrição. Foi selecionada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição à execução.
Discordando da sentença, dela interpuseram recurso os executados, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
A. Não se concorda com a conclusão do Douto Tribunal a quo quando afirma inexistir contratos coligados – contrato de compra e venda e contrato de crédito – nos presentes autos;
B. Foi provada a “colaboração entre credor e vendedor na preparação ou conclusão do contrato de crédito”;
C. O crédito foi sugerido pelo vendedor do veículo automóvel, existindo uma relação direta entre a entidade vendedora e a entidade financiadora – ora exequente / recorrida;
D. Aliás, o pagamento da viatura foi diretamente efetuado para a entidade vendedora;
E. Foi a entidade vendedora que direccionou os compradores – ora executados / recorrentes - à celebração do contrato de financiamento com esta entidade financiadora – ora exequente / recorrida;
F. Factos esses que resultam claramente do depoimento da testemunha da exequente P… (minutos 02:12 - 04:05; 11:46 – 12:45; 13:19 – 14:17);
G. E da testemunha E…(minutos 01:46 – 03:07; 3:39 – 5:35; 12:45 – 13:06);
H. Daí se afirmar que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto de estarmos perante “contratos coligados”, estando numa relação de dependência funcional entre si, dependendo a validade de um dependerá da validade do outro: a sorte de um contrato está indissoluvelmente ligada ao do outro, devido ao nexo causal existente entre ambos;
I. Os executados procederam à devolução da viatura, no dia imediatamente a seguir à celebração do negócio, em virtude de a mesma ter defeitos;
J. Tendo anulado o contrato de compra e venda, em consequência de tais defeitos, não reparados, perdendo o interesse naquela;
K. Conforme resulta provado no ponto 11 dos factos provados, constantes da douta sentença recorrida, SIC: “tendo o executado perdido interesse na viatura”;
L. E do depoimento da testemunha E… (minutos 01:46 – 02:11; 06:47 – 09:28; 10:38 – 12:37);
M. E da testemunha A… (minutos 02:38 – 03:03; 05:42 – 05:51);
N. E, bem assim, da testemunha P… (minutos 06:38 – 06:51);
O. Pelo que o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que a anulação do contrato de compra e venda, tenha implicado a anulação do contrato de crédito / financiamento, por se tratar de contratos coligados;
P. Os executados exerceram o seu direito de revogação, conforme resulta dos documentos n.º 6, n.º 8 e n.º 9, juntos à oposição, constando neste último, expressamente, SIC: “Declaro que entreguei nesta data o veículo de marca Tata, modelo Telcoline, com a matrícula …-SF e que reconheço a rescisão do contrato nº …”;
Q. Tendo alegado tal direito nos pontos 88, 89, 91 e 92, da sua oposição à execução;
R. O Tribunal a quo deveria, assim, ter dado como provado o exercício do direito de revogação, por parte dos executados, ora recorrentes;
S. O título executivo dos presentes autos é uma livrança pagável em dia fixo, com data de vencimento a 27.11.2006 e assinada “em branco”, pelos executados;
T. Não tendo sido acordado entre as partes qualquer contrato de preenchimento - ao contrário do constante na douta sentença recorrida – pelo que o título não tem força executiva, por não estarem preenchidos os requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade;
U. O documento junto à oposição sob o n.º 1, não pode ser considerado “pacto de preenchimento”, porquanto as cláusulas gerais que ao mesmo se reportam constam do verso, não tendo sido assinadas pelos executados, ora recorrentes;
V. Conforme resulta do depoimento da testemunha E… (minutos 05:56 – 06:47);
W. Assim, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado que as partes (executados / exequentes) não acordaram qualquer pacto de preenchimento da livrança entregue “em branco”;
X. Pelo que o preenchimento da mesma, à revelia de qualquer acordo inter partes, deveria ter sido julgado, abusivo;
Y. Sendo estes requisitos essenciais para que o credor possa executar o seu crédito, sob pena de o título executivo apresentado ser inexequível;
Z. Assim sendo, deveria o Tribunal a quo ter decidido pela inexequibilidade do título dado à execução;
AA. Não foi cumprido o dever de informação, que impendia sobre a exequente – que, não foi, sequer, tido em consideração na douta sentença, apesar de haver sido alegado na oposição à execução – não lhes tendo sido lido o contrato de financiamento, nem devidamente explicado o seu conteúdo;
BB. No que respeita ao contrato de financiamento em causa nos presentes autos, apenas foi transmitido aos executados, pela entidade vendedora do automóvel, o valor aproximado da prestação mensal, e o tempo de duração do contrato;
CC. Conforme mencionado pela testemunha E… (minutos 03:39 – 05:35; 05:56 – 06:47; );
DD. O não cumprimento do dever de informação constitui clara violação do preceituado na alínea d), do artigo 3.º e no artigo 8.º, ambos da Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor”;
EE. E, bem assim, dos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, aplicável aos contratos de adesão
FF. Determinando, ainda, a nulidade do negócio jurídico celebrado, conforme mencionado no artigo 16.º, da mencionada Lei de Defesa do Consumidor;
GG. Por estarem, assim, em causa, cláusulas absolutamente proibidas, nos termos dos artigos 21.º e 12.º, do diploma em causa;
HH. O que deveria ter sido declarado pelo Tribunal a quo;
II. O veículo em causa nos presentes autos foi entregue pelos executados à exequente, tendo sido vendido por esta pelo valor de € 1.900,00 (mil e novecentos euros);
JJ. Conforme referido pela testemunha P…, (minutos 16:55 – 17:42);
KK. Esse valor não foi descontado aquando do preenchimento (abusivo) da livrança que serviu de título executivo aos presentes autos;
LL. Não foi, ainda, descontado o valor correspondente à entrada inicial dada pelos executados, no valor de € 1.000,00 (mil euros) – constante do doc. n.º 1, junto à oposição;
MM. Assim, ao julgar improcedente a oposição à execução deduzida pelos executados, ora embargados, o Tribunal a quo violou as disposições contidas na alínea d), do artigo 3.º, nos artigos 8.º, 12.º, 16.º e 21.º, todos da Lei n.º 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor”; nos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10.
Nos termos supra mencionados e nos melhores de direito, deverá a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo ser anulada e substituída por outra, nos termos supra mencionados, que julgue a oposição à execução deduzida pelos executados procedente, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!

Contra alegou a exequente, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo e subida nos próprios autos.
Foram colhidos os vistos legais.
As questões a resolver traduzem-se em saber:
- se há lugar à impugnação da matéria de facto e em que termos;
- se ocorrem nos autos os pressupostos para a subordinação do contrato de crédito em relação ao contrato de compra e venda;
- se o título/livrança é exequível e foi corretamente preenchido ou houve abuso de direito e falta de informação;
- se ocorre abuso de direito por parte dos executados ao invocarem a nulidade do contrato de financiamento.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Provou-se que:
1. Em 07/02/07 «S…, SA» instaurou contra A… e M… acção executiva reclamando o pagamento da quantia de € 12.674,47.
2. Apresentou como título executivo uma livrança com data de vencimento de 27/11/2006, pelo valor de € 12.571,32 subscrita pelos executados.
3. A livrança dada como titulo executivo foi assinada em branco pelos executados.
4. Os executados assinaram, também, as cláusulas relativas ao teor do preenchimento da livrança.
5. As mencionadas assinaturas foram feitas sem ser na presença de qualquer representante da exequente.
6. Tendo-lhes sido explicado, pelo vendedor, que o pagamento do preço seria efectuado em prestações, o seu número, a data de vencimento e o montante de cada uma delas.
7. A exequente remeteu via CTT aos oponentes os documentos para serem assinados e devolvidos pela mesma via, o que efectivamente, sucedeu.
8. Em 17 de Fevereiro de 2006 foi celebrado entre a exequente e os executados o contrato de crédito n.º …, tendo em vista o financiamento para a aquisição de uma viatura automóvel da marca TATA, com a matrícula …- SF, sendo o montante do crédito de € 13.568,78, a reembolsar em 72 prestações no valor cada uma de 183,25 €, vencendo-se a primeira no dia 23/03/2006.
9. No dia em que os executados foram levantar a viatura ao stand, ao fim de cerca de 10 km de percurso, verificaram que o mesmo apresentava uma fuga de óleo.
10. Sendo, no dia seguinte, levada novamente para o stand do vendedor.
11. Tendo o executado perdido o interesse na viatura.
12. E, de imediato, informado disso o dono do stand, bem como que pretendia por fim ao contrato de financiamento.
13. Em 06/09/2006 os executados entregaram à exequente o veiculo mencionado em D).
14. Por carta que dos autos é fls. 42 a exequente remeteu aos executados os seguintes documentos: - Guia do certificado de matrícula (Documento Único Automóvel); - Certificado de matrícula; - Guia de substituição do título de registo de propriedade; - Guia de substituição do livrete. - Original do livrete. - Original do título de registo de propriedade.
14. Em 7 de Março de 2006, foi registada a favor do executado o direito de propriedade sobre a viatura.
15. Por carta de 7 de Abril de 2006 a exequente informou os executados que a prestação do mês de Março no valor de € 181,74 se encontrava por liquidar.
16. Os executados remeteram uma carta registada com aviso de recepção com data de 8 de Maio de 2006 onde informam que denunciaram o contrato de crédito n.º … dois dias após a data da sua celebração.
17. Por carta registada com aviso de recepção datada de 7 de Julho de 2006 a exequente afirmou que não aceitava nem considerava válido o pedido de considerar sem efeito o contrato celebrado.
18. Por carta datada de 31 de Julho de 2006, que dos autos é fls. 48, os executados, através da sua ilustre mandatária, informaram que tinham resolvido o contrato de compra e venda da viatura e consequentemente o contrato de crédito.
19. Do contrato mencionado em 4. consta a seguinte cláusula, que antecede as assinaturas dos executados: O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e clausulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes condições particulares e pelas condições gerais constantes do verso ou do anexo ao presente documento) sobre os quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhes ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura.
20. Os executados assinaram um escrito denominado “Declaração”, datado de 17 de Fevereiro de 2006, onde consta: Nos termos e ao abrigo do n.º5, do art. 8º do DL 359/91 de 21 de Setembro, tendo-nos sido entregue o bem vimos renunciar ao exercício do direito de revogação do contrato de mútuo n.º … com a S…, SA e, consequentemente declaramos prescindir do prazo que legalmente é concedido para o efeito. (…) Esta declaração é feita a favor da S…, SA, sendo válida e irrevogável até estarem extintas todas as obrigações decorrentes do contrato de financiamento.
21. A exequente remeteu em 12 de Julho de 2006 aos executados as cartas que dos autos são fls. 80 a 85 informando-os o valor das prestações em dívida.
22. Em 06/11/2006 a exequente remeteu aos executados as cartas registadas com aviso de recepção que foram por estes recebidas, dando-lhes conhecimento do incumprimento definitivo do contrato de crédito n.º…, e que completaram nesse dia, o preenchimento da livrança que tinha sido subscrita e entregue em branco, pelo valor em divida que ascende a € 12.571,32.

Comecemos por analisar a impugnação da matéria de facto.
Os recorrentes anunciam logo no intróito da sua alegação que o seu recurso terá por objeto a reapreciação da prova gravada.
E, ao longo da alegação, bem como em algumas conclusões do recurso (alíneas F, G, L, M, N, V, CC e JJ) referem-se, expressamente a concretos meios probatórios – prova testemunhal – indicando com exatidão as passagens da gravação a que aludem.
O que os recorrentes não dizem é quais são os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, seja por referência aos pontos da base instrutória, seja por referência aos pontos da matéria de facto considerada provada na sentença.
Ora, do não cumprimento de tal ónus, resulta a imediata rejeição do recurso nessa parte, conforme decorre do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil.
Veja-se, aliás, que os recorrentes, com base nos depoimentos das testemunhas que citam, pretendiam que o tribunal desse como provadas conclusões e/ou conceitos jurídicos que, obviamente, não podiam constar da base instrutória – veja-se a alínea H das conclusões “o tribunal deveria ter dado como provado o facto de estarmos perante contratos coligados, numa relação de dependência funcional entre si, dependendo a validade de um dependerá da validade do outro…”, ou a alínea O das conclusões “o tribunal deveria ter dado como provado que a anulação do contrato de compra e venda, tenha implicado a anulação do contrato de crédito/financiamento, por se tratar de contratos coligados”..
Relativamente à matéria contida nas conclusões II, JJ, KK e LL, trata-se de matéria nova – que os valores da venda do veículo e da entrada inicial não foram descontados pelo exequente quando procedeu ao preenchimento da livrança -, nunca alegada em 1.ª instância e que, por isso mesmo, não poderá ser apreciada por este tribunal, sabido como é que “a demanda do tribunal superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior” (Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina, 2010, pág. 26.

Não existindo, portanto, alterações a introduzir à matéria de facto, importa, agora, apreciar as questões jurídicas.
Os recorrentes discorrem longamente sobre a existência de contratos coligados e como a anulação do contrato de compra e venda teria implicado a anulação do contrato de crédito.
Vejamos.
Os contratos aqui em causa – compra e venda e financiamento/crédito - estão ligados por uma relação de funcionalidade, uma vez que o financiamento teve por finalidade conseguir a celebração do contrato de compra e venda. O crédito destina-se a financiar a aquisição, sendo esta a causa daquele, pelo que, embora autónomos e sujeitos ao regime jurídico respetivo, existe uma interdependência funcional recíproca entre eles – cfr., neste sentido, entre muitos outros, Ac. Relação de Lisboa de 09/05/2006, in www.dgsi.pt
Dispõe, nesta matéria, o artigo 12.º do DL 359/91, de 21/09 (aqui aplicável face à data dos contratos em causa), relativo aos contratos de crédito ao consumo, que a validade e eficácia do contrato de compra e venda, depende da validade e eficácia do contrato de crédito e, inversamente, para o que aqui nos interessa, tendo o contrato de crédito sido concluído com pessoa diversa do vendedor, para que o credor possa ser demandado, para que as vicissitudes do contrato de compra e venda possam ter influência no contrato de crédito, exige-se um acordo de colaboração entre financiador e vendedor, prévio e exclusivo (n.º 2 do citado preceito).
Este acordo de colaboração entre o vendedor e o financiador não ficou provado nos autos, nem sequer que o vendedor coopere unicamente com este financiador. Se o fornecedor colabora com mais do que um credor, não se verifica o requisito em apreço – cfr. Gravato de Morais, in Contratos de Crédito ao Consumo, Almedina, 2007, pág. 250.
Não resultando dos factos provados aquela colaboração exclusiva e o necessário acordo prévio com a apelada para o financiamento de qualquer contrato de compra e venda celebrado por este vendedor em concreto, não existe uma unidade económica qualificada entre os dois contratos que permita a demanda do credor nos termos daquele artigo, não dependendo a validade do contrato de financiamento da validade do contrato de compra e venda
Improcedem, assim, as conclusões dos apelantes quanto à existência de contratos coligados numa relação de dependência que conduziria à anulação do contrato de crédito em função da anulação do contrato de compra e venda.

Deve, aliás, dizer-se, que os apelantes não provaram a resolução do contrato de compra e venda. Muito pelo contrário.
O preço devido pela aquisição da viatura foi pago pelo financiador diretamente ao vendedor, sendo que a propriedade do referido veículo foi registada a favor do apelante em Março de 2006 e, posteriormente, foi o próprio apelante que procedeu à entrega do veículo à apelada, a fim de abater o seu valor ao montante em dívida.
Verifica-se, assim que, apesar da perda do interesse no veículo em função dos seus defeitos, por parte do executado e da carta enviada pela mandatária ao exequente, em que comunica a devolução da viatura ao stand e consequente resolução do contrato de compra e venda, não está provado que a mesma tenha ocorrido – artigos 432.º e seguintes do Código Civil -, com a retroactividade das prestações que lhe é inerente, pois não só o preço não foi devolvido, como também a viatura não foi devolvida ao vendedor, uma vez que foi o próprio executado que, posteriormente, a entregou à exequente/financiadora, para abater à dívida.
Mantendo-se pago o preço devido pela aquisição da viatura, mantêm-se as obrigações decorrentes do contrato de financiamento, como muito bem se salienta na sentença recorrida.

Contrato de financiamento, aliás, que não foi revogado, nos termos do artigo 8.º do DL 359/91 (que consagra a regra do período de reflexão), uma vez que o consumidor/executado, havia renunciado ao exercício de tal direito, conforme decorre do número 20 dos factos provados, não tendo a carta referida no número 16 desses factos, nem a comunicação que foi feita ao vendedor (terceiro) de que queria pôr fim ao contrato de financiamento, tal virtualidade resolutiva.

A questão seguinte prende-se com o contrato de financiamento, a livrança e o seu preenchimento.
A questão do abuso de direito na invocação da nulidade do contrato de financiamento e preenchimento da livrança tem sido controvertida.
Enquanto alguns defendem a posição que o mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade de um contrato com fundamento na falta de entrega de cópia do contrato ou de falta de comunicação e explicitação de cláusulas, quando já procedeu ao pagamento de várias prestações e/ou nunca invocou tal nulidade, apenas o fazendo para se eximir ao pagamento, outros defendem que, atenta a regra de proteção do consumidor que subjaz às relações de consumo, não age em abuso de direito o mutuário que invoca a nulidade do mútuo por falta de entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato.
Na jurisprudência, defendendo a primeira tese, encontramos os acórdãos da Relação do Porto de 14/11/2011 e de 28/03/2012, da Relação de Coimbra de 12/02/2008, bem como os acórdãos da Relação de Guimarães de 12/11/2013 e de 27/10/2011, enquanto que, defendendo a segunda posição, encontrámos o acórdão da Relação de Guimarães de 25/05/2012, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso dos autos ficou provado que o vendedor explicou aos executados que o pagamento do preço seria efetuado em prestações, o seu número, a data de vencimento e o montante de cada uma delas e que a exequente remeteu via CTT para os executados todos os documentos para serem assinados e devolvidos pela mesma via, o que estes fizeram, assinando o contrato com as cláusulas relativas ao teor do preenchimento da livrança, bem como a própria livrança em branco. Mais ficou provado que, no contrato, consta a seguinte cláusula, que antecede as assinaturas dos executados: “Os clientes declaram conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes condições particulares e pelas condições gerais constantes do verso ou do anexo ao presente documento) sobre os quais foram devidamente informados, tanto por lhes ter sido dado a ler, como por lhes ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”.
Assim, ao contrário do referido pelos apelantes nas suas conclusões, foi acordado entre as partes um pacto de preenchimento da livrança, constante do contrato que a exequente enviou aos executados via CTT para ser assinado e que estes puderam ler com calma, em sua casa, devolvendo-o posteriormente, já assinado.
Não pode, assim, considerar-se que foi incumprido o dever de informação, não só porque as cláusulas principais foram explicadas pelo próprio vendedor, como porque os executados tiveram a oportunidade de ler o contrato em sua casa, com tempo, antes de o assinar.
Mais releva, neste caso, o facto de os executados terem pretendido resolver o contrato de financiamento, não porque não o tivessem compreendido ou qualquer das suas cláusulas, ou não concordassem com elas, mas sim porque se desinteressaram da compra da viatura, em virtude dos defeitos que esta apresentava, tendo acabado por entregá-la à exequente para abater no valor da dívida contraída para a sua aquisição. Ou seja, nunca os executados alegaram qualquer facto do qual possa resultar que o incumprimento contratual se ficou a dever à violação do dever de informação conducente ao preenchimento abusivo da livrança.

Ora bem, antes do mais convirá dizer, como bem se chama a atenção no Acórdão do STJ de 20/03/2012, proferido no processo n.º 1557/05.5TBPTL.L1, e acessível em www.dgsi.pt, que, o compreensível regime proteccionista e de favor que enforma o DL nº 446/85, de 25/10, “não dispensa o consumidor de uma conduta diligente, zelosa e cuidada, que a boa fé aconselha e exige, como também não onera o promotor das cláusulas de adesão com incumbências de tutela sobre o mesmo consumidor que o resguardem de negligência ou descuido“.
Convirá, portanto, perguntar, no concreto condicionalismo dos autos, se a arguição da nulidade do contrato por falta de informação quanto às suas cláusulas e preenchimento abusivo da livrança constitui um ilegítimo e abusivo exercício do direito pelos executados.

O entendimento dos apelantes, a nosso ver – e seguimos aqui de perto o já subscrito no Acórdão desta Relação de 12/11/2013, proferido no processo n.º 1939/10.0TBFAF-A.G1, em que foi relator António Santos e adjunta a aqui relatora, bem como no Acórdão de 30/01/2014, com a mesma relatora deste (disponíveis em www.dgsi.pt) -, e com todo o respeito, não pode ser sufragado, apenas é compreensível/aceitável à luz de uma exacerbada protecção do consumidor/aderente, e não obstante sobre o mesmo recair, recorda-se, o dever de manter uma conduta diligente e pautada pela observância dos mais elementares princípios da boa-fé que sobre todos os contraentes impendem, não esquecendo a necessidade da sua autodeterminação e autoresponsabilidade.
Ora, com referência a tal matéria, é hoje praticamente unânime o entendimento de que nada obsta a que o financiador se socorra do instituto do abuso do direito para, através dele, se paralisar os efeitos da invocação pelo consumidor da nulidade formal do contrato de crédito ao consumo, sendo v.g. e em rigor “ legitima a pretensão do financiador que sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior”. - Cfr. Fernando de Gravato Morais, in “Os Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, págs. 108 e segs.
No essencial, e continuando a citar o Acórdão de 12/11/2013, socorre-se a doutrina e a jurisprudência da concretização do “venire contra factum proprium” nas inalegabilidade de vícios formais, caracterizando-se então o comportamento do consumidor pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, ou seja, como ensina o Prof. Menezes Cordeiro (In Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 742 e segs), em causa estão então dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, sendo que o primeiro - o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.
Ora, como vimos já, o título executivo é uma livrança que entronca a respetiva justificação em contrato de financiamento para aquisição a crédito – aquele cuja nulidade é invocada pelo consumidor – datado de fevereiro de 2006, assinado pelos executados, nas circunstâncias supra referidas, tendo sido entregue o preço da viatura pelo financiador ao vendedor e tendo a viatura sido registada em nome do comprador e entregue a este, que apenas se desinteressou da mesma, após constatar os seus defeitos e tendo já renunciado ao direito de revogação do contrato de mútuo. O executado entregou a viatura à exequente em Setembro de 2006, após cartas da exequente relembrando o incumprimento e aludindo ao preenchimento da livrança pelos valores em dívida, para que o mesmo fosse vendido e o preço alcançado deduzido ao remanescente do devido.
Tendo sido instaurada a execução, é em janeiro de 2013 (cerca de 7 anos após a outorga do contrato de crédito), já no âmbito obviamente da cobrança coerciva do título de crédito dado à execução, é que vêm os executados invocar a nulidade do contrato, pretendendo através da arguição do referido vício obstar ao pagamento da livrança.
Vir agora, em sede de oposição à execução, suscitar pela primeira vez a nulidade do contrato, cerca de 7 anos após a sua outorga, e nunca antes se tendo socorrido de qualquer incompreensão relativa ao mesmo, mas pretendendo apenas, por uma questão jurídica, que ele estaria subordinado ao contrato de compra e venda que, também erradamente, sustentavam ter sido resolvido, configura em rigor o exercício ilegítimo de um direito, excedendo os executados, e manifestamente, os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e/ou económico do direito, o que tudo preenche o conceito previsto no art. 334º do Código Civil – neste sentido, também, o Acórdão da Relação de Guimarães de 27/10/2011, proferido no processo n.º 693/10.0TBBRG-A.G1 (relatado por Amílcar Andrade), disponível em www.dgsi.pt.
Verificada a validade do contrato e do preenchimento da livrança, improcedem as conclusões da apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:
1 - Tendo o contrato de crédito/mútuo sido concluído com pessoa diversa do vendedor, para que as vicissitudes do contrato de compra e venda possam ter influência no contrato de crédito, exige-se um acordo de colaboração entre financiador e vendedor, prévio e exclusivo.
2 - Não se provando a colaboração exclusiva e o necessário acordo prévio com a financiadora para o financiamento de qualquer contrato de compra e venda celebrado por um vendedor em concreto, não existe uma unidade económica qualificada entre os dois contratos que permita a demanda do financiador, não dependendo a validade do contrato de financiamento da validade do contrato de compra e venda.
3 - O mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade do contrato de crédito com fundamento na falta de informação e explicitação de cláusulas, 7 anos após a outorga do mesmo, nunca antes tendo invocado qualquer incompreensão das ditas cláusulas, nem ela tendo qualquer relação com o incumprimento contratual, que se ficou a dever a defeitos na viatura que, apesar disso, acabou por ser entregue para abatimento na dívida perante o credor.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 17 de setembro de 2015
Ana Cristina Duarte
Francisco Cunha Xavier
Francisca Mendes