Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1092/07-2
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: CASAMENTO
PROVA DOCUMENTAL
DÍVIDA DE CÔNJUGES
PROVEITO COMUM DO CASAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: - O estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão, sempre que os respectivos factos jurídicos não constituam o «thema decidendum» da acção, antes constituindo relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, meros pressupostos da decisão a proferir, como será o caso no domínio da responsabilidade contratual, enquanto pressuposto da prova do proveito comum do casal.
- O artigo 1691º, nº 1, d) do CC., ao estabelecer uma presunção ilidível de que as dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, o foram em proveito comum do casal, não enferma de inconstitucionalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

…, LDA. Intentou a presente acção sumária contra MARIA…, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 7.930,89, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa de 34%, desde 26-12-1991, até efectivo e integral pagamento, e, se assim se não entender quanto a juros vencidos e vincendos, calculados às taxa legais que sucederam àquela até ao presente.
Alegou que o marido da R. adquiriu à A. em Dezembro de 2001, várias quantidades de bacalhau, destinando-o ao seu comércio, apresentando, para pagamento de tal mercadoria, o cheque n.º 8408967301 datado de 26 de Dezembro de 1991, no montante de 1.590.000$00, o qual foi devolvido por falta de provisão, no dia 2 de Janeiro de 1992. Nessa sequência, o R. marido foi julgado e condenado em processo crime, devendo pagar à aqui A. o pagamento de uma indemnização no montante do valor do cheque, acrescido de juros de mora à taxa de 34% a contar de 26-12-1991, até efectivo e integral pagamento. O marido da R. não procedeu a qualquer pagamento e, entretanto, foi declarado falido. Mais alegou que a transacção comercial efectuada realizou-se na pendência do matrimónio entre aquele e a aqui R., destinando-se ao comércio, o que revertia a favor e em proveito comum do casal.
Citada a ré alegou a prescrição dos juros de mora, não pondo em causa a divida contraída nos termos alegados, concluindo pela parcial improcedência da acção.
A 8/1/2007 foi decidida a acção condenando-se a ré nos seguintes termos:
“… a pagar à A. … LDA. a quantia de €7.930,89 (sete mil novecentos e trinta euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento, de acordo à taxa legal supletiva de 4% nos termos da portaria n.º 291/03, de 08-04, e dos arts. 806.º e 559.º do Código Civil, sendo aplicável qualquer alteração ulterior da mesma enquanto não ocorrer o pagamento da indemnização…”
Inconformada a ré interpôs recurso de apelação, admitido com efeito devolutivo.
Conclusões da apelação.
(…)

Sem contra-alegações.
Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos, há que conhecer do recurso.


*

Vêm considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal “a quo”:
1. A A. dedica-se à comercialização de produtos alimentares, designadamente, bacalhau.
2. A R., em 26 de Dezembro de 1991, tinha o estado civil de casada, no regime comunhão geral de bens, com Manuel …, o qual, como empresário em nome individual, se dedicava ao comércio de bacalhau e outros géneros alimentícios.
3. No desenvolvimento de tal actividade, o marido da R., adquiriu à A., na mencionada em Dezembro de 1991, várias quantidades de bacalhau, destinando-o ao seu comércio
4. Para pagamento de tal mercadoria, o marido da R., entregou o cheque n.º 8408967301, do Banco de Comércio e Indústria, agência de Barcelos, no montante de 1.590.000$00 (um milhão, quinhentos e noventa escudos), o que corresponde actualmente a €7.930,89 (sete mil novecentos e trinta euros e oitenta e nove cêntimos).
5. Quando apresentado a pagamento na Caixa …, foi tal cheque devolvido, por falta de provisão, no dia 2 de Janeiro de 1992.
6. Por tais factos constituírem crime, o marido da R. foi julgado no Tribunal Judicial de Monção, no processo comum singular n.º 404/1992, sendo condenado, além da pena criminal, no pagamento, à A., de uma indemnização no montante do valor do cheque, acrescido de juros de mora à taxa de 34% a contar de 26-12-1991, até efectivo e integral pagamento.
7. O marido da R não procedeu a qualquer pagamento e, entretanto, foi declarado falido, no processo n.º 63/92, do 2.º juízo cível desta comarca.
8. A R., como cônjuge do falido, pediu a separação de meações, sendo os bens que pertenciam ao casal adjudicados àquela.
9. As mercadorias - bacalhau-, que o marido da R: recebeu da A., destinaram-se ao comércio que aquele fazia, sendo dessa actividade que o marido da R usufruía rendimentos para se sustentar a si e à família – R. e filhos.
***

Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
A recorrente coloca as seguintes questões:
- Alteração da decisão relativa à matéria de facto dos pontos 2, 7, 8 e 9.

- Inexistência de proveito comum.

- Inconstitucionalidade do artigo 1691, nº 1, d) do CC..


*

Da alteração da decisão relativa à matéria de facto.

Nos termos do artigo 712, seu nº 1, al. a) do CPC, indicando-se os concretos pontos cuja decisão se pretende seja alterada e os meios probatórios que sustentam a pretensão, pode o tribunal da Relação alterar a matéria de facto.

Os factos apurados assentam na confissão da ré, por força do disposto no artigo 490, nº 2 do CPC.

Relativamente ao ponto 2, refere a recorrente que ao autor competia a prova relativa ao seu estado civil, a qual, por ser constitutiva do seu direito só por documento podia ser efectuada, pelo que e nessa parte deveria ter sido considerado não provado.

A questão resume-se em saber se é admitida a prova do casamento por confissão, estando em causa a aplicação das regras relativas à comunicabilidade das dívidas.

Ambas as posições têm tido acolhimento, sendo maioritário o entendimento no sentido de que, em casos como o dos autos, não é exigível a junção do documento.

A título de exemplo, defendem a necessidade de prova documental os AC.s Ac. STJ de 22/3/07, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 07B708; a RL de 31/10/06, www.dgsi.pt/jtrl, processo nº 5396/2006-1, referido nas alegações, no qual se pode ler:

“ … Se o facto, só admite prova documental, porque existe lei expressa nesse sentido, então seja qual for a acção, tratando-se de facto constitutivo da causa de pedir, independentemente de qual seja ela, então cabe na previsão da alínea d) e não se submete ao cominatório….”

Sustenta-se que tratando-se de facto constitutivo do direito invocado, exigindo a lei a prova documental, não opera a confissão. Sentido este aliás defendido no ac. STJ acima referido.

No sentido de que não seria necessário a junção da prova documental relativa ao casamento, havendo confissão, AC do STJ de 14.01.2003, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 02A4346:

“Não se tratando de acção de estado e se a situação de casado é apenas invocada para efeitos patrimoniais não constituindo o «thema decidendum» mas apenas mera condicionante, nada impede que se considere provada se não foi contestada ou impugnada “.

Ac do STJ de 6.2.03, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 02B4731:

” casamento é um facto jurídico que, nos termos dos artºs. 1º, n.º 1, d), 4º, e 211º, todos do Cód. Registo Civil, só pode provar-se por um dos meios indicados no último preceito, entre os quais se não inclui a confissão.

Todavia, em processo civil, o estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão sempre que os respectivos factos jurídicos não constituam objecto directo da acção, antes constituindo relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, meros pressupostos da decisão a proferir, elementos da hipótese de facto da norma…É o caso da norma do art.º 1691º, n.º 1, c), do Cód. Civil em que o matrimónio integra a previsão factual do preceito.

Assim tratado o casamento como facto pode a sua realidade ser alcançada por admissão por acordo ou confissão, nos termos dos artºs. 352º, 354º, a), 355º, 356º, do Cód. Civil, e 484º, n.º 1, do Cód. de Procº. Civil.”.

Ac. STJ de 29/10/98, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 98B532, sumariado, no sentido de que “ só se torna necessária a prova do casamento por documento autêntico nas acções de estado e não naquelas em que o casamento não representa propriamente o "thema decidendum", como são aquelas em que, no domínio da responsabilidade contratual, se discute tão-simplesmente o "proveito comum do casal", mormente se os Réus não deduziram contestação ao pedido”.

E nesta relação de Guimarães, Ac. de 9/6/04, www.dgsi.pt/jtrg, processo nº 762/04-2, igualmente defendendo que só nas acções de estado ou naquelas em que se suscite controvérsia acerca da existência do casamento, é que a prova documental tem que ser feita.

Ainda no mesmo sentido Ac. STJ de Ac. STJ de 12/1/06, www.dgsi.pt/jstj, processo nº 05B3427, com voto vencido do relator do Ac. de 22/3/07 acima referido; Ac. RL de 15/3/07, www.dgsi.pt, processo nº 10342/06-2; RP de 27/6/95, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 9520209; RP de 23/2/99, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 9821422; Ac da RL de 26.1.95, Col Jur. T. 1º, pág 105.

Não vemos razão para nos afastarmos do entendimento maioritário, já perfilhado nesta relação.

Ora, não estando em causa o casamento nem sendo tal questão controversa, não se vê razão para emparceirar com a jurisprudência que afirma aquela exigência probatória.

Como se refere no Ac. do STJ de 12/1/06, “… historicamente ultrapassada a denominada jurisprudência dos conceitos, o rigor que não se pode deixar de exigir incide, em último termo, na ponderação dos interesses em conflito.

Como assim, quando, numa acção de dívida, os demandados, pessoal e regularmente citados, não discutem o estado civil que o demandante lhes atribui, poderá eventualmente ter-se por mais papista que o papa a exigência ainda da prova documental imposta pelo Cód.Reg.Civil na área que lhe é própria, bem não se vendo que possa repugnar a interpretação restritiva das disposições dessa lei que a jurisprudência referida acolheu...”

O processo é um meio de realizar interesses jurídicos que não devem ser sacrificados a uma prática de conceitos, salvo na medida em que as suas regras defendam outros reais interesses, como se refere no ac. STJ de 7.12.71, Bol. 212, vol. 248, citado no Ac. RL de RL de 26.1.95, Col Jur. T. 1º, pág 105.

Refira-se ainda que a parte, cuja alegação não é contestada, não deve ser surpreendida com a desconsideração do facto aceite por acordo, sem ter tido a possibilidade de fazer a prova legalmente exigida. Deve-lhe em tais circunstância ser possibilitada tal prova, em preito ao princípio da verdade material e da justa composição do litígio – artigo 265, nº 3 do CPC.

A não se tomarem tais cuidados, resultaria um sério atentado ao sentido de justiça material e ao mais elementar bom senso. Estando o facto aceite, no presente caso por confissão expressa, resultaria no mínimo incompreensível surpreender a parte com uma decisão absolutória motivada tão só pela falta do comprovativo (assento de casamento) do matrimónio da ré. Sempre haveria então que dar oportunidade ao autor de suprir a falta, convidando-o a juntar o documento, o que importaria a anulação do julgamento para tal efeito. Poderia até o tribunal solicitar oficiosamente o documento.

Em face da confissão expressa da ré, e tendo em conta a jurisprudência acima referida, que se perfilha, foi correctamente considerado o facto questionado.

Relativamente aos factos 7 e 8 valem as considerações atrás expendidas. Sempre haveria que dar como assente, porque aceite, que o réu marido não procedeu ao pagamento da dívida.

Relativamente ao facto 9, a prova do mesmo resulta da confissão nos termos do artigo 490 do CPC.

Refere-se no facto que “ As mercadorias - bacalhau-, que o marido da R: recebeu da A., destinaram-se ao comércio que aquele fazia, sendo dessa actividade que o marido da R. usufruía rendimentos para se sustentar a si e à família – R. e filhos”. Corresponde ao alegado em 11 e 16 da petição, que a ré aceitou. No artigo 16 concretiza-se que os rendimentos eram empregues para satisfazer as necessidades com alimentação, vestuário e as despesas normais em correntes dos mesmos. Toda esta matéria foi admitida por acordo conforme resulta da contestação. O próprio consentimento na contracção da dívida, alegado em 15 se mostra aceite.

Invoca a recorrente que na sua contestação se alegam factos que impedem a verificação do proveito comum. Não descortinamos na contestação os factos que se sustenta alegados.

Improcede nesta parte a apelação.


***

Inconstitucionalidade do artigo 1691, nº 1, d) do CC..

A recorrente questiona a constitucionalidade da norma do artigo 1691, nº 1, d) do CC., invocando que a presunção do normativo condena o cônjuge à partida, exigindo-lhe a prova de um facto negativo, requerendo um esforço desmesurado e atentando contra qualquer igualdade no acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva.

Provado que se mostra o proveito comum, não reveste interesse a apreciação da questão colocada.

Sempre se dirá não ocorrer a invocada inconstitucionalidade, não se mostrando violados os princípios da proporcionalidade ou o da igualdade. Sobre o assunto o Ac. da RP de 26/4/04, www.dgsi.pt/jtrp, processo nº 0450666.

No acto de consagração legislativa, o legislador equaciona os diversos interesses em jogo, procurando a solução que do ponto de vista social (na percepção de quem legitimamente tem a autoridade para legislar), melhor satisfazem as exigências sócias e são promotoras da paz e justiça social.

Tal acondicionamento pode implicar algum sacrifício de princípios constitucionais. Não é qualquer sacrifício que importa inconstitucionalidade, sob pena de a actividade legislativa se tornar impossível e impossível a regulação social que com a mesma se pretende.

O sacrifico imposto aos princípios invocados pela recorrente pela norma referida, constituem uma opção do legislador em face de outros valores caros à comunidade com ele conflituante. No caso pretendeu-se a tutela do comércio. A este propósito, Vasco da Gama Lobo Xavier, Direito Comercial, Sumários das Lições ao 3º ano jurídico, Coimbra 1977-1978, 92 e ss., citado no Ac. RP referido:

«...O regime do artº 1691º, nº1, al. d), visa a tutela do comércio: alargando-se o âmbito da garantia patrimonial concedida aos credores daqueles que exercem o comércio – ou seja, como veremos, os credores dos comerciantes – facilita-se a estes últimos a obtenção de crédito e, desta maneira, favorecem-se as actividades mercantis. / Esta tutela envolve decerto o sacrifício dos interesses do cônjuge do comerciante e da própria família. Só que este sacrifício não é arbitrariamente imposto, pois o legislador entendeu que, em princípio a dívida terá sido, ao fim e ao cabo, contraída no interesse do casal e não apenas no do cônjuge comerciante. E nesta conformidade se fixou o limite a partir do qual os interesses do cônjuge do comerciante (e da família) não devem ceder perante os interesses do comércio – dispondo-se, como vimos, que a dívida não será da responsabilidade de ambos os cônjuges quando não tiver sido contraída “em proveito comum do casal”».

O comando em apreço não impõe sem mais a responsabilidade ao cônjuge não interveniente no negócio causal da dívida, antes permitindo o afastamento dessa responsabilidade mediante a demonstração de que não se verifica o proveito comum. Prova aliás que a recorrente não só não tentou, como ao invés aceitou a ocorrência do proveito comum.

O sacrifício imposto é aceitável do ponto de vista social e constitucional, tendo em vista os interesses prosseguidos, até porque, por norma, na nossa sociedade, a actividade comercial de um dos cônjuges, em regime de comunhão, é exercido tendo em mente o sustento e proveito da família.

O sacrifício probatório não é como se afirma desmesurado, pois como se refere no Ac. RP de Ac. da RP de 26/4/04, acima referido e que de perto se acompanha “…é o cônjuge do devedor que se encontra em posição privilegiada de demonstrar tal situação, que já não o credor que, por se tratar a maioria das vezes de realidade inerente à intimidade da família, com ela nenhum contacto terá, vendo, assim, afastada qualquer possibilidade de o alegar e, menos ainda, de o demonstrar…”

Improcede a apelação na totalidade.

DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar improcedente a apelação interposta pela ré confirmado a decisão recorrida.

*
Custas nesta relação pela recorrente.