Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
568/09.6GE GMR.G1
Relator: TERESA BALTAZAR
Descritores: AMEAÇA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/19/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: A conduta da arguida que, no seguimento de um desentendimento por questões de trânsito, depois de agredir corporalmente a assistente e sendo impedida de prosseguir a sua conduta por um terceiro, se dirigiu à assitente dizendo-lhe “amanha vou esperar por ti à escola para acabar com esta conversa”, pretendendo com isto significar que a iria agredir corporalmente no dia seguinte, o que fez com a intenção conseguida de lhe causar medo, inquietação e de a tolher na sua liberdade pessoal, integra o crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, n.º1 do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:

- Tribunal recorrido:
Tribunal Judicial de Guimarães - 1º Juízo Criminal (processo em que foi requerida a abertura de instrução).
- Recorrente:
O Ministério Público.
Objecto do recurso:

No processo, n.º 568/09.6GE GMR, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, foi decidido, nomeadamente, pronunciar a arguida Carla F..., pela prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 do Código Penal.


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Inconformado com a supra referida decisão, o Ministério Público, dela interpôs recurso (cfr. fls. 155 a 173), terminando a sua motivação com as conclusões constantes de fls. 170 a 173 e que aqui se dão integralmente como reproduzidas.
No essencial, pretende que se revogue o despacho de pronúncia na parte em que pronunciou a arguida pelo prática do crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 do Código Penal.
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A assistente Ana F..., apresentou resposta, de fls. 179 a 197, no sentido da improcedência do recurso.
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O recurso veio a ser admitido, tendo sido sustentada a decisão recorrida (despacho de fls. 199).
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O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, nesta Relação, emitiu parecer no qual conclui que o recurso não deverá merecer provimento (cfr. fls. 207 e 208).

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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do C. P. Penal, veio a arguida a apresentar resposta, a fls. 212 e 213, na qual pugna pela procedência do recurso do M. P. .

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para conferência, na qual foi observado todo o formalismo legal.
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- A) É de começar por salientar que, para além das questões de conhecimento oficioso, são as conclusões do recurso que definem o seu objecto, nos termos do disposto no art. 412º, n.º 1, do C. P. Penal.
- B) - Questões invocadas pelo recorrente:

- No essencial, pelas razões que indica, pretende o M. P. que se revogue o despacho da M.mª JIC na parte em que pronunciou a arguida pela prática do crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º, n.º 1 do Código Penal.
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- C) Teor do despacho recorrido – Decisão Instrutória de fls. 137 a 141 (transcrição parcial):
“Nos presentes autos o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida Carla F..., imputando a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
A fls. 84 e seguintes o Ministério Público proferiu despacho de encerramento do inquérito, arquivando os autos quanto ao denunciado crime de ameaça, por entender que a expressão “acabar com esta conversa”, referida na queixa, nada exprime ao nível de anúncio de um acto futuro, não havendo sinais de uma ameaça que caiba na previsão típica.
Não se conformando com o despacho de arquivamento referido, a assistente Ana F... veio requerer a abertura de instrução, pedindo a pronúncia da arguida pela prática de um crime de ameaça, também porque entende que a expressão proferida pela arguida anunciava um mal futuro, tendo, por isso, medo e inquietação na pessoa da assistente.
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Em sede de instrução foram analisados os meios de prova carreados para a fase de inquérito, foi reinquirida a testemunha José F... e foi inquirida a testemunha Jéssica A....

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O Tribunal é competente e não há nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Realizou-se o debate instrutório com obediência ao formalismo legalmente estabelecido para o efeito.
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Em conformidade com o disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário profere despacho de não pronúncia.
O que são indícios suficientes vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores, na esteira da doutrina e da jurisprudência seguida na vigência do Código de Processo Penal de 1929 Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 31.03.93, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVIII, tomo II, pág. 65, que serão os “vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado”.
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Da análise conjugada dos depoimentos prestados nas fases processuais de inquérito e instrução resulta que arguida e assistente se envolveram fisicamente, no modo melhor descrito na acusação pública deduzida.
Segundo as testemunhas inquiridas em sede de instrução a agressão perpetrada pela arguida só terminou devido à intervenção da testemunha José, o que terá determinado a arguida a dizer que no dia seguinte iria acabar com a conversa.
A questão que se coloca é a de saber se a expressão proferida pela arguida é susceptível de integrar a prática de qualquer facto ilícito.
Obviamente que tal expressão, se analisada de forma descontextualizada, não pode merecer a tutela jurídico-penal.
Todavia e porque existem indícios de que tal expressão foi proferida e que o foi no momento imediatamente a seguir à intervenção da testemunha José, a qual levou a que a arguida terminasse a agressão na pessoa da assistente, entendemos que não só tal expressão integra um anúncio de mal futuro como é adequada a causar medo e inquietação na pessoa da assistente, como indiciariamente se demonstrou que sucedeu.
As testemunhas inquiridas em fase de instrução, embora não soubessem precisar com grande exactidão, vieram dizer que durante um determinado período de tempo a assistente era acompanhada pela mãe nas idas à escola, pois tinha receio que a arguida lhe aparecesse.
Face ao exposto, entendemos que a factualidade vertida no requerimento de abertura de instrução não pode ser arredada de uma protecção penal e, consequentemente, deve ser sujeita a julgamento.

Assim sendo, decide-se Pronunciar a arguida Carla F..., pela prática dos seguintes factos:
- No dia 2 de Novembro de 2009, pelas 18h20m, na freguesia de Infias, concelho de Vizela, junto à escola Secundária, no seguimento de um desentendimento por questões de trânsito, a arguida que havia passado pela assistente Ana, no veículo de matrícula 19-20-..., parou esse veículo, dirigiu-se à assistente e agrediu-a corporalmente com várias bofetadas na face e empurrões, sendo impedida de prosseguir a sua conduta por José F...;
- em acto contínuo, verificando que não podia mais agredir a assistente, a arguida dirigiu-se a esta e disse-lhe “amanha vou esperar por ti à escola para acabar com esta conversa”;
- A arguida ao proferir tal expressão pretendia significar que iria agredir corporalmente a assistente novamente no dia seguinte, o que fez com a intenção conseguida de lhe causar medo, inquietação e de a tolher na sua liberdade pessoal;
- A arguida agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida pela Lei Penal.
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Face ao exposto, decide-se Pronunciar a arguida Carla F..., pela prática, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do Código Penal, em concurso real, com um crime de ameaça, p. e p. pelo art.º 153º, nº 1, do Código Penal, com fundamentos de facto e de direito constantes da acusação pública deduzida e do requerimento de abertura de instrução apresentado.”.

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- Vejamos, pois, as questões colocadas no recurso:

A arguida foi pronunciada por um crime de ameaça p. e p. pelo art. 153º, n.º 1, do C. Penal, por nas circunstâncias de tempo e lugar indicadas no despacho de pronúncia ter dito á ofendida: “amanhã vou esperar por ti á escola para acabar com esta conversa”.
O recorrente entende que esta expressão não tem relevância criminal.
Vejamos.
Dispõe o art. 153º, n.º 1 do C. Penal:
“1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias.”.
O bem jurídico tutelado na sobredita norma penal substantiva é a liberdade de determinação e de actuação, a tranquilidade e paz individual.
Para que o crime se mostre preenchido exige-se a ameaça de um mal futuro e a consciência por banda do destinatário de tal ameaça, a qual por seu turno deverá ser adequada a causar medo ou inquietação na pessoa do destinatário ou a tolher a sua liberdade de determinação.
O mal exigido é futuro – seja ele próximo (amanhã por exemplo) ou longínquo (daqui a um ano por exemplo) – irrelevando o mal iminente.
Quanto á adequação da ameaça entendemos que haverá que ter em consideração as concretas circunstância em que a mesma foi proferida, isto é, o contexto em que tal sucedeu, a forma como a ameaça foi dirigida, a sua credibilidade, a pessoa do seu autor e a pessoa visada.
Como bem afirmou o ilustre PGA no seu parecer neste Tribunal da Relação “Importa considerar não a expressão no seu conteúdo abstracto, mas, sim, no seu jeito concreto, na sua contextualização” (fls. 208).
No caso sub júdice, indicia-se que a ameaça surge logo após a ocorrência de uma agressão física perpetrada pela arguida na pessoa da ofendida agressão que só cessou porque aquela foi impedida, por um terceiro, de prosseguir com a mesma, pelo que a arguida ao confrontar-se com tal impossibilidade, dirigiu-se á ofendida e disse-lhe: “amanhã vou esperar por ti á escola para acabar com esta conversa”.
Perante esta contextualização fáctica, estamos inteiramente de acordo com o ilustre PGA nesta instância quando no seu já referido parecer salienta que “(…) a expressão usada e imputada à arguida possui feição de ameaça, de promessa de mal futuro, de específico mal futuro à integridade física da assistente porque, como consta da pronúncia, ela foi usada imediatamente à impossibilidade dela prosseguir a agressão física que vinha impondo à dita assistente. A impossibilidade de continuar a agressão verificou-se, como decorre da pronúncia, por via da intervenção da testemunha José F... que se opôs à mesma. A arguida ao dizer que amanhã iria "acabar esta conversa ", neste contexto, mais não quis afirmar, sem outro significado ou interpretação, todos reconhecerão, que amanhã prosseguiria a agressão que havia sido por si interrompida, contra sua vontade, por não desejada intervenção dum terceiro. (…)” (fls. 208).
Ainda quanto à adequação da ameaça, importa lembrar que no despacho recorrido se exarou que as testemunha inquiridas na instrução afirmaram que após a prática dos factos supra descritos e “durante um determinado período de tempo a assistente era acompanhada pela mãe nas idas á escola pois tinha receio que a arguida lhe aparecesse” (fls. 139).
Receio que se nos afigura de todo credível sendo a ofendida então uma jovem adolescente de 16 anos e a arguida já uma mulher de 42 anos.
Pelo exposto e a nível indiciário, não temos dúvidas que a expressão usada – que se em abstracto considerada poderia adquirir uma significância múltipla – tem afinal um manifesto potencial intimidatório e anuncia um mal sério, futuro e injusto de que no dia seguinte, a arguida voltaria a molestar a ofendida pelo menos na sua integridade física.
Temos em que e sem necessidade de mais considerações, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e manter-se a pronúncia da arguida pelo crime de ameaças tipificado no art. 153º, n.º 1 do C. Penal.
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- Decisão:
Pelo exposto, decide-se nesta Relação em julgar o recurso do Ministério Público como improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

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Sem custas.
Notifique / D. N.
(Texto processado em computador e revisto pela primeira signatária – artº 94º, nº 2 do CPP – Proc n.º 568/09.6GE GMR.G1).
Guimarães, 19 de Setembro de 2011