Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
483/07.8TCGMR.G1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/13/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Beneficiando o autor da presunção de propriedade derivada do artigo 7º do C. Registo Predial, é sobre os réus que recaia o ónus de ilidir esta mesma presunção, mediante prova em contrário, nos termos do art. 350º, n.º 2 do C. Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

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P…, residente na rua …, Guimarães, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum ordinário, contra V…, e M…, residentes na Avenida …, Guimarães, pedindo:
- que se declare o Autor o único e legítimo proprietário da fracção autónoma identificada na petição inicial e a posse dos Réus como insubsistente, ilegal e de má fé;
- a condenação dos Réus a reconhecerem o direito de propriedade do Autor e a restituírem-lhe o identificado imóvel;
- a condenação dos Réus a restituírem com o que à custa do Autor injustamente se locupletaram e a pagarem-lhe uma indemnização pelo dano de privação de uso, em quantia a fixar em sede de execução de sentença.
Alegou, para tanto e em síntese, que por escritura pública de 30 de Outubro de 2006, adquiriu aos Réus a fracção identificada na petição inicial, pelo preço de € 140.000,00 e que, não obstante terem acordado que os Réus, decorridos seis meses sobre a celebração daquela escritura, desocupariam o aludido imóvel e procederiam à sua entrega, os Réus recusam-se a entregá-lo, pelo que está impedido de usar, fruir ou dispor do referido bem, o que tudo lhe causa prejuízos que neste momento não consegue quantificar.
Os réus contestaram, impugnando os factos alegados e invocando a nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda formalizado pela referida escritura pública.
E, alegando que nunca quiseram vender ao Autor, nem este quis comprar a fracção objecto do mencionado contrato, pois o que celebraram foi, antes, um contrato de mútuo, ferido de nulidade por vício de forma, deduziram reconvenção, pedindo que se declare a nulidade da escritura pública em causa, ordenando-se o cancelamento do registo efectuado a favor do Autor e notificando-se tal nulidade à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Guimarães, para os fins tidos por convenientes.
O Autor replicou, arguindo a ineptidão do pedido reconvencional e impugnando todos os factos alegados na contestação/reconvenção.
Os Réus apresentaram tréplica, concluindo como na contestação e reconvenção.

Proferido despacho saneador, nele julgou-se improcedente a invocada ineptidão do pedido reconvencional.
Foram elaborados os factos assentes e a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto.
A final foi proferida sentença que:
- Julgou a acção totalmente improcedente e, em consequência, absolveu os Réus dos pedidos contra eles formulados pelo Autor;
- Julgou a reconvenção integralmente improcedente e, em consequência, absolveu o Autor/Reconvindo dos pedidos contra ele deduzidos pelos Réus/Reconvintes.
As custas da acção ficaram a cargo do Autor e as da reconvenção ficaram a cargo dos Réus/Reconvintes.

Não se conformando com esta decisão, dela apelou o autor, terminando as alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“I. A oposição entre os fundamentos da sentença impugnada e a decisão tomada é manifesta, o que determina a sua nulidade, por força da violação no estatuído na alínea c) do nº1, do artigo 668º, do CPC.
II. Acresce que, na douta sentença não se podia deixar de tomar conhecimento do teor do documento de f ls. 275, o que no caso em apreço não ocorreu.
III. Esta omissão teve consequências em termos probatórios que, inequivocamente, acarretam a nulidade da sentença.
IV. Por outro lado, importa realçar que os Réus, na defesa apresentada, nunca puseram em causa a regularidade substancial ou formal da cadeia das sucessivas transmissões anteriores àquela que cumpre apreciar .
V. Com efeito, os Réus apenas pugnaram – e não lograram alcançar os seus intentos, desde logo por absoluta ausência de prova – pela invalidade da escritura de compra e venda que celebraram com o Autor .
VI. Tanto assim é que os Réus juntaram certidão do registo predial onde consta que o prédio se encontra inscrito a favor do Autor e, em resultado de tal situação registral , peticionaram o seu cancelamento.
VII. Dito de outro modo: os Réus jamais colocaram em causa a regularidade da cadeia de transmissão – até porque isso beliscava o seu pretenso direito de propriedade – somente supostos vícios da compra e venda celebrada com o Autor .
VIII. Destarte, atendendo à defesa apresentada pelos Réus e aos interesses em confronto que se impunha dirimir, bem como aos fundamentos do pedido reconvencional que estes deduziram, exigir-se ao Autor que fosse ele a fazer prova da regularidade da cadeia de transmissão da propriedade do imóvel – a denominada probatio diabolica – seria, salvo o sempre devido respeito, que é muito, descabido.
IX. Sendo que, se assim fosse, o Autor ficava onerado com um ónus probatório desproporcionado face aos interesse em disputa e à matéria controvertida que importava dilucidar .
X. Aliás, a posição ora defendida pelo Autor decorre claramente do princípio da adequação formal , bem como da necessidade de realização da justiça material .
XI. Por conseguinte, considerando a matéria provada nos autos, bem como a presunção prevista no artigo 7º, do CRP , entende-se que a presente acção deveria ter sido julgada totalmente procedente, por provada, declarando-se ser o autor o único e legítimo proprietário da fracção autónoma em apreço.
XII. Na verdade, considerado provado que 1) Por escritura pública celebrada a 30 de Outubro de 2006, o Autor declarou adquirir aos Réus uma fracção autónoma designada pelas letras “HH” , correspondente a um apartamento sito ao sétimo andar , lado direito, e um lugar na cave para estacionamento identificado com as letras “HH” , inscrita na respectiva matriz sob o artigo 1135-HH (alínea A) dos factos assentes); 2) Da referida escritura, em que figura como primeiro outorgante o Réu, por si e na qualidade de procurador de sua mulher aqui Ré, e como segundo outorgante o Autor , consta: “Declarou o primeiro outorgante, por si e na qualidade em que intervém: Que, pelo preço, já recebido, de cento e quarenta mil euros, vende ao segundo outorgante” a fracção autónoma identificada em A) (resposta ao número 1.º da base instrutória) . , e feito a sua submissão aos artigos 408º, n.º 1, 874º, 875º e 879º, do Código Civil , há que concluir necessariamente que o Autor adquiriu aos Réus a propriedade da fracção em causa, por contrato.
XIII. Ainda por força da matéria provada deveriam os Réus terem sido condenados a desocupar a fracção e a entregá-la ao Autor , imediatamente, bem como a pagar- lhe a indemnização peticionada por patente dano resultante de incumprimento contratual , traduzido em privação do correspondente uso, cujo montante deverá ser relegado para sede de execução de sentença.
XIV. Por fim, há a referir que a douta sentença violou o disposto nos artigos 668º, nº1, aliena c) , do CPC, 408º, 874º, 875º e 879º, todos os preceitos do CC, bem como o artigo 7º, do CRP .
A final pede seja revogada a sentença recorrida.

Os réus não contra-alegaram.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes:
1) Por escritura pública celebrada a 30 de Outubro de 2006, o Autor declarou adquirir aos Réus uma fracção autónoma designada pelas letras “HH”, correspondente a um apartamento sito ao sétimo andar, lado direito, e um lugar na cave para estacionamento identificado com as letras “HH”, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 1135-HH (alínea A) dos factos assentes).
2) Da referida escritura, em que figura como primeiro outorgante o Réu, por si e na qualidade de procurador de sua mulher aqui Ré, e como segundo outorgante o Autor, consta: “Declarou o primeiro outorgante, por si e na qualidade em que intervém: Que, pelo preço, já recebido, de cento e quarenta mil euros, vende ao segundo outorgante” a fracção autónoma identificada em A) (resposta ao número 1.º da base instrutória).
3) Da aludida escritura pública consta que para financiar a aquisição da identificada fracção o Réu solicitou à Caixa Agrícola e esta concedeu-lhe um empréstimo de € 140.000,00, o qual se obrigou a amortizar durante os próximos 15 anos, reembolsando o Banco em 180 prestações mensais e sucessivas de € 1.113,63 cada, tendo-se vencido a primeira prestação no passado dia 30 de Novembro de 2006 (resposta aos números 2.º e 3.º da base instrutória).
4) Os Réus não desocuparam o imóvel e recusam-se a entregá-lo ao Autor (número 5.º e 6.º da base instrutória).
5) O Autor instaurou a presente acção contra os Réus (resposta ao número 7.º da base instrutória).
6) A referida fracção autónoma é a casa de morada de família dos Réus (resposta ao número 9.º da base instrutória).
7) O Autor emprestou dinheiro ao Réu, para este fazer face a encargos decorrentes da sua vida particular e comercial (resposta ao número 10.º da base instrutória).
FUNDAMENTAÇÃO:
Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.

Assim, as únicas questões a decidir traduzem-se em saber se:
1ª- a sentença recorrida padece da nulidade prevista no art. 678º, nº1, al. c) do C. P. Civil;
2ª- existe fundamento para a procedência da acção.

I - Quanto à primeira questão, sustenta o autor/apelante padecer a sentença recorrida da nulidade prevista no artigo 668.°, n.° l, al. c) do C. P. Civil, porquanto, tendo o Tribunal a quo afirmado que o autor provou o título de aquisição do direito de propriedade sobre o identificado prédio, contrariamente ao decidido, impunha-se que tivesse concluído pela existência desse mesmo direito e, consequentemente, pela procedência da acção.
Segundo a alínea c) deste n.º1, é nula a sentença “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
No dizer de Alberto dos Reis e de Antunes Varela , tal preceito aplica-se tão só às situações em que os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a uma decisão diferente da que vem expressa na sentença.
Ou seja, refere-se a um vício lógico na construção da sentença: o juiz raciocina de modo a dar a entender que vai atingir certa conclusão lógica (fundamentos), mas depois emite uma conclusão (decisão) diversa da esperada.
Ora, nada disto acontece no caso dos autos, pois o que se afirma na sentença é que, para a procedência da acção de reivindicação, não é suficiente a prova da aquisição derivada, sendo necessária a prova da aquisição originária do direito de propriedade.
E se é verdade que, na sentença recorrida não se atentou no teor da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, constante de fls. 275 dos autos, da qual resulta beneficiar o autor da presunção da existência do direito de propriedade derivada do registo, nos termos do disposto no art. 7º do C. R. Predial, também não é menos verdade não estarmos perante uma nulidade intrínseca da sentença, mas, antes, perante um erro de julgamento.
Daí a sem razão do apelante, carecendo de qualquer fundamento a afirmação de que a sentença padece da apontada nulidade.
Improcedem, por isso, as I e II conclusões do autor/apelante.
*
II- O que está em causa na presente acção de reivindicação fundada em aquisição derivada é saber se o autor tem direito de propriedade do autor sobre o prédio que reivindica.
Como causa de pedir, invocou o autor a aquisição do direito de propriedade sobre o dito prédio por via do contrato de compra e venda que celebrou com os réus.
A sentença recorrida, considerando que o autor não logrou provar a posse usucapiável por parte do autor nem que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente, decidiu não ser possível reconhecer ao autor qualquer direito de propriedade sobre o prédio em causa.
Sustenta, agora, o autor, nas suas alegações de recurso, que o Tribunal a quo não tomou em consideração o teor da certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, constante de fls. 275ª 280 dos autos, e que a acção devia ser julgada provada e procedente, porquanto resulta desta certidão que esse prédio está registado a favor dele.
E, a nosso ver, assiste-lhe razão.
Senão vejamos.
Consta, efectivamente, da certidão da Conservatória do Registo Predial de Guimarães junta a fls. 275 a 280 dos presentes autos que a aquisição, por compra, da fracção autónoma designada pelas letras “HH”, correspondente a um apartamento sito ao sétimo andar, lado direito, e um lugar na cave para estacionamento identificado com as letras “HH”, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 1135-HH encontra-se registada em nome do ora autor pela Ap.20 de 2006/08/10.
E, não obstante estes factos não terem sido dados como assentes, porquanto a junção do documento em causa ocorreu depois de elaborado o despacho saneador, a verdade é que, revestindo-se com interesse para a boa decisão da causa, não podiam os mesmos deixar de ser tidos em consideração na elaboração da sentença, de harmonia com o disposto no art. 659º, nº3 do C. P. Civil.
Por sua vez, estabelece o art. 7º do C. Registo Predial, que “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Esta norma contém uma presunção “juris tantum” de que o direito registado existe, emerge do facto registado, pertence ao titular inscrito e tem determinada substância ( aquela que o registo define).
Significa isto, no caso dos autos, que beneficiando o autor desta presunção derivada do registo, é sobre os réus que recaia o ónus de ilidir esta mesma presunção, mediante prova em contrário, nos termos do art. 350º, n.º 2 do C. Civil.
Ora, porque os réus não o lograram fazer, conforme resulta claramente das respostas restritivas dadas aos artigos 9º e 10º da base instrutória e respostas negativas dadas aos artigos 11 a 15º da mesma base, forçoso é concluir que o registo da aquisição do dito prédio em nome do autor, é bastante para fazer presumir que o direito de propriedade sobre o identificado prédio existe e pertence ao autor, não sendo, por isso, necessária a alegação e prova, da cadeia ininterrupta de transmissões do imóvel até se encontrar um título de aquisição originária.
Daí impor-se o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre o prédio em causa.
E porque provado ficou que os réus ocupam este imóvel e recusam-se a entregá-lo ao Autor, também não restam dúvidas de que os réus não só estão obrigados a restituir esse mesmo prédio ao autor, nos termos do disposto no art. 1311º, nº2 do C. Civil, como também constituíram-se na obrigação de indemnizá-lo pelos danos para ele emergentes da privação do uso do identificado imóvel, desde a data da citação, a liquidar em momento ulterior, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 483º do C. Civil e art. 661º, nº2 do C. P.
Procedem, pois, todas as demais conclusões do autor/apelante.

DECISÃO:
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, revogando-se a sentença recorrida, julga-se a acção procedente nos termos referidos e, consequentemente:
A- declare-se que o autor é o único e legítimo proprietário da fracção autónoma designada pelas letras “HH”, correspondente a um apartamento sito ao sétimo andar, lado direito, e um lugar na cave para estacionamento identificado com as letras “HH”, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 1135-HH.
B- Condena-se os Réus a restituírem ao autor o identificado imóvel bem como no pagamento de indemnização pelos danos para ele advenientes da privação de uso do identificado imóvel, desde a data da citação, a liquidar em momento ulterior.
C- Em tudo o mais mantém-se a sentença recorrida
As custas devidas pela presente apelação e pela acção ficam a cargo dos réus.
Guimarães, 13 de Fevereiro de 2012