Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
74/12.1TBVVD.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: OMISSÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O art.º 662º. do C.P.C. configura a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento. Assim, não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.
II – Em sede de responsabilidade civil extracontratual, no que se refere às condutas omissivas, se é certo inexistir um dever genérico de evitar a ocorrência de danos, é indiscutível que o dever de agir para prevenir o perigo de dano de outrem impõe-se quando esse dever resulte da lei ou de um contrato de assistência ou de vigilância, ou quando o perigo de dano resulte de um facto praticado ou de uma situação mantida.
III - A ilicitude tanto pode consistir na violação de um direito (absoluto) de outrem, como na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou ainda no incumprimento dos chamados deveres de segurança no tráfego que, porém, hão-de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito.
IV - A causalidade, que funciona como pressuposto de responsabilidade civil e como molde para a fixação da indemnização, comporta as duas formulações da teoria da causalidade adequada – a positiva e a negativa, nos termos da qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação.
V - Ainda que sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, para a produção do dano podem intervir outros factos, do próprio lesado ou de terceiro, sendo que ocorrendo um concurso de causas adequadas e simultâneas ou subsequentes qualquer dos autores é responsável pela reparação de todo o dano.
Decisão Texto Integral: - ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO
I.- A A. L… intentou a presente acção de condenação, sob a forma sumária, contra a “C…, S.A.” pretendendo obter desta o pagamento da quantia global de € 16.852,11, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados da data da citação até efectivo e integral pagamento, liquidando pela referida importância a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe resultaram de uma queda ocorrida em 23/01/2009, pelas 00:15 horas, nas instalações da Ré sitas em Vila Verde.
A Ré contestou e requereu a intervenção da “Companhia de Seguros…” fundamentando num contrato de seguro que celebraram, pelo qual transferiu para esta a responsabilidade de indemnizar os danos sofridos por terceiros resultantes de acidentes ocorridos dentro das suas instalações.
A Chamada contestou e os autos prosseguiram os seus termos vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu a Ré do pedido.
Inconformada, traz a Autora o presente recurso pretendendo inverter o sentido da decisão.
Contra-alegou a Ré propugnando para que se mantenha o decidido.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II.- A Apelante funda o recurso nas seguintes conclusões (omissis quanto à matéria de facto transcrita de 1.ª a 15.ª):
16.ª - Conforme depuseram as testemunhas arroladas pela demandante, E…, M… e J… foram claros e objectivos, sendo peremptórios a afirmar que chovia muito e que, em consequência disso, com a entrada e saída de pessoas o piso acabou por ficar molhado, todas (testemunhas) tendo visto a demandante escorregar e cair,
17.ª - sendo certo que as testemunhas R… e J…, funcionários da demandada, nem tampouco se aperceberam que estava a chover: - certamente contactavam-se com o público, com os fregueses, através de um canudo…
18.ª - Quanto às alíneas a) e b) da matéria de facto dita não provada afigura-se-nos ser de inteira razoabilidade dá-las como matéria de facto provada.
19.ª - Os funcionários da demandada agiram com a mais profunda negligência, com um bocadinho, muito pequeno, de zelo e de cuidado, coisa que eles compreenderiam se a sinistrada fosse sua mãe… pois o seu zelo e cuidado ficou muito distante da diligência de um bonus pater familiae…
20.ª - A sentença recorrida, mercê da brutal negligência, grosseira, violou o disposto nos artigos 483º, 486º, 562º, 563º, 564º e 566º, todos do Cód. Civil.
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III.- A Ré, contra-alegando, defende que a decisão da matéria de facto, quanto aos factos impugnados, deve ser mantida por se extrair do depoimento das testemunhas J…, E… e M… e M… que o piso da Agência de Vila Verde não é liso nem escorregadio e por se ter julgado provado que os serviços de limpeza às referidas instalações se efectuam diariamente após o fecho das instalações ao público, ou seja, após as 15:30.
Entende não ser de se lhe exigir que num dia de chuva intensa com a entrada e saída dos clientes com os seus guarda-chuvas e sapatos molhados, tenha uma empregada de limpeza “sistematicamente a limpar a toda a hora o chão”, e considerado o temporal que se fazia sentir no dia 23/01/2009 os serviços de limpeza não iriam alterar o resultado do ocorrido, evitando o sinistro.
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IV.- Como resulta do disposto nos art.os 608º., nº. 2, ex vi do artº. 663º., nº. 2; 635º., nº. 4; 639º., n.os 1 a 3; 641º., nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
De acordo com o que acima se deixou transcrito cumpre:
- reapreciar a decisão da matéria de facto quanto aos dois pontos de facto impugnados;
- decidir, com base na facticidade provada, se a Apelante tem o direito à indemnização que reivindica.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
IV.- Como acima se deixou referido, a Apelante pretende ver alterada a decisão sobre a matéria de facto.
i) Se a parte recorrente pretender impugnar aquela decisão tem de, obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, cumprir com o disposto em cada uma das alíneas do n.º 1 do art.º 640.º, do C.P.C.: indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida.
Quando tenham sido gravados os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terá ainda o recorrente de indicar, com exactidão, as passagens da gravação em que se funda, de acordo com o dever imposto pelo n.º 2 do referido preceito legal.
Na situação sub judicio a Apelante cumpriu com os deveres acima referidos e, por isso, cumpre reapreciar a decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos que impugna.
ii) O art.º 662º. do C.P.C. configura a reapreciação da decisão da matéria de facto dando-lhe a configuração de um novo julgamento.
Assim é que a alteração da decisão sobre a matéria de facto, que, em princípio, e já que estão em discussão direitos de natureza disponível, se restringirá à parte que foi delimitada pelo recurso, é agora um poder vinculado da Relação, desde que se verifiquem os pressupostos referidos no n.º 1, ou seja, quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A intenção do legislador foi, como consta da “Exposição de Motivos”, a de reforçar os poderes da Relação no que toca à reapreciação da matéria de facto.
Deste modo, mantendo-se os poderes cassatórios que permitem à Relação anular a decisão recorrida, nos termos referidos na alínea c) do nº. 2, e sem prejuízo da possibilidade de ser ordenada a devolução dos autos ao tribunal da 1ª. Instância, reconheceu-se agora à Relação o poder/dever de investigação oficiosa.
Não estando limitada pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, na reapreciação da matéria de facto, a Relação avalia livremente todas as provas carreadas para os autos e valora-as e pondera-as, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção.
Constitui ainda poder vinculado da Relação realizar as diligências de renovação da prova quando houver dúvidas sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, e de produção de novos meios de prova se houver dúvida fundada sobre a prova realizada, ou seja, sobre o sentido da decisão de facto tomada pelo tribunal a quo.
O objectivo primordial é o de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, que é pressuposto de uma decisão justa.
As regras de julgamento a observar pela Relação são as mesmas que se impõem ao tribunal da 1ª. Instância: tomar-se-ão em consideração os factos admitidos por acordo, os que estiverem provados por documentos (que tenham força probatória plena) ou por confissão, desde que tenha sido reduzida a escrito, extraindo-se dos factos que forem apurados as presunções legais e as presunções judiciais, advindas das regras da experiência, sendo que o princípio basilar continua a ser o da livre apreciação das provas, relativamente aos documentos sem valor probatório pleno, aos relatórios periciais, aos depoimentos das testemunhas, e agora inequivocamente, às declarações da parte – cfr. art.os 466º., nº. 3 e 607º., n.os 4 e 5 do C.P.C., que não contrariam o que acerca dos meios de prova se dispõe nos art.os 341º. a 396º. do Código Civil (C.C.).
Como dispõe o art.º 341.º, supra referido, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Sem embargo, não se exige que a demonstração conduza a uma verdade absoluta (objectivo que seria impossível de atingir) mas tão-só a um elevado grau de probabilidade, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 191 e 192).
Quem tem o ónus da prova de um facto tem de conseguir “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto”, como referem Antunes Varela et Al. (in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, pág. 420).
Na situação sub judicio os factos em reapreciação admitem a prova testemunhal, cujo valor probatório está sujeito à livre (pressuposto que conscienciosa) apreciação do julgador – cfr. art.º 396.º do C.C. -, e daí que seja igualmente permitido o recurso às presunções judiciais, de acordo com o disposto no art.º 351.º, do C.C., que são ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – cfr. art.º 349.º, ainda do mesmo Cód.
Como explicita Vaz Serra “ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência, ou de uma prova de primeira aparência” (in B.M.J. nº. 112º., pág. 190).
O julgador, usando as regras da experiência comum, do que, em circunstâncias idênticas, normalmente acontece, interpreta os factos provados e conclui que, tal como naquelas, também na situação aprecianda as coisas se passaram do mesmo modo, ou seja, perante um facto instrumental que tenha sido provado, conclui que ele revela a existência de outro facto, essencial à decisão.
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V.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:
a) julgou provado que:
1. No dia 23.01.2009, cerca das 10h15, no interior da agência da C… sita em Vila Verde, a A. escorregou no piso, que se encontrava molhado, e caiu no chão.---
2. Na sequência da queda em sujeito, a A. foi transportada em ambulância para o Hospital de S. Marcos, em Braga, onde deu entrada nos respectivos serviços de urgência, onde lhe foi diagnosticado um traumatismo do fémur e joelho esquerdo, tendo vindo a ter alta no próprio dia.---
3. Posteriormente, no dia 03.02.2009, a A. dirigiu-se novamente ao serviço de urgência da unidade hospitalar id. em 2., com queixas ao nível da anca, tendo sido submetida a exame de RX e avaliada pelo serviço de ortopedia, onde lhe foi diagnosticada fractura do colo do fémur, impactado em valgo à esquerda, atribuído à queda em causa, pelo que foi submetida a tratamento cirúrgico, percutânea, com três cravos canulados, tendo vindo a obter alta aos 06.02.2009, passando a ser referenciada para consulta externa.---
4. Na sequência da lesão descrita em 3., a A. padeceu de um Défice Funcional Temporário Total de 15 dias e de um Défice Funcional Temporário Parcial de 486 dias, tendo vindo a ser fixada a data da correspondente consolidação médico-legal em 07.06.2010.---
5. Por força da referida lesão, a A. padeceu de dores, fixando-se o respectivo quantum no grau 5/7.---
6. Ainda, por força da referida lesão e sequela consequente, é de fixar à A. um Défice Funcional Permanente da Integridade físico-Psíquica em 8 pontos, sendo ainda de admitir dano futuro, e um Dano Estético Permanente no grau 2/7.---
7. À data do incidente descrito em 1., a A. tinha 65 anos de idade, sendo uma pessoa saudável, dinâmica e trabalhadora, mormente era quem cuidava das lides domésticas do respectivo agregado familiar.---
8. Por força da lesão sofrida e do necessário período de recuperação, a A. viu-se incapacitada, durante um período de 4 meses, tendo recorrido ao auxílio de terceira pessoa, no caso a nora.---
9. Por força do incidente em causa, a A. teve de suportar os seguintes custos:---
- € 39,61, em medicamentos;---
- € 130,00, numa cadeira sanitária;---
- € 122,00, em taxas moderadoras;---
- € 42,00, em transportes de ambulância.---
10. Os serviços de limpeza das instalações ids. em 1. são diariamente efectuados após o fecho das mesmas ao público, ou seja, após as 15H30.---
11. Na data mencionada em 1., a ré havia transferido para a interveniente o risco por eventual obrigação de responsabilidade civil, mediante a apólice nº 29.710.---
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b) Julgou não provado que:
a) O piso das instalações descritas em 1. dos factos provados caracteriza-se por ser muito liso e escorregadio.---
b) Nas circunstâncias descritas em 1. dos factos provados, o referido piso não havia sido enxugado e limpo pelos competentes serviços de limpeza.---
c) Por força do auxílio descrito em 8. dos factos provados, a A. despendeu a quantia de € 5/hora, referente ao serviço de 4 horas/dia, três vezes por semana, num total de € 960,00.---
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VI.- E é relativamente aos factos acima transcritos sob as alíneas a) e b) que a Apelante pretende ver alterado o sentido da decisão, fundando-se, para tanto, no depoimento das testemunhas E…, M… e J….
A Ré contesta, essencialmente no que se refere à primeira alínea, transcrevendo afirmações não só daqueles depoimentos como também dos prestados pelas testemunhas R…, J… e M…, os dois primeiros seus funcionários, que trabalham diariamente na referida agência e a terceira a empregada da limpeza, e que, por isso, conhecem bem as características do piso.
Ora, revisitados todos os depoimentos não podemos deixar de corroborar o julgamento do Tribunal a quo já que deles resulta inequívoco que o incidente em mérito ocorreu num dia especialmente chuvoso, com uma grande afluência de pessoas à agência da C…, as quais, necessariamente, levavam o calçado molhado, sendo que algumas delas preferiram manter o guarda-chuva junto a si, pelo que a água, escorrendo para o pavimento, formava pequenos charcos, o que, como decorre da natureza das coisas, tornou o piso húmido.
Também se extrai do depoimento das testemunhas referidas que a Autora foi a única pessoa a escorregar e a cair, afirmando as três últimas que em “vinte anos” que ali trabalham não têm memória de ter ocorrido outra situação igual a esta.
Questionada directamente a testemunha E… “se tinha escorregado”, respondeu «eu não, não escorreguei que também ando sempre com um sapato que não escorrega, e baixo».
Ora, além das características específicas do calçado, do que é normal acontecer, a aderência ao chão pode ainda ser prejudicada pela lama que as pessoas trazem do exterior e daí que as testemunhas, afirmando a humidade do piso, não tenham conseguido manifestar igual certeza se foi essa humidade a provocar o desequilíbrio da Autora.
Resta, assim, concluir não haver fundamento probatório suficientemente consistente para se afirmar a correspondência com a realidade do facto em questão – que o piso das instalações da Ré se caracteriza por ser “muito lido e escorregadio”.
Relativamente ao outro facto ele já resultaria da conjugação do facto transcrito em 1 (hora em que ocorreu o incidente) com o transcrito em 10 (horário em que diariamente é efectuada a limpeza).
Deste modo, não só porque a conformação com a realidade do facto em causa resulta de toda a prova produzida, como até para remover eventual dúvida que se suscite, adita-se ao facto transcrito sob o n.º 10, o segmento correspondente ao transcrito na alínea b), ficando aquele com a seguinte redacção:
“10.- Os serviços de limpeza das instalações identificadas em 1. são diariamente efectuados após o fecho das mesmas ao público, ou seja, após as 15:30 horas, e nas circunstâncias de tempo referidas naquele n.º 1 o referido piso não havia sido enxugado e limpo pelos mencionados serviços”.
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VII.- A Apelante pretende ser ressarcida dos danos que lhe resultaram de uma queda ocorrida nas instalações bancárias da Ré, fundando a obrigação de indemnizar na responsabilidade civil extracontratual.
Ora, de acordo com o disposto no art.º 483.º do C.C., a referida obrigação depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: o facto (voluntário do agente); a ilicitude desse facto; a imputação do facto ao lesante; o dano; um nexo de causalidade entre aquele facto e este dano (cfr., dentre outros, P. Lima e A. Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 444 e sgs.).
O elemento básico da responsabilidade é o facto – “um facto dominável ou controlável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana” (Autores e ob. cit.).
Este comportamento tanto pode consistir numa acção como numa omissão. Ponto é que a vontade o domine.
No que se refere às condutas omissivas, se é certo inexistir um dever genérico de evitar a ocorrência de danos, também o é que cada um de nós não pode expor os outros a mais riscos ou perigos de danos do que aqueles que são inevitáveis, havendo situações em que é indiscutível existir um dever de agir para prevenir o perigo de dano de outrem.
Assim será quando o dever de prevenir o perigo resulte da lei ou de um contrato de assistência ou de vigilância, ou ainda quando o perigo de dano resulte de um facto praticado ou de uma situação mantida – neste caso “o criador ou o mantenedor da situação especial de perigo tem o dever jurídico de o remover” (cfr. ANTUNES VARELA, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 114, n.º 3684, págs. 77-78).
Deste modo, a obrigação de indemnizar pode fundar-se no incumprimento de deveres destinados a prevenir determinados perigos, ou seja, numa terminologia mais moderna, no incumprimento de deveres do tráfego.
Como observa MENEZES CORDEIRO estes deveres do tráfego surgem quando alguém crie ou controle uma fonte de perigo: cabe-lhe então tomar as medidas adequadas a prevenir ou evitar os danos, referindo ainda, além de outras situações a daquele que tem a responsabilidade pelo espaço: “quem controle um espaço deve prevenir os perigos que lá ocorram ou possam ocorrer: quem tem a vantagem do lugar deve assumir os deveres que daí decorram”, dependendo o conteúdo destes deveres do caso concreto.
O art.º 486.º do C.C. pressupõe que haja um dever de praticar o acto omitido, mas se o lesante, para prevenir o dano, tomou outras precauções tidas por idóneas pela generalidade das pessoas, fica desobrigado de indemnizar o lesado (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, I, 3.ª ed. Pág. 461).
Relativamente aos deveres de tráfego que constam dos art.os 491.º, 492.º e 493.º do C.C., defende Menezes Cordeiro que subjacentes a eles está a ideia de “incentivar a que no momento próprio sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, o risco dos danos”, acrescentando que “numa larga margem e pelas dificuldades da prova, eles acabaram por suportar danos que, em rigor, não lhes respeitariam” havendo-se-lhes conferido, como contrapeso “a hipótese de se prevalecerem da relevância negativa de causas virtuais” (in “Tratado de Direito Civil” volume VIII, págs. 571-589).
A ilicitude tanto pode consistir na violação de um direito (absoluto) de outrem, como na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, ou ainda no incumprimento dos chamados deveres de segurança no tráfego, acima referidos, que, como refere o Ac. da Rel. de Coimbra de 14/01/2014, “terão todavia de corresponder a uma norma de conduta cujo desrespeito seja havido como ilícito e cujo conteúdo dependerá da ponderação de diversos factores, como a probabilidade da ocorrência do acidente e efeitos danosos a evitar, das medidas preventivas exigíveis e possibilidade de auto-protecção do lesado, sob pena de uma ampla construção e admissão de deveres de prevenção do perigo equivaler na realidade à consagração de uma verdadeira responsabilidade pelo risco, que apenas formalmente se ampara nos esquemas da responsabilidade por culpa” (in Proc.º 1393/11.0TBVIS.C1, Desembª. Maria Domingas Simões, com texto integral no site da “dgsi”).
Sem prejuízo das situações em que, nos termos do C.C., a responsabilidade de indemnizar prescinde do elemento da culpa - cfr. nº. 2, do artº. 483º., e art.os 499º., e 503º. – este elemento tem de estar presente para que se possa impor ao lesante a obrigação de ressarcir o lesado.
Como ensina Antunes Varela, “a culpa exprime um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta do agente: o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, devia e podia ter agido de outro modo. É um juízo que assenta no nexo existente entre o facto e a vontade do autor” (in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 10ª. Ed., págs. 566).
Podendo a culpa revestir a forma de dolo, em qualquer uma das suas vertentes – directo, necessário ou eventual - ou a forma de negligência (também dita mera culpa) esta última consiste, essencialmente, na omissão da diligência exigível ao agente, cabendo aqui os casos em que este prevê a produção do facto ilícito como possível, mas, “por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar” (negligência consciente), assim como aqueles em que o agente, “por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão” não chega, sequer, a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida (negligência inconsciente), comportamentos que serão tanto mais censuráveis “quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo e mais forte ou intenso o dever de o ter feito” (cfr. Antunes Varela, ob cit. pág. 573).
A culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso – “culpa em abstracto” ou em sentido objectivo, nos termos do nº. 2 do art.. 487.º do C.C..
A significação do conceito do “bom pai de família” não é, porém, a do puro homem médio, mas antes a do “bom cidadão”, como ensina Antunes Varela, que acrescenta, “o que significa que o julgador não estará vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria, que porventura se tenham generalizado no meio, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento” (ob. cit. pág. 575/576, nota 3).
É ao lesado que cabe provar a culpa do autor da lesão – n.º 1 do art.º 487.º, do C.C. – tarefa que lhe fica facilitada se sobre este último recair uma presunção de culpa – cfr., v.g. n.º 1 do art.º 493.º quanto a quem tenha a seu cargo o dever de vigilância de coisa móvel ou imóvel ou de quaisquer animais, sendo que quanto a estes cumprirá ainda ter em conta o que dispõe o art.º 502.º, ainda do mesmo Cód..
No que respeita aos danos, na perspectiva da responsabilidade civil, são toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, e que o lesado não sofreria não fora o evento danoso.
Indemnizáveis são os danos de natureza patrimonial, ou seja aqueles que incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectem-se no património do lesado, no que se incluem os danos emergentes assim como os lucros cessantes, sendo ainda indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, caracterizando-se estes danos por serem insusceptíveis de avaliação pecuniária, já que atingem bens (como a saúde e o bem estar, o bom nome) que não integram o património do lesado e apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, que, diferentemente do fim que visa relativamente aos danos patrimoniais, não pretende repor a situação que existia antes do acto lesivo, mas antes compensar psicologicamente o lesado quer seja pela aquisição de bens materiais quer seja pela realização de algo que lhe traga satisfação.
Finalmente, como último pressuposto a ter de se verificar, é que exista um nexo de causalidade entre o dano e o facto.
Com efeito, dispõe o art.º 563.º do C.C. que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
A causalidade, que funciona como pressuposto de responsabilidade civil e como molde para a fixação da indemnização, comporta as duas formulações da teoria da causalidade adequada – a positiva e a negativa, nos termos da qual o facto que actuou como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação.
Tendo presente que a causalidade adequada se refere ao “processo factual que, em concreto, conduziu ao dano, no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano”, entender-se-á existir a indiferença ou inadequação “quando o evento, segundo o normal decurso das coisas e a experiência da vida, não eleva ou favorece, nem modifica o círculo de riscos de verificação do dano”.
Ainda que sejam as circunstâncias a definir a adequação da causa, para a produção do dano podem intervir outros factos, do próprio lesado ou de terceiro, sendo que ocorrendo um concurso de causas adequadas e simultâneas ou subsequentes “qualquer dos autores é responsável pela reparação de todo o dano” (cfr. o Ac. do S.T.J. de 20/06/2006, in C.J., Acs. do S.T.J., ano XIV, tomo II, págs. 120-121).
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VIII.- Retomando a situação sub judicio, temos de ter presente que, como refere o Ac. do S.T.J. de 02/06/2009, o grau de exigência do obrigado à prevenção do perigo (na tomada de medidas aptas a evitar o maior ou menor risco de acidente que a coisa representa) se afere pela maior ou menor probabilidade do risco de acidente – à maior intensidade do perigo haverá de corresponder um nível mais elevado da obrigação de o prevenir “e em caso de omissão mais exigente deve ser o juízo de censura” (Proc.º 560/2001.S1, Cons.º Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt).
Da facticidade provada, relevam os factos transcritos sob os n.os 1 e 10, nos termos dos quais, nas circunstâncias de tempo e de lugar aí referidas, a Apelante, quando se encaminhava para ser atendida, escorregou e caiu no chão.
O piso encontrava-se molhado, porque estava um dia particularmente chuvoso e as pessoas traziam o calçado molhado e ainda colocavam junto de si os guarda-chuvas, cuja água escorria para o chão.
O incidente ocorreu às 10:15 horas, e as instalações bancárias da Ré só são limpas (sendo lavado e seco o piso) após o fecho ao público, ou seja, depois das 15:30 horas.
Ora, se é certo que a Ré, que controla o espaço em causa, deve prevenir os perigos que lá possam ocorrer, não é menos certo que não se provou que ela tenha omitido as elementares medidas que se lhe impunham, perante as circunstâncias acima descritas – ninguém apontou, por exemplo, a ausência de recipiente para a colocação dos guarda-chuvas e nem a inexistência de um tapete, ou algo semelhante, no qual os clientes pudessem remover do calçado a água e a lama, sendo que, como se sabe, mais a última, são elementos que afectam a aderência ao piso o que os faz potenciadores de escorregadelas.
Não se provou que o piso das instalações bancárias tivesse características que o tornassem especialmente perigoso, mesmo quando molhado com água da chuva trazida do exterior pelo calçado e pelos guarda-chuvas, o que exclui a imposição de tomada de providências especiais para prevenir o perigo de escorregadelas e quedas no chão, sendo que a não ocorrência de situações de idêntica natureza afasta a imposição à Ré de um juízo de antecipação e da consequente obrigação de adopção de medidas extraordinárias de prevenção do perigo.
Provou-se que todos os dias esse piso é objecto de limpeza, mas quando ocorreu o incidente essa acção de limpeza tinha sido levada a cabo no dia anterior, depois das 15:30 horas, ou seja, a meio da tarde, pelo que não terão sido os produtos utilizados a alterar as condições de aderência do piso, sendo ainda de considerar que, tendo-se verificado a ocorrência às 10:15 horas, o ainda pouco tempo que a Agência levava de funcionamento seria insuficiente para acumular no chão uma tal quantidade de água e lama que justificasse a convocação urgente dos serviços de limpeza.
Porque mais nenhum dos vários clientes que ali se encontravam, simultaneamente com a Apelante, sofreu o mesmo acidente, estando todos eles sujeitos às mesmas condições, poderá apontar-se a circunstâncias próprias dela, designadamente ao seu calçado, a causa da escorregadela e queda.
Mesmo que consideremos o facto de o piso estar molhado como uma das causas do acidente, esse facto não vem imputado à Ré, não se lhe surpreendendo qualquer comportamento ilícito, ainda que omissivo.
Do exposto se conclui não estarem verificados todos os pressupostos legalmente estabelecidos, legitimadores da imposição à Ré da obrigação de ressarcir a Apelante dos danos que esta sofreu.
Cumpre, assim, manter a douta decisão impugnada, destarte se negando provimento ao recurso.
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C) DECISÃO
Considerando quanto acima fica exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a decisão impugnada.
Custas pela Apelante.
Guimarães, 05/02/2015
Fernando Fernandes Freitas
Purificação Carvalho
Espinheira Baltar