Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2828/05.6TBFLG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: MÚTUO
COMPRA E VENDA
TRANSFERÊNCIA DE FUNDOS
TRANSFERÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – Um Banco que aceita mutuar o dinheiro necessário à compra de um imóvel, tendo como contrapartida a hipoteca sobre esse imóvel, não é alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda. Muito pelo contrário, entre o negócio de mútuo que celebra com os compradores e a compra e venda que estes celebram com a vendedora, há uma relação de dependência fundada no carácter instrumental do mútuo relativamente à compra e venda.
2 – Sabendo o Banco que o pagamento do preço do imóvel foi efectuado através de uma ordem de transferência bancária preenchida pelos seus próprios serviços e assinada pelos compradores e mediante a qual a vendedora declarou estar paga, não podia, no dia seguinte, aceitar uma ordem de anulação dessa transferência, entregando o dinheiro em mão aos compradores.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

M.. intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra J.. e mulher R.., Á.. e Banco.., SA, pedindo:
a) Que se declare que todos os RR. actuaram com culpa na formação do contrato de compra e venda, sendo assim todos eles solidariamente responsáveis pelo prejuízo causado à A., que ascende ao montante de 47.500 € e juros vencidos e vincendos, contados desde 2005/04/14 até integral pagamento;
b) Que se declare que todos os RR. actuaram com claro e manifesto dolo, no intuito de enganarem a A., usando como artifício a entrega de documento para a transferência bancária de 47.500 €, que depois se limitaram, pura e simplesmente, a não cumprir, declarando-se anulável o negócio e restituindo-se tudo quanto tiver sido prestado;
Se assim não se entender:
c) Que se declare que a declaração de vontade da A. ocorreu nos termos que constam da escritura por se ter verificado um erro determinante e essencial, consubstanciado este no facto de a A., legitimamente, supor que o documento de transferência seria integralmente cumprido, o que não veio a ocorrer, situação que conduzirá de igual modo à anulação do negócio;
d) Que se declare que os 1.ºs RR. emitiram declaração contrária à sua vontade real com o intuito de enganar a A., levando-a a declarar o que não declararia, acaso conhecesse a desconformidade entre a declaração dos RR. e a sua vontade real;
e) Que se declare incumprido o contrato de compra e venda por parte dos 1.ºs RR. e igualmente por parte da 3.ª R., por não terem, aqueles, pago a totalidade do preço e esta por não ter procedido à transferência da parte do preço em falta para a conta da A., como estava obrigada após a entrega do documento que para tanto preparou e se mostrava assinado e lhe veio a ser entregue pela A. e, em consequência, condenados solidariamente estes RR. no pagamento a favor da A. da parte do preço em falta, no montante de 47.500 €, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4% até integral e efectivo pagamento.
Alegou, para tanto, ter celebrado com o 2.º R. um contrato-promessa de compra e venda, mediante o qual a A. prometeu comprar ao 2.º R., que prometeu vender-lhe ou à pessoa que esta viesse a indicar, o prédio que identifica, pelo preço de 50.000 €, que aquela pagou.
O 2.º R. outorgou a favor da A. uma procuração, através da qual lhe conferiu poderes para vender o aludido prédio misto.
Posteriormente, a A. ajustou com os 1.ºs RR. a venda do referido prédio, pelos valores de 65.000 € a parte urbana e 7.000 € a parte rústica. Para tanto, estes 1.ºs RR. solicitaram ao 3.º R., “Banco.., S.A.” um financiamento destinado à aquisição do dito prédio, no valor de 65.000 €.
Em 2005/04/14, no Cartório Notarial de Lousada, na presença da A., dos 1.ºs RR. e da representante do 3.º R., foi celebrada a escritura pública de compra e venda do prédio supra mencionado e de mútuo com hipoteca, através do qual a primeira, na qualidade de procuradora do 2.º R., declarou vender aos 1.ºs RR. o referido imóvel e estes se confessaram devedores à 3.ª R. da quantia global de 65.000 €, para garantia da qual constituíram a favor desta uma hipoteca sobre o descrito prédio. No decurso do acto, a A., questionada pelo Notário sobre se havia já recebido a totalidade do preço da aquisição, declarou que não. Nesse momento, os 1.ºs RR. assinaram uma ordem de transferência emanada da agência de Felgueiras do 3.º R. para débito da conta daqueles, no valor de 47.500 €, para crédito da conta da A.. Face a isto, a A. declarou na escritura encontrar-se totalmente paga.
Posteriormente, a A. apresentou a ordem de transferência devidamente preenchida e assinada pelos 1.ºs RR. na agência de Felgueiras do 3.º R., no entanto, esta não procedeu à pretendida transferência, invocando o cancelamento da mesma por parte do 1.º R. marido, que terá recebido a quantia correspondente em dinheiro, a fim de a entregar ao 2.º R..
Até ao momento, a A. não recebeu o montante de 47.500 € em causa.
Devidamente citado, o 2.º R. não contestou.
Contestaram os 1.ºs réus impugnando a versão dos facto trazida pela autora e alegando que só a conheceram no dia da escritura, não assinaram o documento para a transferência bancária, tendo todo o negócio sido feito com o 2.º réu, a quem pagaram a totalidade do preço
Contestou o Banco.., impugnando por falsidade ou desconhecimento a maior parte dos factos e alegando que não procedeu à transferência do dinheiro porque a mesma foi cancelada por parte dos titulares da conta a debitar.
Replicou a autora, reafirmando o já alegado na petição inicial e pedindo a condenação dos réus como litigantes de má fé em multa e indemnização a favor da autora em montante nunca inferior a € 7500,00.
Elaborou-se despacho saneador com selecção da matéria de facto relevante para a discussão da causa.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que absolveu todos os réus dos pedidos formulados pela autora nos pontos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do seu petitório e condenou solidariamente os 1.ºs réus J.. e mulher e o 3.º réu Banco a pagarem à autora a quantia de € 47.500,00, acrescida de juros de mora contados desde 15/04/2005. Mais condenou os 1.ºs réus como litigantes de má fé em 5 UC de multa e no reembolso à autora do montante de € 1452,00 a título de despesas, acrescido de juros de mora contados desde o trânsito em julgado da decisão.
Discordando da decisão, dela interpôs recurso o Banco, requerendo a atribuição de efeito suspensivo, com prestação de caução, recurso que foi admitido, como de apelação com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo.
Nas alegações, o apelante apresentou as seguintes
Conclusões:
I. O Banco Recorrente apenas e tão-somente não procedeu à execução da ordem de transferência entregue pela Autora, porquanto, no mesmo dia, em 2005.04.14, os Co-Réus J.. e R.., seus clientes, entregaram-lhe, por escrito, um pedido de revogação da referida ordem de transferência.
II. A ordem de revogação foi emitida pelos titulares da conta a debitar e entregue ao Banco Recorrente antes da ordem de transferência estar consumada.
III. No seguimento do pedido de revogação da ordem de transferência em causa, os referidos Co-réus informaram o funcionário do Banco Recorrente que iriam proceder ao pagamento, em numerário, do preço em falta pela aquisição dos imóveis, ao proprietário dos mesmos.
IV. Assim, não se poderá considerar que o Banco Recorrente deveria ter recusado o levantamento dos referidos montantes, com base de que esse facto “claramente indicaria que os 1ºs RR. se preparavam para não cumprir a sua obrigação emergente do contrato de compra e venda”, quando no próprio momento do seu levantamento, é explicado ao funcionário do Banco Recorrido que aquele levantamento era precisamente para proceder ao cumprimento da referida obrigação junto do proprietário dos imóveis.
V. Sendo o Banco Recorrente alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda em causa, o Banco Recorrente, confiando na ordem dos seus clientes, entregou-lhes a quantia em causa.
VI. O Banco Recorrente nunca teve qualquer intenção de enganar ou prejudicar a Autora, desconhecendo, nomeadamente, o tipo de relacionamento e entendimento existente entre a Autora e os restantes Réus.
VII. A anulação por parte do Banco Recorrente da ordem de transferência em causa, executando, assim, a ordem de revogação, surge na sequência do pedido do próprio ordenador!
VIII. A transferência bancária, tida por uma operação abstracta, é formada, na sua estrutura, por dois elementos: a ordem de transferência e a execução dessa ordem.
IX. A transferência consuma-se quando os fundos ficam à disposição do beneficiário, sendo perspectivada como um mandato nos termos do art. 1170.º do Código Civil.
X. Destinando-se a transferir determinado valor de um património para outro, a operação bancária - ordem de transferência - produzirá o efeito de pagamento, no momento em que é creditada a conta do beneficiário.
XI. O poder liberatório da transferência é convencional e não legal, já que resulta de convenção ou acordo entre o devedor – os Co-réus J.. e R.. - e o credor – a Autora.
XII. Como contrato (mandato) entre ordenante e o respectivo banco, se bem que em beneficio de um terceiro, a “transferência é autónoma de outras relações tanto constituídas a montante (relação causal entre ordenante e beneficiário) como a originadas a jusante da operação e por esta própria.” (João Simões Patrício, Direito Bancário Privado, pág. 226)
XIII. Parece legítimo defender que, salvo clausula em contrário, a regra é a da
revogabilidade da ordem de transferência até ao momento da sua execução final, ou seja, antes da transferência dos fundos para a conta do beneficiário.
XIV. O Banco Recorrente não pode ser responsabilizado por uma ordem emitida pelos seus próprios clientes, titulares da conta a debitar, quando ainda não tinha procedido à execução da ordem de transferência e a ordem de revogação lhe havia sido entregue no mesmo dia, com justificação da mesma.
XV. A existir responsabilidade esta é tão-somente imputável aos Co-réus J.. e R.. que emitiram a ordem de revogação, bem como induziram o Banco Recorrente em erro ao informarem que iriam proceder ao cumprimento do negócio entregando a quantia em causa em numerário ao proprietário dos imóveis.
XVI. É verdade que, a Autora pode exigir directamente ao Banco Recorrente o cumprimento da ordem de transferência, devendo esta ser cumprida no mesmo dia em que é entregue, quando se tratam de transferências entre a mesma instituição bancária.
XVII. Todavia, também, é verdade que, no mesmo dia em que a ordem de transferência deveria ter sido cumprida e antes desta estar executada, o Banco Recorrente recebe dos seus clientes, Co-Réus, titulares da conta a debitar, uma ordem de revogação dessa ordem de transferência.
XVIII. Pelo que, o Banco Recorrente atendendo às características da operação bancária em causa e à relação de mandato entre o cliente e seu banco actuou de forma lícita, não existindo “responsabilidade civil contratual quer na responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana do Banco”, não sendo devida qualquer quantia à Autora a título de indemnização.
XIX. Foi o comportamento dos Co-réus J.. e R.. que causou o prejuízo da Autora.
XX. O Banco Recorrente não teve qualquer culpa ou intenção de prejudicar a Autora.
XXI. Assim sendo, o Banco Recorrente deverá ser totalmente absolvido do pedido.
Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente e que seja substituída a sentença recorrida por outra da qual resulte a absolvição do Banco recorrente.

A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se o Banco incorreu em responsabilidade perante a autora ao aceitar a ordem de cancelamento de uma transferência bancária que havia sido emitida no dia anterior pelos seus clientes a favor daquela e com conhecimento do Banco.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1) Teor do documento n.º 2, junto a fls. 23 a 24 dos autos, que se dá como reproduzido (MFA) – procuração do réu Álvaro a favor da autora.
2) Mediante escrito particular datado de 2004/09/27, a A. e o 2.º R. Á.., prometeram, a primeira comprar e o segundo vender, respectivamente, pelo preço global de 50.000 €, o seguinte prédio misto, composto de um prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 289 e por um prédio rústico designado como “Campo do Quintal”, inscrito na matriz rústica sob o art.º 851, sitos no Lugar de Agra de Cima, freguesia de Torrados, concelho de Felgueiras, descritos na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 00233/110490, conforme documento n.º 1 junto a fls. 21 e 22 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (BI).
3) A A. e o 2.º R. declararam em tal documento que o preço havia sido pago na sua totalidade pela primeira ao segundo no acto de assinatura desse contrato (BI).
4) Nesse contrato, o R. supra indicado obrigou-se a vender à A. ou a pessoa que esta viesse a indicar o referido prédio “livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades” (BI).
5) O referido contrato foi devidamente assinado pela A. e pelo R. Á.. (BI).
6) Posteriormente aos factos mencionados em 1) a 5), a A. veio a ajustar a venda dos dois identificados prédios urbano e rústico aos 1.ºs RR. J.. e mulher, R.., tendo declarado o valor de 65.000 € para o prédio urbano e 7.000 € para o prédio rústico (BI).
7) Os 1.ºs RR. vieram a solicitar, previamente, à 3.ª R. – Banco.., S.A. – um financiamento destinado à aquisição dos dois prédios identificados no referido documento, no valor global de 65.000 € (MFA).
8) Foi feito registo provisório da aquisição dos dois citados prédios a favor dos RR. J.. e R.. e registo provisório da hipoteca a favor da 3.ª R., respectivamente pelas inscrições G-Ap. 34 e C- AP. 35, ambas de 2005/03/08 (MFA).
9) Em 14 de Abril de 2005, cerca das 10h30-11h00, no Cartório Notarial de Lousada, perante o Notário, compareceram a A., na qualidade de procuradora do 2.º R., Á.. os 1.ºs RR. J.. e mulher, R.., e a 3.ª R., Banco.., S.A., e celebraram a escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, através da qual declararam vender aos 1.ºs RR. os prédios urbanos e rústico supra descritos (MFA).
10) …Na qual, além da mencionada aquisição, os 1.ºs RR. se confessaram devedores à 3.ª R. da quantia global de 65.000 €, tudo conforme documento n.º 4 junto a fls. 32 a 41, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (MFA).
11) No dia e hora da outorga da escritura referida, após a sua leitura e antes de se proceder à aposição das respectivas assinaturas, o Notário questionou a A. sobre se esta tinha, ou não, recebido o preço da compra e venda que constava da escritura (BI).12) A A. respondeu que o preço não se mostrava ainda totalmente pago, faltando receber a quantia de 47.500 €, remanescente do preço que os 1.ºs RR., ali compradores, ainda não haviam liquidado (BI).
13) Então, e na presença de todos os outorgantes, isto é, da vendedora, dos compradores, da representante da 3.ª R., Dr.ª M.., do Notário, da Ajudante do Notário e ainda na presença do agente que intermediou a venda, J.., foi colocada para assinatura dos 1.ºs RR. uma ordem de transferência emanada da agência de Felgueiras da 3.ª R., por débito da conta dos 1.ºs RR. com o n.º 238328640018, datada de 2005/04/14, no valor de 47.500 €, para crédito da conta da A. com o n.º 2382/6905/0000 (BI).
14) …Ordem de transferência bancária da conta dos 1.ºs RR. para a conta da A. que eles, 1.ºs RR., de imediato assinaram, na presença de todos os intervenientes (BI).
15) Isso motivou que a A. se tivesse declarado paga (BI).
16) …E que todos os intervenientes na escritura tivessem aposto nesta as suas assinaturas (BI).
17) Finalizada a escritura, a A., de posse desse documento, deslocou-se de Lousada para Felgueiras, dirigindo-se directamente para a agência que a 3.ª R. possui nesta localidade, onde chegou ao final da manhã, e aí procedeu à entrega no balcão do “Banco.., S.A.” ao funcionário, Sr. E.. da Ordem de Transferência (BI).
18) A A. aguardou que a transferência fosse efectuada na própria manhã ou, quando muito, da parte da tarde para a sua conta bancária (BI).
19) No dia 2005/04/15, a A. foi à agência da 3.ª R. em Felgueiras, pouco depois das 9h00 da manhã, e aí questionou porque não estava o valor constante da Ordem de Transferência na sua conta (BI).
20) Foi-lhe então dito que o 1.º R. marido teria comparecido nesse mesmo dia 2005/04/15, pelas 9h00 da manhã, na agência, e que teria procedido ao levantamento em dinheiro da quase totalidade do saldo que tinha à ordem (BI).
21) Na agência não foi explicado à A. o motivo de não ter sido cumprida a ordem de transferência de débito da conta dos 1.ºs RR. para a conta da A. (BI).
22) Entretanto, contactado o gerente da 3.ª R. em Felgueiras, este afirmou que o 1.º R. marido procedera ao levantamento global e que o iria entregar ao 2.º R. Á.. (BI).
23) …Confirmou também que não havia, de facto, a partir de 2995/04/15, saldo suficiente na conta para cumprir a ordem de débito (BI).
24) …Embora o houvesse, como confessou, no momento em que o R. marido procedeu ao levantamento da quantia (BI).
25) Se tal ordem de transferência não lhe tivesse sido entregue, nunca a A. teria assinado a escritura (BI).
26) Essa ordem foi preenchida e preparada pela 3.ª R. para os compradores assinarem (BI).
27) Os RR. não procederam ao pagamento à A. da quantia de 47.500 € (BI).
28) O 2.º R. não fala com a A., nem com interpostas pessoas, tão pouco referindo se recebeu dos 1.ºs RR. a quantia referida e se, tendo-a recebido, lhe deu algum destino (BI).
29) A 3.ª R. tinha conhecimento da existência de fundos na conta dos 1.ºs RR. suficiente para a efectivação da transferência bancária, por ter sido ela própria que, na sequência da assinatura da escritura de compra e venda e de mútuo com hipoteca, procedeu à colocação da totalidade do valor que emprestara aos 1.ºs RR. (BI).
30) A A. não recebeu a totalidade do preço da venda dos prédios supra referidos (BI).
31) Os 1.ºs RR. sabiam que a A. só havia celebrado a escritura por confiar em que tal Ordem de Transferência seria cumprida (BI).
32) A 3.ª R. não procedeu à transferência de acordo com a ordem emitida no acto da escritura pública de compra e venda supra aludida, por tal ordem ter sido alvo de cancelamento por parte dos titulares da conta a debitar (BI).
33) Os 1.ºs RR. J.. e R.. habitaram o prédio urbano supra indicado desde cerca de 1999 (BI).
34) Os mesmos acordaram com o proprietário do imóvel, Á.., que fariam obras no prédio, a expensas dos primeiros (BI).
35) …Em contrapartida, estes poderiam ocupar o imóvel por um determinado período sem pagarem renda (BI).
36) Por volta do mês de Outubro de 2004, o R. Á.., acompanhado por um senhor, de nome J.., conhecido por Pedro, travaram uma conversa com o R. J.., tendo esses, nessa altura, proposto a este a compra e venda dos prédios que este último ocupava (MFA).
37) Nessa ocasião, o R. Á.. e esse Sr. Pedro disseram ao co-R. J.. e R.. que eram sócios na comercialização de veículos automóveis e que eram proprietários de um stand de automóveis em Paços de Ferreira, tendo inclusivamente o co-R. J.. chegado a comprar aí um veículo automóvel (MFA).
38) Foram travados alguns contactos entre o co-R. J.. e o co-R. Á.. na tentativa de celebração do negócio de compra e venda dos prédios (BI).
39) O co-R. Á.., a maioria das vezes acompanhado pelo Sr. Pedro, começou a procurar, por diversas vezes, o co-R. J.., fazendo-lhe sucessivas propostas tendentes à concretização do negócio (MFA).
40) Os RR. J.. e R.. tiveram necessidade de pedir um financiamento por valor superior ao acordado para a venda, o que levou a que o preço declarado na escritura fosse superior ao real (BI).
41) Volvidos que foram alguns dias desde essa data, o co-R. J.. foi procurado pelo co-R. Á.. e pelo Sr. Pedro, tendo-lhes estes, nessa altura, pedido o fornecimento de vários documentos pessoais, bem assim do seu agregado familiar, destinados a serem entregues a um mediador imobiliário, que seria a pessoa encarregue de tratar da documentação tendente à concessão do crédito bancário (BI).
42) …O que veio a acontecer (BI).
43) O co-R. Á.. e o Sr. Pedro foram quem auxiliou esse Sr. João em todos os trâmites necessários à concessão do crédito bancário (BI).
44) Aprovado o crédito bancário para aquisição dos ditos prédios, foi marcada a escritura pública de compra e venda e esse facto foi comunicado ao co-R. J..(BI).
45) No dia e hora acordados para a celebração da escritura compareceram no Cartório Notarial de Lousada o Sr. Pedro acompanhado por uma senhora, que os co-RR. J.. e R.. não conheciam, tendo nessa data sido afirmado pelo Sr. Pedro que quem assinava era essa senhora, que a mesma era sua namorada e que tratava dos negócios do próprio Á.. (BI).
46) No dia seguinte ao da celebração da escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, ou seja, no dia 15 de Abril de 2005, data essa em que o dinheiro mutuado já estava disponível, o co-R. J.. e o co-R. Á.. encontraram-se em frente à instituição bancária “Banco..”, agência de Felgueiras (BI).
47) …Para levantarem a quantia aludida em 27) (BI).

Entende o apelante que foi o comportamento dos co-réus J.. e R… que causou o prejuízo da autora, não tendo tido o Banco recorrente qualquer culpa ou intenção de prejudicar a autora, uma vez que, no próprio dia em que lhe foi entregue a ordem de transferência, e antes daquela ser executada, recebeu ordem de revogação da mesma, dos seus clientes, titulares da conta a debitar, o que não podia deixar de acatar tendo em conta que na transferência bancária, sendo uma operação abstracta, pode ser revogada a ordem de transferência até ao momento da sua execução final, ou seja, antes da transferência de fundos para a conta do beneficiário. Mais alega que o Banco era alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda em causa pelo que, confiando na ordem dos seus clientes, entregou-lhes a quantia em causa.
Ora bem!
Desde logo dir-se-á que não pode o apelante alegar que era alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda celebrado entre a autora e os réus J… e R...
Como muito bem se diz na sentença sob recurso, o Banco interveio neste processo como entidade financiadora da aquisição por parte dos 1.ºs réus do prédio em causa. Para tanto foi celebrado entre eles um contrato de mútuo garantido por hipoteca sobre os referidos prédios, ou seja, os 1.ºs réus não teriam adquirido os prédios sem que o Banco lhes mutuasse a quantia necessária, nem o Banco teria mutuado tal quantia sem registar hipoteca sobre os prédios vendidos pela autora.
Estamos, portanto, perante uma relação de dependência fundada no carácter instrumental do mútuo relativamente à compra e venda, ou seja, funcionando esta como motivo daquele – veja-se Antunes Varela, in «Das Obrigações em Geral», vol. I, 10.ª edição, pág. 282 e 283.
Atendo-nos aos factos, vemos que a autora transmitiu o direito de propriedade do imóvel para os 1.ºs réus; em consequência, estes cumpriram a sua obrigação de garantia, através da hipoteca, no âmbito do contrato de mútuo; por este motivo, o 3.º réu, Banco, entregou-lhes o montante mutuado para pagamento do preço à autora.
E como foi feita esta entrega do montante mutuado?
No acto da escritura pública foi perguntado pelo Notário se a autora se encontrava paga, ao que esta respondeu que não, tendo a representante do Banco aí presente, entregue aos 1.ºs réus um formulário para transferência bancária do montante mutuado da conta dos 1.ºs réus para a conta da autora, integralmente preenchido pelos serviços do Banco e que os 1.ºs réus se limitaram a assinar e a entregar à autora que, assim, se considerou paga, tendo sido a escritura assinada por todos.
Foi exactamente esta ordem de transferência bancária que a autora de imediato fez ingressar numa agência do Banco.
Ou seja, não pode dizer-se que o Banco foi alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda. Muito pelo contrário, entre o negócio de mútuo que celebrou com os 1.ºs réus e a compra e venda que estes celebraram com a autora, há, como já vimos, uma relação de dependência fundada no carácter instrumental do mútuo relativamente à compra e venda.
O Banco sabia que o pagamento do preço da compra e venda foi feito através da ordem de transferência bancária que ele próprio preencheu e que só depois de assinada a mesma pelos 1.ºs réus a autora se declarou paga.
Contudo, o Banco acabou por não executar a referida ordem de transferência, motivo pelo qual, a autora deixou de receber o preço devido pelos 1.ºs réus e relativo àquela compra e venda.
Não pagou à autora em consequência de uma ordem de anulação da transferência entretanto recebida.
Como já decorre do que ficou dito, não podia aceitar essa anulação.
Não estamos aqui no domínio das relações bancárias abstractas, em que se desconhece o motivo concreto que está na origem dos actos. Neste caso o Banco teve intervenção directa no negócio que era a causa da transferência e o próprio montante em causa foi disponibilizado no âmbito de um contrato de mútuo que se destinava especificamente ao pagamento do preço da compra de um prédio, preço esse que era devido à autora, como vendedora do mesmo prédio.
Daí que se concorde inteiramente com o sentenciado na 1.ª instância, designadamente, quando aí se diz: «…é manifesto que a actuação do 3.º réu – não cumprindo a ordem de transferência e, ao invés, entregando o dinheiro correspondente ao preço do contrato de compra e venda, em mão, ao comprador -, não se afigura conforme às exigências ético-jurídicas do caso…Consequentemente, a conduta do 3.º réu afigura-se violadora do princípio da boa fé, sendo de lhe impor actuação distinta no caso vertente…pelo que se conclui que, também o 3.º réu incumpriu uma obrigação que sobre si impendia ao não cumprir a ordem de transferência por si preenchida e entregue pela autora».
Ora, incidindo sobre o devedor uma presunção de culpa pelo não cumprimento da sua prestação – artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil – que não foi ilidida (veja-se que o Banco, perante a “estranha” ordem de anulação da transferência, nem sequer diligenciou por contactar as restantes partes envolvidas e, sobretudo, por averiguar junto da autora se se haviam alterado os pressupostos que estiveram na base da assinatura da escritura pública de compra e venda no dia anterior), também este Banco, 3.º réu e ora apelante, deverá indemnizar a autora pelo prejuízo causado.
Isto é assim do ponto de vista contratual.
Do ponto de vista extra-contratual, a teorização sobre a responsabilidade por facto ilícito em relação aos direitos de crédito tem evoluído consideravelmente nos últimos tempos e, já a 24/04/1990, se defendeu num Acórdão da Relação do Porto, in BMJ 396, pág. 432, relativamente ao cheque, que «o banco sacado que aceitou a ordem de revogação do cheque, desrespeitando o comando do artigo 32º, primeira parte, da Lei Uniforme, incorre, perante o tomador do cheque, em responsabilidade não-cambiária, fundada no artigo 483º, n.º 1 do Código Civil».
Aliás, já Alberto Luís, in «Direito Bancário», Livraria Almedina, Coimbra, 1985, pág. 133, defendia que «a inexistência de um direito de acção contra o banco (do ponto de vista contratual) não significa, necessariamente, a sua irresponsabilidade. Na verdade, o portador dum cheque tem a legítima expectativa de o ver pago desde que haja fundos disponíveis, sendo esse, aliás o normal comportamento do banco que recebe a ordem. É certo que o banco não tem obrigação de pagar, mas estará isento de responder pelo dano provocado por uma recusa ilegítima?»
Na sequência desta evolução doutrinal e jurisprudencial, é hoje possível defender-se a responsabilidade do banco que recusou pagar um cheque apresentado a pagamento dentro do prazo legal de oito dias, com fundamento em revogação do cheque – assim praticando um acto ilícto, por violação do artigo 32º da LU – responsabilidade essa que será extra contratual e perante o portador pelos danos que assim lhe causou.
E o que aqui se diz quanto ao cheque, resulta, também, quanto à transferência bancária, adaptando-se o que tem de ser adaptado, designadamente, face à sua não inclusão na LUCheque, mas considerando a sua idêntica finalidade quanto ao pagamento. E veja-se que, neste caso, a transferência bancária foi exactamente a forma encontrada pelos diversos intervenientes para pagar o preço da compra dos imóveis, como poderia (e, normalmente, é) ser um cheque.
Aliás, diga-se que se o Banco sacado pudesse optar entre transferir ou não transferir o dinheiro para a conta do portador da ordem de transferência, estava «por seu alvedrio e critério, a atribuir a um acto (revogação) efeitos que a lei diz que o mesmo não tem (relativamente ao cheque), com óbvio prejuízo do portador e da geral confiança na circulação do título» - Ac. do STJ de 05/07/2001, in CJ/STJ, ano IX, tomo II, pág. 146.
A questão levantado pelo apelante quanto ao facto de a transferência bancária se consubstanciar num contrato de mandato entre o ordenante e o respectivo Banco, podendo, em consequência revogá-la até ao momento da execução final (para além do que já se disse, mesmo do ponto de vista contratual) não obsta às considerações acabadas de enunciar, uma vez que eventual acção de perdas e danos não teria por fundamento a violação do contrato de mandato relativo à transferência bancária, mas resultaria, sim, dos princípios de direito comum, mais concretamente, da responsabilidade civil extra-contratual, fazendo o Banco responder nos termos gerais pelo prejuízo causado a quem deveria beneficiar efectivamente do dinheiro.
Pelo que improcedem as conclusões do apelante, mantendo-se a sentença recorrida.

Sumário:
1 – Um Banco que aceita mutuar o dinheiro necessário à compra de um imóvel, tendo como contrapartida a hipoteca sobre esse imóvel, não é alheio às condições contratuais do negócio de compra e venda. Muito pelo contrário, entre o negócio de mútuo que celebra com os compradores e a compra e venda que estes celebram com a vendedora, há uma relação de dependência fundada no carácter instrumental do mútuo relativamente à compra e venda.
2 – Sabendo o Banco que o pagamento do preço do imóvel foi efectuado através de uma ordem de transferência bancária preenchida pelos seus próprios serviços e assinada pelos compradores e mediante a qual a vendedora declarou estar paga, não podia, no dia seguinte, aceitar uma ordem de anulação dessa transferência, entregando o dinheiro em mão aos compradores.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
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Guimarães, 31 de Maio de 2011
Ana Cristina Duarte
Maria Rosa Tching
Espinheira Baltar