Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2094/08.1TBFAF.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: ABUSO DE DIREITO
CONTRATO DE CRÉDITO AO CONSUMO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1) Celebrado o contrato de crédito ao consumo, o mero decurso do tempo ou o pagamento parcial das prestações não é de molde a traduzir, por si só, um abuso de direito, quando o consumidor invoca a nulidade desse contrato, mesmo em sede de contestação da acção, com base na não entrega de um exemplar do contrato ao mutuário, nos termos previstos nos arts. 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09; antes se exige, face às circunstâncias do caso concreto, que o seu comportamento seja manifestamente excessivo e colida frontalmente com os mais elementares ditames da boa fé.
2) De outro modo, na prática, esse exercício do direito à invocação da nulidade do contrato deixaria de funcionar, premiando-se a parte não cumpridora.
3) Ao prever-se o efeito da nulidade e não de anulabilidade para a referida omissão, quis possibilitar-se ao consumidor a sua invocação a todo o tempo, sem que possa incorrer em abuso de direito como tal.
Decisão Texto Integral: I – Relatório;

Apelante (s): N… e C… (RR.);
Apelado (s): Banco… SA (A.);

*****
Pedido:
O A. Banco… ,SA intentou a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, ao abrigo do Regime Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01 de Setembro, contra C… e marido N… , e ainda J… , pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de €10.638,60, acrescida de €1.345,12€ de juros vencidos até ao dia 23/10/2008 e de €53,80 de imposto de selo sobre tais juros, bem como dos juros que sobre essa quantia se vencerem taxa anual de 16,08% desde 24/10/2008 até integral pagamento e do imposto de selo que à taxa de 4% sobre tais juros recair.
Causa de pedir:
No exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição de um veículo automóvel, o A. emprestou à ré mulher a quantia de €8.300,00, com juros à taxa nominal de 12,08% ao ano, devendo a importância do empréstimo e os juros, bem como a comissão de gestão, o imposto de selo incluído e os prémios dos seguros, serem pagos em 84 prestações mensais e sucessivas, com vencimento a primeira em 10/11/2006 e as seguintes nos dias 10 dos meses subsequentes. Mais alega que foi acordado que a falta de pagamento de uma das prestações importaria o vencimento imediato das restantes. Mais foi acordado que, em caso de mora sobre o montante em débito, a título de cláusula penal, acrescia uma indemnização correspondente à taxa de juro contratual ajustada - 12,08% - acrescida de 4 pontos percentuais, ou seja, um juro à taxa anual de 16,08%. A ré não pagou a 15ª e as seguintes prestações, vencendo-se aquela (e as restantes) em 10/01/2008. Tal veículo destinou-se ao património comum do casal, pelo que o réu marido é solidariamente responsável pela dívida.

Os réus contestaram, reconhecendo a existência do contrato e não impugnando os factos relacionados com a falta de pagamento ou o proveito comum do casal, mas põem em causa a sua validade, afirmando que, até à presente data, desconheciam as condições gerais e particulares do aludido contrato de mútuo, acrescentando que se limitaram a apor as assinaturas nos locais próprios e que não foram informados do conteúdo dos documentos que assinaram nem lhes foram comunicadas as cláusulas a que se mostrava subordinado o contrato de crédito celebrado.
Mais alegam que, porque o veículo lhes foi entregue, procederam ao pagamento de 14 prestações mensais, mas que nunca lhe foram entregues quaisquer documentos referentes ao veículo. Terminam pedindo a improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
A autor respondeu, pugnando pela existência de contrato de mútuo válido.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, em que se decidiu condenar os réus C… , N… e J… a pagar à autora:
a) O capital em dívida integrado em cada uma das 70 prestações mensais em falta e que são a 15ª e as seguintes – até à 84ª (excluída a parte de cada prestação relativa a juros remuneratórios);
b) A despesa efectuada com a formalização do contrato (não estão incluídas as despesas de cobrança) na parte em que estão englobadas nas referidas 70 prestações;
c) As despesas de transferência de propriedade, também apenas na parte em que estão distribuídas nas mesmas 70 prestações; quantias que deverão ser, oportunamente, objecto de liquidação (art. 661º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
d) Os juros de mora sobre a quantia global que se vier a liquidar, à taxa anual de 16,08%, vencidos desde a data da notificação da decisão da liquidação, até integral pagamento e aos quais acresce o que for devido a título de imposto de selo sobre esses mesmos juros.

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram os RR. C… e N… o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulam, em síntese, as seguintes conclusões:

A) No caso presente as testemunhas arroladas pelos réus depuseram de forma a sustentar a tese desenvolvida na contestação; a restante prova não é suficiente nem credível para decisão em sentido contrário;
B) O tribunal “a quo”, face á prova produzida, quer documental quer testemunhal deveriam ter dado como não provados os factos 4 a 11 e 18 da matéria dada como provada e considerar como provado o previsto nas alíneas b), c) e d) dos factos não provados.
C) Ao não o ter feito a decisão do Tribunal “a quo”, ao dar as respostas da forma que deu e não no sentido que aqui se refere que deveria ter dado, violou o normativo do n.º 2 do art.º 653.º do CPC.
D) O Tribunal “a quo” face à inexistência de prova de que o documento particular de fls 10 e 11 dos presentes autos foi assinado pelos réus, deveria ter concluído que os mesmo não podiam ser responsabilizados pelo pagamento das quantias nele constantes.
E) Não aplicando ao presente caso o estatuído no artigo 1142º, 1144.º do Código Civil e o Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro.
F) Desta forma a decisão de que se recorre, violou a norma dos art.ºs 1142º, 1144.º do Código Civil e o Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro e do n.º 2 do art.º 653.º do CPC.
G) O Tribunal “a quo” não devia ter decidido que os réus agiram em abuso de direito por considerar não terem cumprido o contrato nos termos do n.º 2, do art. 762.º do Código Civil e o terem feito nos termos previstos no art. 334.º do Código Civil.
H) O Tribunal “a quo” deveria, sim, ter concluído que não houve qualquer abuso de direito no não cumprimento do contrato e deveria ter decidido pela aplicação da nulidade do contrato nos termos do n.º 1, do art. 6.º e com a consequência do n.º 1 do art. 7, ambos do Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro e mantido a declaração de nulidade.
I) Desta forma a decisão de que se recorre, violou a norma dos art.s n.º 2, do art. 762.º do Código Civil e o art. 334.º do Código Civil, do n.º 1, do art. 6.º e do n.º 1 do art. 7, ambos Decreto-Lei 359/91, de 21 de Setembro e do n.º 2 do art.º 653.º do CPC.

Houve contra-alegações, pugnando-se pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciarem;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).


As questões suscitadas pelo recorrente podem sintetizar-se nos seguintes itens:
a) Há erro de julgamento na apreciação da matéria de facto, quanto aos factos provados nºs 4 a 11 e 18 e quanto aos não provados com as alíneas b), c) e d)?
b) Verifica-se um erro de direito, ao não ser declarada a nulidade do contrato, inexistindo abuso de direito?

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

1) Em finais do mês de Setembro de 2006, os réus dirigiram-se ao Stand “C… , Lda, sito no Lugar de Cavadas, freguesia de Quichães, em Fafe, com o objectivo de adquirir um veículo automóvel.
2) Neste seguimento, os réus optaram por um determinado veículo e negociaram com o vendedor o respectivo preço.
3) Para a aquisição do referido veículo os réus decidiram recorrer, por intermédio do vendedor, a crédito através de uma instituição financeira.
4) Assim, a autora, no exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição de um veículo automóvel de marca Opel, modelo Corsa 1.7 DTI SPORT, com a matrícula 10-56-SD, subscreveu com os réus o documento particular junto a fls. 10 e 11, datado de 13/10/2006, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se comprometeu a entregar a esta a quantia de €8.300,00 (oito mil e trezentos euros).
5) Nos termos de tal acordo, os réus deveriam devolver a quantia referida em 4) à autora em 84 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 10/11/2006 e as seguintes no mesmo dia dos meses subsequentes, a pagar na data do respectivo vencimento por transferência bancária.
6) Cada prestação seria no valor de €151,98 (cento e cinquenta e um euros e noventa e oito cêntimos), compreendendo este valor o capital, juros à taxa de 12,08%, comissão de gestão, imposto de selo devido pela abertura de crédito e o prémio do seguro de vida.
7) Foi acordado que a falta de pagamento de qualquer das prestações implicaria o vencimento imediato das demais e que em caso de mora seria devida uma indemnização equivalente à taxa de juro acordada (12,08%) acrescida de 4%, ou seja, 16,08%.
8) As cláusulas constantes das “Condições Gerais” (fls. 11) foram elaboradas pela autora sem qualquer negociação prévia com os réus e sem que estes colaborassem na sua elaboração ou discutissem o seu teor.
9) Os réus assinaram o contrato de mútuo com fiança n.º 784713.
10) Os réus assinaram as folhas onde as cláusulas se encontravam integralmente impressas (fls. 10 e 11).
11) As cláusulas constantes do contrato de fls. 10 e 11 foram comunicadas aos réus.
12) O veículo de marca Opel, modelo Corsa 1.7 DTI SPORT, com a matrícula 10-56-SD, foi efectivamente entregue aos réus.
13) O vendedor do veículo não procedeu à entrega dos documentos referentes ao mesmo.
14) Aos réus foi entregue uma declaração de venda e a cópia do livro de garantia.
15) A ré dirigiu-se à Conservatória competente tendo apurado que o veículo em causa se encontrava registado em nome de um terceiro e que sobre ele existia uma reserva de propriedade a favor da Cr…
16) Os réus não procederam ao pagamento da 15ª prestação e das seguintes.
17) A 15ª prestação venceu-se no dia 10/01/2008.
18) Foram efectuados, entre autora e réus, vários acordos de pagamento no sentido de regularizar a dívida.

Não se considerou provado:
a) Que depois de assinado por um representante da autora, esta tenha enviado para a residência dos réus o exemplar do contrato de mútuo dos autos que lhe era destinado.
b) Que os réus tivessem aposto as suas assinaturas nos locais que lhe foram indicados para o efeito sem que tivessem sido informados do conteúdo dos documentos que assinaram.
c) Que os réus tenham assinado folhas em branco respeitantes ao contrato de mútuo em causa.
d) Que o contrato de mútuo de fls. 10 e 11 não estivesse impresso quando os réus o assinaram.

*****

2. De direito;

a) Há erro de julgamento na apreciação da matéria de facto, quanto aos factos provados nºs 4 a 11 e 18 e quanto aos não provados com as alíneas b), c) e d)?


a) Começam os recorrentes por se insurgir contra a matéria de facto dada como provada sob os nºs 4 a 11 e 18, a qual devia merecer resposta negativa.
É a seguinte tal matéria fáctica provada:

«4) Assim, a autora, no exercício da sua actividade comercial e com destino à aquisição de um veículo automóvel de marca Opel, modelo Corsa 1.7 DTI SPORT, com a matrícula 10-56-SD, subscreveu com os réus o documento particular junto a fls. 10 e 11, datado de 13/10/2006, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual se comprometeu a entregar a esta a quantia de €8.300,00 (oito mil e trezentos euros).
5) Nos termos de tal acordo, os réus deveriam devolver a quantia referida em A) à autora em 84 prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no dia 10/11/2006 e as seguintes no mesmo dia dos meses subsequentes, a pagar na data do respectivo vencimento por transferência bancária.
6) Cada prestação seria no valor de €151,98 (cento e cinquenta e um euros e noventa e oito cêntimos), compreendendo este valor o capital, juros à taxa de 12,08%, comissão de gestão, imposto de selo devido pela abertura de crédito e o prémio do seguro de vida.
7) Foi acordado que a falta de pagamento de qualquer das prestações implicaria o vencimento imediato das demais e que em caso de mora seria devida uma indemnização equivalente à taxa de juro acordada (12,08%) acrescida de 4%, ou seja, 16,08%.
8) As cláusulas constantes das “Condições Gerais” (fls. 11) foram elaboradas pela autora sem qualquer negociação prévia com os réus e sem que estes colaborassem na sua elaboração ou discutissem o seu teor.
9) Os réus assinaram o contrato de mútuo com fiança n.º 784713.
10) Os réus assinaram as folhas onde as cláusulas se encontravam integralmente impressas (fls. 10 e 11).
11) As cláusulas constantes do contrato de fls. 10 e 11 foram comunicadas aos réus.
18) Foram efectuados, entre autora e réus, vários acordos de pagamento no sentido de regularizar a dívida».

Por seu turno, investem ainda contra a matéria de facto não provada atinente às alíneas b), c) e d), defendendo que devia ter sido dada como provada.
É também a seguinte a matéria de facto que obteve resposta negativa:
« a) Que depois de assinado por um representante da autora, esta tenha enviado para a residência dos
réus o exemplar do contrato de mútuo dos autos que lhe era destinado.
b) Que os réus tivessem aposto as suas assinaturas nos locais que lhe foram indicados para o efeito sem que tivessem sido informados do conteúdo dos documentos que assinaram.
c) Que os réus tenham assinado folhas em branco respeitantes ao contrato de mútuo em causa.
d) Que o contrato de mútuo de fls. 10 e 11 não estivesse impresso quando os réus o assinaram».

Para alicerçar tal desiderato, argumentam simplesmente os apelantes que, quer da prova documental, quer do depoimento das testemunhas por si arroladas, Maria… e Andreia… , resulta que outra devia ter sido a decisão quanto à factualidade provada e não provada, porque aquelas depuseram de modo a sustentar a tese defendida na contestação e não houve prova de que o documento particular de fls. 10 e 11 tivesse sido assinado pelos réus.

A reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação obedece a regras e limites que importa a priori enunciar.
O art. 655º do CPC consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.

Segundo este princípio, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.

“O princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (...): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis.

Representando, tal como os outros princípios referidos, uma conquista que se tem vindo a desenvolver desde a Revolução Francesa, a livre apreciação implantou-se historicamente em substituição dum sistema de prova legal em que os próprios depoimentos testemunhais eram valorados em função de factores meramente quantitativos. Hoje, a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo excepção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a tirar de certo meio de prova.” (J. Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 2ª ed., 2008, pág. 668, em anotação ao art. 655).

Por outro lado, quanto ao recurso da matéria de facto afirma-se no preâmbulo do DL 39/95, de 15.02, que veio a prever e a regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, que: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso” e, ainda, “... o objecto do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova ...”.

Deste modo, a ratio legis ínsita à alteração dos factos pela via do recurso plasmada no artº 712º, do CPC, pauta-se por uma reapreciação pontual da matéria de facto justificada por manifesto e excepcional erro de julgamento, contrário à evidência das provas, não pela leitura e convicção que estas geram no julgador – que é livre, não sendo determinada por qualquer hierarquização das provas – mas pela clara desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Assim, os poderes do tribunal da Relação de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto deverá restringir-se aos casos de flagrante desadequação entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, não podendo confundir-se com um novo julgamento, destinando-se essencialmente à sanação de manifestos erros de julgamento, de falhas mais ou menos evidentes na apreciação da prova “ (v. Ac. STJ, de 14/3/2006, in CJ, XIV, I, pg. 130; Ac. STJ, de 19/6/2007,www.dgsi.pt; Ac. TRL, de 9/2/2005, www.pgdlisboa.pt), e sendo entendimento dominante na jurisprudência que a convicção do julgador, firmada no principio da livre apreciação da prova (artº 655º do CPC), só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando fundamentada em provas ilegais ou proibidas ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum.

Este entendimento é perfilhado no Ac. do STJ de 10.5.07 Proc. 06B1868, relatado pelo Conselheiro J. Pires da Rosa., no qual se escreveu o seguinte: “O tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova) mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os mais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si. Claro – repete-se – que por mais sugestiva ou adequada que seja ou pareça a fundamentação do tribunal recorrido, o tribunal tem de conhecer as provas produzidas, tem de ouvir as cassetes (nos pontos indicados, ao menos) sempre, porque só a partir dessa audição – e do confronto dela com as mais provas - pode aferir dessa adequação ou razoabilidade. Mas se esta existe não há que alterar o que quer que seja, não há que substituir a razoabilidade afirmada por uma outra razoabilidade à qual necessariamente faltariam alguns elementos de suporte – já se falou nisso acima - que ajudaram a estruturar a primeira. Estaria a substituir-se uma razoabilidade por uma outra, todavia mais débil.”

Face a tais premissas, cumpre então apreciar o caso concreto.

Os recorrentes esgrimem o argumento de que na intermediação do contrato em causa nos autos não esteve nenhum membro do banco, pelo que inexistiu prova do facto nº 4.

Todavia, como se alcança da motivação plasmada na sentença, baseou-se o tribunal a quo não apenas na prova testemunhal produzida nos autos, designadamente no relato feito pela testemunha da autora, Maria… , mas também na análise do proprio documento junto a fls. 10 e 11, do qual consta as assinaturas dos recorrentes, enquanto mutuários, e ainda do réu, J… , enquanto fiador.

E quanto à ora alegada assinatura em branco desse documento de fls. 10 e 11, além de os réus na sua contestação jamais terem referido tal facto (desta decorre, aliás, o inverso, ou seja que apuseram a sua assinatura numa declaração já escrita, como se alcança do artº 9º da contestação), certo é que, sopesando o conteúdo do depoimento da testemunha da A., M… , funcionária do A., no seu confronto com o relato das testemunhas dos RR., Maria… , e Andreia…, respectivamente irmã e sobrinha da Ré mulher, mostra-se mais consentânea com a globalidade dos elementos probatórios carreados para os autos a realidade fáctica tida como provada, quer quanto aos factos nº 4 a 11, quer quanto ao facto constante do nº 18.

De facto, ouvidos e analisados esses depoimentos, afigura-se-nos que a narração dos factos relativos ao contrato de mútuo em causa, seja nos seus preliminares, seja na sua efectivação, pelas aludidas testemunhas dos réus denota parcialidade e interesse, apresentando mesmo incongruências, referindo, a título de exemplo, a testemunha Maria… que houve uma assinatura em branco quanto ao escrito de fls. 10 e 11 porque a impressora não funcionaria, ao passo que a testemunha Andreia já referiu que não funcionar o computador: “ o Sr. Joaquim disse que o computador estava avariado para a minha tia Carla assinar os papéis”.
Acresce que à pergunta da Mmª Juiz a quo sobre se a ré mulher, “ quando assinou aqueles papéis estava convencida que estava a assinar o quê, alguma coisa…”, a testemunha Maria… foi peremptória em responder que era “ Para fazer um crédito para a carrinha” – o que não se compagina com uma pretensa desinformação ou desconhecimentos das condições e termos do contrato de financiamento a celebrar.

Em suma, a valoração feita pelo tribunal recorrido, quanto à referida matéria de facto provada ( nºs 4 a 11 e 18), coaduna-se com a prova testemunhal e documental produzida nos autos, tendo-se em conta princípio da liberdade de julgamento previsto no citado artº 655º, nº 1, do CPC.
Mutatis mutandis, quanto à factualidade não provada e vertida nas apontadas alíneas b), c) e d) da sentença, por ausência de prova e por traduzirem, precisamente, a realidade fáctica oposta à que foi tida como provada e que considera ser de manter, como se acabou de se explanar.

De salientar ainda que, apreciados, global e comparativamente, os elementos probatórios, o tribunal recorrido não deixou de fazer um escrutínio crítico e ponderado dos mesmos e de enumerar os fundamentos objectivos e racionais que estiveram na base da convicção do julgador, especificando os parâmetros que alicerçaram a sua análise crítica do documento de fls. 10 e 11 ( contrato de mútuo com fiança), como seja o facto de nele não constar qualquer “cruz” no campo referente à assinatura, como referira a testemunha Maria… .
Enfim, a Mmº Juíz a quo explicou de forma racional e lógica os motivos pelos quais deu como provada e não provada a matéria de facto em causa, indicando a razão de ciência de cada uma das testemunhas, em conexão com a demais prova documental, bem como as razões que presidiram à valoração crítica, sem pré-juízos, dessa mesma prova.
Não se descortina, pois, qualquer violação do preceituado no artº 653º, nº2, do CPC, quanto ao julgamento da matéria de facto.

Afigura-se-nos, pois, que é de manter a matéria de facto dada como provada e não provada, improcedendo nesta parte a apelação.

b) Verifica-se um erro de direito, ao não ser declarada a nulidade do contrato, inexistindo abuso de direito?

Entendemos que assiste razão aos recorrentes.
Estes defendem que o facto de os réus terem pago 14 prestações não pode ser valorada para efeitos de afastar a nulidade do contrato, com base no abuso de direito dos consumidores, face à não entrega aos mesmos de um exemplar do contrato por parte da entidade financiadora, aqui autor.
Os fundamentos do abuso de direito invocado na sentença não parecem ser de sufragar, se se tiver em conta os requisitos legais inerentes a esse instituto jurídico, por um lado, e a especificidade da legislação inerente ao crédito ao consumo.
O abuso de direito, que o artº 334º, do Código Civil (CC) consagra, pressupõe um excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé ou pelo fim social e económico desse direito.
Por seu turno, o artº 6º, nº 1, do Dec.Lei nº 359/91, de 21,09, impõe a obrigatoriedade de entrega de um exemplar ao consumidor, no momento da respectiva assinatura, sob pena de nulidade – artº 7º do mesmo diploma.
Como se refere no Preâmbulo deste, trata-se de “ (…) instituir regras mínimas de funcionamento, de modo a assegurar o cumprimento do objectivo constitucional e legalmente fixado de protecção dos direitos dos consumidores”, até por imperativo de transposição de direito comunitário.
Quer isto dizer que, perante a acutilância do comércio de massas e das novas formas de crédito, como seja o crédito ao consumo, o aludido Dec.Lei nº 359/91 e posteriormente o Dec.Lei 133/2009 procuram constituir um conjunto de garantias adicionais para o consumidor, enquanto parte mais vulnerável.
E este desiderato é ainda mais premente nos contratos “entre ausentes”, como sucede na situação em análise Vide Fernando de Gravato Morais, Crédito aos Consumidores, pág. 63.

No caso em apreço, justifica-se na sentença que os recorrentes/consumidores abusaram do seu direito a pedir a nulidade do contrato por não entrega de um exemplar do contrato porque pagaram 14 prestações e tiraram as respectivas vantagens, tendo invocado tal, após serem accionados judicialmente.
Numa esteira jurisprudencial maioritária, como se salienta no Acórdão do STJ, 07-01-2010, Processo: 08B3798, não é relevante, por si só, o tempo que mediou entre a celebração do contrato e a propositura da presente acção (ou da citação dos recorrentes); se o legislador pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como fez para os casos previstos no nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 359/91.
Ou seja, a referida lei do crédito ao consumo tende aqui a proteger a parte mais fraca (os consumidores), ao prever, como sanção dessa omissão de entrega de um exemplar do contrato, a nulidade do contrato, a qual pode ser invocada a todo o tempo (naturalmente com o limite, genérico, da prescrição), nos termos do disposto no artigo 286º do Código Civil (CC).
E a relevância dessa entrega de exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura decorre da circunstância de o período de reflexão para o consumidor, a que alude o artº 8º, se contar desde a assinatura do contrato.
Além disso, a inobservância dos requisitos constantes do artº 6º constitui presunção imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor – nº 4, do artº 7º.
In casu, não foi alegada nem provada qualquer matéria de facto “ que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade por falta de entrega oportuna de um exemplar da proposta de contrato tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar no recorrido a confiança de que a nulidade não seria suscitada, tornando claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Novembro de 2006, 3 de Julho de 2008, 18 de Dezembro de 2008 ou de 31 de Março de 2009, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 06A3441, 08B2002, 08B3154 e 09A0537),
Com efeito, para ocorrer abuso de direito é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário “à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil) ” – citado Ac. do STJ, de 07.01.2010.
Da concreta matéria de facto provada não resulta tal.
O mero decurso do tempo ou pagamento parcial das prestações (não pagamento da 15ª prestação e seguintes num universo de 84 prestações) não pode ser suficiente para traduzir esse comportamento abusivo, sob pena de, na prática, se vir a coarctar ao consumidor esse exercício do direito à invocação do nulidade do contrato.
Enfim, esse tipo de neutralização do efeito da nulidade mais não será do que um prémio à parte que não cumpriu.
Neste sentido, veja-se ainda o acórdão STJ, de 30-10-2007 (em www.dgsi.pt/jstj,nsf/ proc. n.º 07A3048), onde se propugna que: "Quanto à ponderação de abuso do direito por parte do consumidor que invoca vícios do contrato, após o início da sua execução, o Tribunal deve actuar com particular prudência, já que, na relação de financiamento à aquisição de bens de consumo, é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a entidade financiadora da aquisição, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma os princípios da boa fé".
Do mesmo modo, o acórdão do mesmo STJ de 28-04-2009 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ proc. n.º 2/09.1YFLSB) decidiu que "A pretensão do aderente não deve ser paralisada pela invocação do abuso do direito, por parte do proponente, por nas relações de consumo a regra ser a protecção do consumidor, só devendo ser desconsiderada em casos de conduta a todos os títulos censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte …"

Em resumo, a invocação pelos réus da nulidade do contrato não deve tão pouco, neste caso, ser cerceada com fundamento no abuso do direito, por não resultar dos factos provados que a invocação de tal nulidade apenas em sede de contestação desta acção traduza um exercício ilegítimo desse direito.
Também aqui, como se explana no Acórdão da RP, de 22.03.11, Proc. 136/09.2TBSTS.P1, in www.dgsi.pt, podemos concluir que, nessas circunstâncias, nada pode fazer supor que a mutuária teve possibilidade de analisar e reflectir sobre todas as cláusulas do contrato, designadamente mormente as que se referiam às consequências da falta de pagamento de alguma das prestações em dívida, e, por isso, a invocação da dita nulidade apenas no momento em que lhe é exigido o pagamento da totalidade das prestações em dívida não pode ser entendida como tardia nem configura o exercício ilegítimo daquele seu direito.
Aliás, se sopesarmos vicissitudes contratuais, como a não entrega dos documentos referentes ao veículo pelo vendedor (facto nº 13 supra) e o registo do veículo em nome de um terceiro e reserva de propriedade a favor de uma outra entidade “Cr…” (facto nº 15), o comportamento do financiador ou do fornecedor não deixa de ser censurável.

A consequência da declaração de nulidade do contrato é a que emerge do estatuído no artº 289º, nº 1, do CC: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
No caso sub iudice importa não descurar que estamos perante uma união de contratos: contrato de crédito, por um lado, e de compra e venda, por outro, sendo a validade e eficácia deste dependente daquele – artº 12º, nº1, do Dec.Lei nº 359/91 – uma vez que resulta dos autos que houve colaboração entre a financiadora, autora, e a vendedora, a dita fornecedora do veículo automóvel (C… Ldª) na preparação e conclusão do negócio – cfr. pontos de facto provados nºs 1) a 4) e 12) supra.
O que foi prestado de facto à consumidora, recorrida mulher, foi o veículo automóvel em causa. Logo, impendia sobre si a obrigação de o restituir, o que já terá sido feito, como se abarca de fls. 122 dos autos, em 19.07.2010.
Por outro lado, o montante das prestações por esta pagas e recebidas pelo autor, que deveria restituir, valem como valor correspondente à objectiva impossibilidade de restituição em espécie do uso dado pela recorrida consumidora a esse automóvel.

Sumariando:
1) Celebrado o contrato de crédito ao consumo, o mero decurso do tempo ou o pagamento parcial das prestações não é de molde a traduzir, por si só, um abuso de direito, quando o consumidor invoca a nulidade desse contrato, mesmo em sede de contestação da acção, com base na não entrega de um exemplar do contrato ao mutuário, nos termos previstos nos arts. 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 359/91, de 21/09; antes se exige, face às circunstâncias do caso concreto, que o seu comportamento seja manifestamente excessivo e colida frontalmente com os mais elementares ditames da boa fé.
2) De outro modo, na prática, esse exercício do direito à invocação da nulidade do contrato deixaria de funcionar, premiando-se a parte não cumpridora.
3) Ao prever-se o efeito da nulidade e não de anulabilidade para a referida omissão, quis possibilitar-se ao consumidor a sua invocação a todo o tempo, sem que possa incorrer em abuso de direito como tal.



IV – Decisão;

Em face do exposto, acordam os Juizes da Secção Cível deste Tribunal em julgar procedente a apelação dos réus, revogando-se a sentença nos seguintes termos:
a) Declara-se a nulidade do contrato de crédito a que se refere o documento de fls. 10 e 11 dos autos e dos demais actos jurídicos que do mesmo decorrem.
b) Ordena-se que a Ré, se essa entrega não tiver já sido concretizada, restitua ao Autor o veículo da marca Opel, modelo Corsa 1.7. DTI Sport, matrícula 10-56-SD, valendo o montante das prestações pago por esta como valor correspondente à objectiva impossibilidade de restituição em espécie do uso dado pela mesma a esse automóvel.
c) Absolvem-se os Réus dos demais pedidos.

Custas pelo apelado.

Guimarães, 7 de Julho de 2011
António Sobrinho
Isabel Rocha
Manuel Bargado