Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1053/07.6TBPTL.G1
Relator: RAQUEL REGO
Descritores: SERVIDÃO PREDIAL
EXTENSÃO DA SERVIDÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A servidão é um encargo e constitui excepção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente, ilimitado do direito de propriedade, consagrado pelo artº 1305º do C.Civil.
II – Por isso, deve conter-se nos seus precisos limites e a actualização do seu conteúdo não pode traduzir-se num extravasamento do fim para que foi constituída.
III - O trânsito automóvel não é uma actualização dos veículos facultada pelo direito de servidão, como acontece na situação do carro de bois e do tractor.
IV - No caso presente, é manifesto que uma servidão para fins agrícolas é substancialmente menos gravosa da que respeita à passagem de veículos automóveis para habitação, desde logo pela frequência de uso em que uma e outra se traduz.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


I – RELATÓRIO.

1. MB e marido MBB, intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum ordinário, contra MA e marido AA, todos residentes na freguesia da Grandra, comarca de Ponte de Lima, pedindo que:
- se declare que são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito em ..., freguesia de Gandra, composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, área coberta de 101,5 m2 e logradouro de 100 m2, a confrontar do norte com Manuel..., do sul com Rosa..., do nascente com Manuel P... e caminho e do poente com Alfredo..., descrito naquela Conservatória de Registo Predial sob o nº007…;
- se declare que a faixa de terreno sobre a qual se encontra constituída a servidão de passagem é propriedade exclusiva dos Autores, e os Réus apenas possuem sobre a mesma uma servidão para fins agrícolas;
- se declare que os Autores são donos e legítimos possuidores da oliveira e de todo o espaço a esta envolvente, designadamente do local onde procederam à construção do círculo em granito;
- se condenem os Réus a reconhecer o acima declarado, a não praticar qualquer acto que impeça ou perturbe as obras levadas a efeito pelos Autores no seu prédio e a pagar aos mesmos, a título de danos patrimoniais, a quantia de €1.000,00 (provenientes do derrube do círculo de granito à volta da oliveira) e a quantia não inferior a €3.000,00, por outros danos patrimoniais e não patrimoniais.

2. Contestaram os réus e reconviram, pedindo que:
- se declare a existência de um caminho público na estrema nascente do prédio dos Autores;
- caso subsistam dúvidas quanto à largura do caminho, se condenem os Autores a reconhecer que o direito de passagem pela área da estrema nascente daquele prédio e de outro, a pé, com carro de bois, tractor e veículos automóveis que acresce à largura do primitivo caminho público ali existente até 2,5 m, por constituir servidão por destino de pai de família a favor do prédio dos Réus, e ainda na área excedente até à largura de 3,5 m.

3. Os autos seguiram os seus termos, vindo a ser proferida sentença que, julgando quer a acção, quer a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência:
- declarou que os Autores são proprietários do prédio urbano sito em ..., freguesia de Gandra, composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro (área coberta de 101,5 m2 e logradouro de 100 m2), a confrontar do norte com Manuel..., do sul com Rosa..., do nascente com Manuel P... e caminho e do poente com Alfredo..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Lima sob o nº 007…;
- condenou os Réus a reconhecer tal direito de propriedade e a abster-se de o perturbar;
- declarou que, em benefício da parcela de terreno, para construção urbana, com a área de 2650 m2, destacada do logradouro do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, com a área de 99 m2 e logradouro com 3001 m2, sito no lugar de ..., freguesia de Gandra, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Lima sob o nº 6…, e sobre o referido prédio dos Autores existe, por destinação de pai de família, o direito de servidão de passagem a pé, com carros de bois e tractores, por uma faixa de terreno em duro sobre o prédio dos Autores, do seu lado nascente, no comprimento total (até ao canto sul/nascente daquela parcela) de 61,5 m e com largura entre o mínimo de 2,10 m e o máximo de 3,90 m;
- declarou que os Autores são proprietários da oliveira que bordeja tal faixa de terreno, a 17,1 m do muro delimitador do prédio dos Autores, para norte;
- condenou os Réus a reconhecer tal direito de propriedade e a abster-se de o perturbar;
- absolveu os Réus do pedido de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, formulado pelos Autores;
- absolveu os Autores dos demais pedidos formulados em sede de reconvenção (existência de caminho público na estrema nascente do prédio dos Autores e exercício da servidão com veículos automóveis).

4. Inconformados, apelaram os RR, rematando as pertinentes alegações com seguintes conclusões:
Primeira: Os AA não formularam pedido de constituição de servidão – por isso que, nessa parte, a acção deve improceder.
- Com efeito, o seu pedido circunscreve-se, apenas, a “declarar-se, que a faixa de terreno sobre a qual se encontra constituída a servidão de passagem, é propriedade exclusiva dos AA e, os RR apenas possuem sobre a mesma uma servidão para fins agrícolas”.
Segunda: Os RR, no art. 8º da sua Contestação alegaram que “são donos e legítimos possuidores de uma parcela de terreno, para construção urbana, com a área de 2650m2 que confronta de norte com Manuel Bota Cerqueira, sul com Maria Glória Bota Cerqueira, nascente com caminho e do poente com Albertina Fernandes Cerqueira”.
Os AA aceitaram, por confissão, a referida factualidade (sua Contestação à Reconvenção no artº 2º).
Ainda: visto o teor dos documentos juntos aos autos, aqui indicados, designadamente, a fls. 336, 337, 338 e 339, bem como a fls. 102, 103 e 104, e ainda a fls. 40, 42, 43 e 44, é certo que o prédio dos RR confronta a nascente com caminho.
Terceira: Por isso, deve ser modificada a matéria de facto, como a seguir – que se requer ao abrigo do disposto no art. 712º do CPC:
“ Os RR são donos e legítimos possuidores de uma parcela de terreno, para construção urbana, com a área de 2650m2 que confronta de norte com Manuel Bota Cerqueira, sul com Maria Glória Bota Cerqueira, nascente com caminho e do poente com Albertina Fernandes Cerqueira.
Quarta: Do mesmo passo, quanto à constituição da servidão.
De facto, pelo documento de fls. 41 denominado “CONSTITUIÇÃO DE CAMINHO DE SERVIDÃO DE PASSAGEM”, os AA e os antepossuidores do prédio dos RR (D…) reciprocamente declararam que foi “constituída um caminho de passagem com largura de 3,40m de largura ao longo da estrema nascente do prédio de cultivo denominado “Campo do Fundo da Veiga”, da freguesia da Gandra, que corre de sul para norte e vice-versa, que irá ligar ao caminho público de Fonte de Marcos”.
Quinta: Por isso que deverá ficar assente a seguinte matéria de facto:
- Os AA e os antepossuidores do terreno dos RR constituíram, por contrato, servidão de passagem sobre o prédio daqueles, identificada como um caminho de passagem com largura de 3,40m de largura ao longo da estrema nascente do prédio de cultivo denominado “Campo do Fundo da Veiga”, da freguesia da Gandra, que corre de sul para norte e vice-versa, que irá ligar ao caminho público de Fonte de Marcos.
Sexta: Visto o teor da referida constituição de servidão, é manifesto que pelo aludido caminho podem passar pessoas – a pé, de bicicleta, viaturas, até à largura de 3,40 metros.
Sétima: A conduta dos AA, ao subscreverem o documento em questão, há cerca de 18 anos, e pretenderem, agora, que a servidão não seja utilizada por veículos automóveis (no momento em que os RR construíram a sua habitação – matéria de facto 1. e)), não pode deixar de representar manifesto abuso de direito, que se invoca.
Oitava: O pedido formulado pelos RR, em reconvenção, de reconhecimento de servidão de passagem pelo caminho acima identificado, a utilizar a pé, carro de bois, tractor e veículos automóveis, deve proceder.
Nona: Por violação do disposto nos art. 1565º e 334º do CC, e ainda nos art.s 659º - 3 e 668º 1- d), do CPC, a sentença da 1ª instância deve ser revogada, declarando-se procedente o pedido dos RR, aqui recorrentes.

Terminam pela revogação da sentença recorrida, julgando-se improcedente o pedido dos AA, quanto à servidão e procedente o pedido dos RR, condenando-se os AA a reconhecer que se mostra constituída servidão de passagem sobre o caminho identificado nos autos (supra 5. b)), podendo nele passar pessoas, a pé, de bicicleta, de veículos a motor, até à largura de 3,40 metros.

5. Foram oferecidas contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão proferida.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II. FUNDAMENTAÇÃO.

Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A) - Encontra-se inscrita na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Lima a aquisição, por usucapião, a favor dos Autores, do prédio urbano sito em Fonte de S.Marco, freguesia de Gandra, composto por casa de rés-do-chão e 1º andar, com logradouro, área coberta de 101,5 m2 e logradouro de 100 m2, a confrontar do norte com Manuel..., do sul com Rosa..., do nascente com Manuel P... e caminho e do poente com Alfredo..., descrito naquela Conservatória de Registo Predial sob o nº 007….
B) - Por escritura pública de habilitação e partilha, celebrada em 28 de Outubro de 1993, na Secretaria Notarial de Barcelos, foi adjudicada à Autora 4/30 avos indivisos do bem descrito sob o nº 1 da relação de bens, 14/35 avos indivisos do bem relacionado sob o nº 2 e metade indivisa do bem relacionado sob o nº 5, dando-se por integralmente reproduzida a escritura pública de fls. 13 e seguintes.
C) - Por escritura pública de doação, celebrada no dia 3 de Janeiro de 2003, D… e A… declararam que doavam à sua filha, ora Ré, MA, casada no regime de comunhão de adquiridos com o Réu, uma parcela de terreno, para construção urbana, com a área de 2650 m2, a destacar do logradouro do prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, com a área de 99 m2 e logradouro com 3001 m2, sito no lugar de ..., freguesia de Gandra, descrito na Conservatória de Registo Predial de Ponte de Lima sob o nº 6….
D) - Por escritura pública de justificação, celebrada no dia 13 de Outubro de 2003, MB, na qualidade de procuradora dos Autores, declarou que estes “são donos e legítimos possuidores do prédio” aludido em A), com exclusão de outrem, dando-se por integralmente reproduzido o restante conteúdo da escritura pública de fls. 47 a 50.
1.º - O prédio aludido em A) fazia parte integrante da denominada “Quinta de Fonte de Marcos”.
2.º - Após a partilha referida em B), os Autores e restantes herdeiros procederam à divisão física dos seus prédios, colocando marcos de forma a tornar cada parcela independente das demais.
3.º - O prédio aludido em A) resultou dessa divisão.
4.º - Também o prédio referido em C), antes da divisão da denominada “Quinta de Fonte de Marcos”, fazia parte integrante da mesma.
5.º - Os Réus estão a levar a efeito no seu prédio a construção de uma habitação unifamiliar.
7.º - A construção referida na resposta ao quesito 5.º foi licenciada pela Câmara Municipal de Ponte de Lima.
8.º,9.º - No canto sul/nascente da parcela referida em C) existe uma abertura de 3,90 m de largura no muro, onde desemboca um caminho com a extensão de 223 m, e com largura mínima de 2,10 m, que, para sul e em linha recta, passa do lado nascente do prédio dos Autores aludido em A) e prossegue até ao antigo caminho da Corredoura, hoje estrada municipal.
10.º - Antes da partilha referida em B) e há mais de 20 anos por referência àquela, o caminho descrito na resposta conjunta aos dois quesitos anteriores era de pé posto, de acompanhamento a um rego de água e de carros de bois, até ao que hoje é a estrema sul do prédio aludido em A), numa extensão de cerca de 161,5 m a partir da estrada municipal.
11.º - À data da partilha, os Autores subscreveram um documento no qual declararam “constituída a favor de A… e marido D… (…) um caminho de passagem com a largura de 3,40 metros ao longo da extrema nascente do prédio de cultivo denominado «Campo do Fundo de Veiga» (…), que corre de sul para norte e vice-versa, que irá ligar ao caminho público de Fonte de Marcos”.
12.º - O caminho referido na resposta ao quesito anterior passou a fazer-se, após a partilha referida em B), por uma faixa de terreno em duro sobre o prédio aludido em A), do seu lado nascente, prolongando-se até à abertura do muro referida na resposta conjunta aos quesitos 8.º e 9.º, numa distância de 61,5 m e com largura entre o mínimo de 2,10 m e o máximo de 3,90 m.
13.º - Junto da Câmara Municipal, os Réus declararam, previamente à aprovação do projecto, que a parcela referida em C) confrontava a nascente com caminho público.
14.º - A Câmara Municipal solicitou à Junta de Freguesia de Gandra parecer sobre se a parcela confrontava ou não com caminho público.
17.º - A circulação, a qualquer hora, de veículos no caminho referido na resposta ao quesito 12.º incomoda os Autores.
18.º - Os Réus pretendem usar tal caminho para aceder ao seu prédio com veículos automóveis.
20.º - Aquando da partilha, era intenção dos Autores e de A… e marido D… que o caminho referido na resposta ao quesito 12.º se destinasse a fins agrícolas, com trânsito a pé, de carro de gado e tractor, utilização que era dada à respectiva área, antes da partilha, pelos antecessores dos Autores.
21.º - Bordejando o caminho descrito na resposta ao quesito 12.º existe, do lado nascente, uma oliveira centenária, junto à casa dos Autores e a 17,1 m do muro delimitador desta, para norte.
23.º - No presente, a largura do caminho junto àquela oliveira é de 2,10 m.
29.º,30.º - Do lado sul, a parcela aludida em C) confronta com um prédio rústico dos Autores, a que se segue outro prédio rústico de terceiros e, depois, o aludido em A).
31.º,32.º - Na estrada municipal, junto à igreja, existem uns tranqueiros que, em tempos, suportavam um portão da quinta da Fonte de Marcos.
34.º - Quando o portão da quinta estava fechado, as pessoas acediam a pé por uns degraus laterais.
38.º - O caminho referido na resposta conjunta aos quesitos 8.º e 9.º dá acesso, junto à oliveira e do lado poente, à propriedade de Manuel Gomes Costa.
40.º - Actualmente, existe um portão de acesso a uma propriedade de Manuel Bota Cerqueira, paralelo ao rego de água (referido na resposta ao quesito 10.º), para norte do muro referido na parte final da resposta ao quesito 21.º.
43.º - O carreiro de acompanhamento do rego de água continua pelo lado poente da parcela referida em C).
45.º - Os Autores servem-se do caminho referido na resposta conjunta aos quesitos 8.º e 9.º para aceder a uma garagem que têm do lado nascente do prédio referido em A).
57.º,58.º - O caminho referido na resposta ao quesito 10.º, e no período temporal aí referido, tinha um trilho marcado pelos pés, rodados de carros de bois e tractores, de forma permanente, e uma largura média de 2,5 m.

B. Há que ter presente que:
O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
Nos recursos apreciam-se questões e não razões;
Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.

Primeira Questão: Dizem os apelantes que os AA não formularam pedido de constituição de servidão e, por isso, nessa parte, a acção deve improceder.
Não se alcança integralmente esta arguição; na verdade, como poderiam os AA formular tal pedido sobre terreno que alegam pertencer-lhe?
O que claramente decorre da petição é que os AA reconhecem que existe uma servidão de passagem para fins agrícolas e pretendem obstar a que os RR a transformem numa servidão de passagem para habitação.
Formularam pedido consentâneo, isto é, que o Tribunal declarasse que eram donos do prédio e que sobre ele impendia a dita servidão.
Tal como peticionado, a sentença reconhece o direito de propriedade dos AA sobre o prédio e declara que sobre o mesmo incide um outro direito – o de servidão -, com as características ali discriminadas.
Acerca da mesma questão, e embora fora das conclusões, os apelantes digam coisa diversa – de que os AA não podem pedir reconhecimento da titularidade do terreno sobre o qual foi constituída a servidão sem, primeiro, pedirem o reconhecimento da servidão (cf. ponto 6.) – mas que também isso não pode colher.
Primeiro porque, independentemente da servidão, podiam pedir o reconhecimento da propriedade sobre aquela faixa de terreno e, depois, porque estava implícito no pedido e na factualidade alegada que a servidão se encontrava em terreno que diziam pertencer-lhes.
Improcede, assim.

Segunda Questão: Dizem, ainda, os recorrentes que no artº8º da sua Contestação alegaram que “são donos e legítimos possuidores de uma parcela de terreno, para construção urbana, com a área de 2650m2 que confronta de norte com Manuel Bota Cerqueira, sul com Maria Glória Bota Cerqueira, nascente com caminho e do poente com Albertina Fernandes Cerqueira”.
Que os AA aceitaram, por confissão, a referida factualidade (sua Contestação à Reconvenção no artº 2º) e que, do mesmo modo, assim o indica o teor dos documentos juntos aos autos.
Portanto, não pode deixar de ser dado como provado que o prédio dos RR confronta de nascente com caminho.
A confrontação do prédio dos RR com caminho foi desde logo, e antecipadamente, impugnada pelos AA em sede de petição inicial; na verdade, como bem sabem os RR, naquele articulado os apelados vieram a Tribunal dizer que não correspondia à verdade aquela confrontação e que os recorrentes só obtiveram autorização para construir porque, falsamente, se fez constar que o prédio confrontava com caminho.
Portanto, a aceitação da factualidade do artº 8º da reconvenção, feita no artº 2º da contestação à mesma, tinha de ser intrepretada com tal ressalva – a da impugnação antecipada – e, assim, não podia ser dado como provada a confrontação com caminho, com esse fundamento.
Quanto aos documentos, verificamos que nenhum deles faz prova plena quanto à invocada confrontação.
O primeiro (fls.336) traduz-se num requerimento de A… ao Presidente da Câmara para que permita um “destaque” e nele alega que o prédio confronta com caminho, talvez até pela sua relevância para o deferimento.
O segundo (fls.337 a 339) é uma certidão da CRP e, como é sobejamente sabido, a presunção registral consignada no artº 7º do Código do Registo Predial não abrange as circunstâncias descritivas, como a área e confrontações do prédio, não percepcionadas oficiosamente, antes, tão só, declaradas pelo interessado (cfr., neste sentido, entre outros, Ac. deste Tribunal , de 11-03-99, in CJ/STJ-AnoVII-tomo I, pág.150.)
Como se decidiu no Ac. RP de 15.3.93, in dgsi, JTRP00008121, “os elementos da identificação física dos prédios (situação, área e configuração) não são factos inscritos e não gozam de qualquer presunção de verdade material, quando constem da descrição.
O documento de fls.102 a 104 é uma escritura de doação que, por isso mesmo, não prova a materialidade do prédio, designadamente as suas confrontações.
Os documentos de fls.40, 42, 43 e 44 são ofícios da Junta de Freguesia e da Câmara que, por isso mesmo, também não fazem prova da identificação física dos prédios.
Daí que, não existindo prova tarifada quanto a saber se o prédio dos RR confronta, ou não, a norte com caminho público, este facto caía no domínio da livre apreciação da prova por que se rege o Tribunal a quo.
Ora, nesta matéria, como resulta da fundamentação da resposta à matéria de facto, o tribunal recorrido sustentou-se na inspecção ao local e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência e arroladas por ambas as partes que, por conhecerem o local, esclareceram o modo de acesso aos prédios e o trânsito neles feito.
E, repare-se, os recorrentes não alegam que a prova testemunhal tenha sido apreciada com erro, apenas invocando o teor dos documentos que foram analisados supra que, como vimos, não impedem resposta diversa do respectivo teor.
De acordo com o disposto no artº 712º, nº1, do Código de Processo Civil, em consonância com a posição dominantemente aceite pela jurisprudência, a reapreciação não poder subverter o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 655º do Código de Processo Civil.
Consta expressamente do preâmbulo do diploma que possibilitou a documentação da prova (Dec.Lei nº39/95 de 15/12) que “ … a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente na sua minuta de recurso”.
Ora, se os documentos não fazem prova plena da confrontação real dos prédios e se os recorrentes não invocam outro tipo de prova produzida que possa sustentar a sua tese, sendo certo que também não alegam que os depoimentos prestados não sustentam as respostas à matéria de facto, impoe-se concluir pelo acerto da mesma, que se mantém, deste modo, inalterada.

Quanto aos pontos 4 e 5 das conclusões tem, em primeiro lugar, de ser chamado à colação o que se consignou em sede de prova tarifada e de livre apreciação.
Ora, ao dar-se como provado – como aconteceu - que os AA subscreveram o documento de fls. 41 o Tribunal respeitou integralmente o teor desse documento.
Questão diferente é a do respectivo alcance jurídico que, por força da demais factualidade, nomeadamente a da resposta ao quesito 12º, não logrará obter o fim pretendido pelos recorrentes.
Todavia, os factos destes quesitos resultaram, como já se viu, da inspecção ao local e dos depoimentos testemunhais que não foram impugnados.
E, quando ocorre uma mudança do traçado da servidão, o respectivo direito é o mesmo – ensinava Tavarela Lobo ["Mudança e alteração da servidão", pág. 129, da ed. da Coimbra Editora, de 1984] – passando apenas a ter como objecto um novo caminho.


Sexta questão: Se, pelo caminho de servidão podem, ou não, passar carros.
Conforme ficou provado (resposta ao quesito 20), «Aquando da partilha, era intenção dos Autores e de A… e marido D… que o caminho referido na resposta ao quesito 12.º se destinasse a fins agrícolas, com trânsito a pé, de carro de gado e tractor, utilização que era dada à respectiva área, antes da partilha, pelos antecessores dos Autores».
E, como acertadamente se fez constar da sentença recorrida, o trânsito automóvel não é uma actualização dos veículos facultada pelo direito de servidão, como acontece na situação do carro de bois e do tractor, antes se configurando, realmente, como uma extensão do direito para veículos cuja finalidade é diversa – o transporte de passageiros.
Tenha-se, aliás, presente que constituindo a servidão predial, segundo a própria noção legal dada pelo artº 1543º do C.Civil, um “encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente…”, aumentando ou podendo aumentar o valor do prédio dominante, através do qual são gozadas as utilidades objecto da servidão, em detrimento do valor do prédio serviente, conforme o preceituado pelo artº 1544º do C.Civil, dúvidas não restam que este encargo representa uma excepção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente, ilimitado do direito de propriedade, consagrado pelo artº 1305º do C.Civil.
Assim, tal encargo, enquanto excepção, deve conter-se nos seus precisos limites e a actualização do seu conteúdo não pode traduzir-se num extravasamento do fim para que foi constituída.
No caso presente, é manifesto que uma servidão para fins agrícolas é substancialmente menos gravosa da que respeita à passagem de veículos automóveis para habitação, desde logo pela frequência de uso em que uma e outra se traduz.
Daí que a largura da servidão seja insuficiente para o reconhecimento do direito dos recorrentes de por ali passarem com veículos automóveis.

As sétima e oitava questões estao implicitamente respondidas na abordagem da resposta anterior, dando-se por reproduzido o que ali se escreveu, com excepção do abuso do direito, que se tratará de imediato.
Nos termos do artº 334ºº do CC, o abuso de direito ocorre apenas quando o respectivo titular o exerce excedendo manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo respectivo fim social ou económico.
Tipifica-se tal abuso de direito na utilização do poder contido e concedido na estrutura do direito, substantivo ou processual, com vista e para a prossecução de um interesse, mas que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido – Castanheira Neves – Questão de facto – Questão de direito, - I, pág. 513 e segts..
Para Galvão Telles, Obrigações, 3ª ed., pág. 58, para que exista abuso de direito será necessário que ele seja manifesto, ou seja, «Que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos neste artigo. O abuso de direito equivale à falta de direito, gerando as mesmas consequências jurídicas que se produzem quando uma pessoa pratica um acto que não tem o direito de realizar».
No caso dos autos, para sustentar o invocado abuso do direito dos apelados, os apelantes invocam, exactamente, a ausência desse direito, isto é, invocam que têm o direito a ali passar com automóveis e que os AA a isso obstam, pretendendo que a servidão não tenha esse âmbito.
Não é, manifestamente, uma situação de abuso de direito, pois que, para os recorridos acturarem em abuso, teriam de conter na sua esfera o direito e fazer dele um uso em limites ou contornos que exorbitasse o respectivo fim próprio ou o contexto em que ele devesse ser exercido.
Tanto basta para também improceder a arguição.


III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelos apelantes.
Guimarães, 19.01.2012
Raquel Rego
António Sobrinho
Isabel Rocha