Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
411/14.4T8VCT-A.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
REPETIÇÃO DA PROVIDÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: .A diferente qualificação jurídica pelo Tribunal de determinados factos alegados pela parte, não fere a sentença de nulidade, pois não está vedado ao Tribunal qualificar como “repetição de providência” o que a parte, com base nos mesmos factos, tinha apelidado de excepção do caso julgado.
. Para os efeitos do artº 362º nº 4 do CPC, considera-se injustificada a providência nos casos em que o Tribunal julga a oposição procedente e revoga a decisão que decretara a providência.
. A locução “mesma causa” inserta no nº 4 do artº 362º do CPC não significa necessariamente mesma acção ou meio processual, mas mesmo litígio ou questão a decidir.
. Assim, considera-se que ocorre repetição da providência quando a requerente formula nova pretensão com a mesma finalidade, ainda que a causa de pedir não seja totalmente coincidente com a invocada no procedimento cautelar anterior, mas tem por fim o mesmo pedido que o formulado na providência anterior, no âmbito do mesmo litígio ou questão a decidir: restituição da posse da casa sita na morada identificada e que constituiria a casa de morada de família, porquanto a proibição legal visa impedir a formulação de uma pretensão que tem a mesma finalidade que a providência julgada injustificada ou declarada caducada.
.Litiga com má fé a apelante que insiste na utilização de um meio processual para se ver restituída à posse, não desconhecendo que tal pretensão já lhe tinha sido negada, por se considerar não se verificarem os pressupostos da união de facto, os quais teriam sempre de se verificar, independentemente da data em que ocorreu o alegado esbulho e até do esbulhador, pois que constitui condição indispensável para a aplicação do disposto no artº 5º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
AA veio, por apenso à acção principal, instaurar procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra BB, CC, DD e EE, em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF.
Alega, em síntese, que durante mais de 30 anos viveu com o falecido FF em comunhão de cama, mesa e habitação como se fossem marido e mulher. Durante todos esses anos coabitaram na mesma casa de morada de família, em economia comum, para ela contribuindo a requerente com os seus rendimentos. Esta relação era conhecida dos seus familiares, amigos e do público em geral, mas nunca foi bem aceite pelos filhos do falecido por entenderem que a profissão exercida pela requerente de cabeleireira não se compadecia com a notoriedade do pai enquanto professor.
Desde 2009 que a requerente e o falecido estabeleceram a sua residência numa casa da propriedade do falecido FF, sita na Rua Flávio Gonçalves, …, lote 1, na freguesia de Darque.
Na manhã de 7 de Janeiro de 2014, na ausência da requerente, os referidos CC e DD, com o conhecimento das mencionadas BB e EE sem qualquer autorização da requerente, introduziram-se na habitação e mudaram as fechaduras e alteraram o sistema de alarme. Desde essa altura que está impedida de aceder à sua habitação e aos seus bens.
Conclui requerendo a restituição provisória da referida habitação à sua posse e a fixação de uma sanção pecuniária compulsória, em montante não inferior a 150.00 euros/dia ou em montante que o Tribunal considere adequado, de modo a assegurar a efectividade da providência decretada.
Procedeu-se à inquirição de testemunhas e a final foi decretada a providência requerida e fixada uma sanção pecuniária compulsória no montante de 150,00 por cada dia que os requeridos não permitissem o acesso da requerente à identificada habitação.
A herança indivisa veio deduzir oposição, defendendo-se por excepção e por impugnação:
Por excepção, invocou a existência de caso julgado, ou caso assim não se entendesse, a autoridade do caso julgado, defendendo que a requerente já havia instaurado providência idêntica em 21/11/2013, alegando o esbulho violento da mesma habitação e do mesmo recheio e onde se debateu exactamente a mesma questão, a de saber se a requerente tinha direito a essa habitação por ter vivido em união de facto com o falecido FF, tendo sido julgada procedente a oposição que o ora primeiro e único requerido veio a deduzir, decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Mais impugnou os factos alegados pela requerente, negando que esta alguma vez tivesse vivido em comunhão de cama, mesa e habitação com o falecido.
Pediu a condenação da requerente como litigante de má fé no pagamento de uma multa e de uma indemnização a seu favor.
Notificada para responder, a requerente defendeu que a excepção de caso julgado não era aplicável às providências cautelares, pois estas não formam caso julgado formal.
Foi proferido despacho que considerou ter ocorrido repetição de procedimento cautelar já anteriormente instaurado, ordenou o levantamento da providência e condenou a requerente como litigante de má fé na multa de duas Ucs e em indemnização consistente no reembolso das despesas a que a má fé a tenha obrigado, incluindo os honorários do mandatário da requerida.
É deste despacho que a requerente veio interpor o presente recurso, onde formulou as seguintes conclusões:
A – Da nulidade da decisão
1. Dispõem as alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC que:
"1. É nula a sentença quando: (. .. )
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
d) O Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
2. A excepção invocada pelos recorridos, para impedir o direito da recorrente, foi a do caso julgado.
3. A fundamentação do Tribunal a quo, que pugnou pela ausência de harmonia com as providências cautelares, atribuiu total razão à recorrente, atentos os pressupostos e a natureza das decisões proferidas.
4. Veio a concluir pela procedência da excepção (caso julgado), trazendo abrigo nos fundamentos da repetição da providência, prevista no artigo 362º, n.º 4 do CPC.
5. Defendendo os fundamentos da decisão do Tribunal a quo na improcedência do caso julgado e encerrando, depois, pela procedência da excepção, com fundamentos que lhe não são aplicáveis, revogando a decisão que decretou a providência cautelar de restituição provisória da posse, mostra-se verificada a contradição.
6. A douta decisão está ferida de nulidade, nos termos da al. c), do n.º 1 do artigo 615º, do CPC, que expressamente se invoca.
Ainda que assim se não entenda,
7. A sentença que se pronuncia sobre questões de que não podia tomar conhecimento é nula, nos termos da al. d) do artigo 615º do CPC.
8. Apreciando a excepção de caso julgado invocada pelos recorridos, o Tribunal a quo, firmou a sua decisão nos fundamentos na repetição de providências, prevista no n.º 4 do artigo 362º do CPC.
9. Se tal disposição legal se emoldura na secção das providências cautelares, e se os recorridos, em momento algum da sua oposição, ofereceram alusão, não foi, o Tribunal a quo confrontado com tal questão, e consequentemente, não tinha quanto a tal matéria, que se pronunciar.
10. O Tribunal a quo ao tomar conhecimento de questões que não lhe foram suscitadas, violou o disposto no artigo 615º, n.º 1, al.. d), sendo nula a decisão proferida.
Sem prescindir,
B – Da inaplicabilidade do artº 362º, nº 4 do CPC
11. Dispõe o n.º 4, do art.º 362.º do CPC que: "Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado."
12. Aplicou, o Tribunal a quo a indicada disposição legal, considerando que:
"No confronto das duas petições iniciais (a do processo nº 3114/13.3TBVCT junta a fls. 163 e ss), é notório que a requerente sustenta a providência na mesma causa de pedir e deduz exactamente o mesmo pedido, apenas com duas diferenças: desta vez a providência é proposta contra todos os filhos do falecido FF e o acto do "esbulho" ocorre agora em 7/10/14 (necessariamente posterior ao primeiro, posto que o prédio já tinha sido "devolvido" aos requeridos após a improcedência da primeiro providência cautelar).",
"Ao propor nova acção nos termos em que o fez, (ainda por cima sem a audiência prévia dos requeridos) a requerente colocou o Tribunal na posição de decidir de forma contrária àquilo que já tinha sido decidido noutro acção o que é a todos os níveis reprovável e ilegal.",
"Verifica-se, por conseguinte, estamos em termos práticos perante uma situação de repetição da mesma providência, porque a causa de pedir e os pedidos desta 2º providência já estão contidos na primeiro, o que, como se viu, não é admissível- art. 362º, n.º 4 do CPC."
13.Os argumentos do Tribunal a quo não são de acolher ou estariam submersos os requisitos disciplinados no art. 362.º do CPC.
14.Resulta do referido normativo legal que não é admissível a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado, na dependência da mesma causa. (sublinhado nosso)
15.Os presentes autos de providência cautelar correm por apenso aos de processo principal n.º 411/14.4T8VCT, encontrando-se, portanto, na sua completa dependência.
16. Inexiste qualquer outro procedimento cautelar nos autos de processo principal.
17. A providência a que os recorridos aludem, pese embora para fundamentar a figura de caso julgado, correu termos sobre o n.º 3114/13.3TBVCT, do extinto 4º juízo cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo e não se achou dependente de causa principal, que nunca existiu.
18. Sobre a questão da repetição de providência pronunciou-se o Tribunal Central Administrativo do Norte, no acórdão n.º 00970/12.6BEPRT, de 19.10.2012, in DGSI, constando do sumário do relator o seguinte:
" 1. Devido à natureza e finalidades dos procedimentos cautelares, o instituto do caso julgado não se lhes aplica, estando prevista no n. º 4 do artigo 381. º do Código de Processo Civil - aplicável ao contencioso administrativo ex vi artigo 1º CPTA e em ordem a garantir os mesmos efeitos práticos, a figura da inadmissibilidade da repetição de providência que, no entanto, só opera quando as providências cautelares estejam na dependência da mesma causa.
2. Assim, a providência cautelar instaurada como preliminar da acção administrativa especial nº1012/12.7BEPRT não pode ser considerada como repetição da providência cautelar instaurada como preliminar da acção correspondente ao processo nº 2392/10.4BEPRT, entretanto caducada, ainda que ambas as providências se apresentem como idênticas em termos de sujeitos, pedido e causa de pedir."
19. Relativamente à interpretação da expressão "na dependência da mesma causa", pronuncia-se o referido do acórdão dizendo o seguinte:
A expressão restritiva «na dependência da mesma causa» implica que o julgado formado na providência cautelar só releva na órbita da causa principal a que se refere. Efectivamente, todo o processo cautelar, seja como incidente seja como preliminar, fica sempre na estrita dependência da causa (principal) em que se discute a decisão de mérito cuja utilidade pretende assegurar.
Assim, a repetição da providência cautelar não se insere na temática do caso julgado material, antes mostra afinidade com o instituto do caso julgado formal (artigo 672º CPC), na medida em que só funciona no âmbito da relação processual em que é proferida.
Por outras palavras, independentemente da similitude que as providências instauradas apresentem, a que foi instaurada como dependência do presente processo não pode ser considerada como repetição da outra providência cautelar instaurada no processo, nº 2392/10.4BEPRT. Ou, se quisermos parafrasear a lei, a "repetição" da providência neste caso é "admissível", porque se situa na dependência de uma causa e relação processual diversa."
20. A recorrente sufraga tais argumentos.
21. Com a propositura do presente procedimento cautelar a recorrente não colocou o Tribunal em posição de decidir de forma contrária ao que havia decidido em outro procedimento,
22. A decisão proferida naquele outro procedimento ficou restringida em si mesma, não reflectindo mérito, ou seja, não tendo formado decisão fora do processo a que estava adstrito, pese embora, até, nunca ter estado dependente de qualquer acção principal.
23. As decisões proferidas nas providências cautelares não formam caso de julgado material, ou seja, não incidem sobre o mérito da causa ou relação jurídica substancial, antes sugere afinidade com o instituto de caso julgado formal que representa apenas uma decisão sobre a relação processual.
24. O procedimento cautelar n.º 3114/13.3TBVCT a que se alude e os presentes autos, não apresentam a mesma causa de pedir e pedido, como defende a Mma Juiz a quo.
25. As partes de ambos os pleitos são notoriamente diferentes.
26. A providência requerida com o n.º 3114/13.3TBVCT, sustenta-se no esbulho violento efectuado por DD em 21.11.2013.
27. Na providência dos presentes autos o esbulho violento ocorrido em 07.10.14, é atribuído a BB, CC, DD, EE em representação da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de FF.
28. Também, pela via dos pressupostos do instituto da repetição, quedam inócuos os fundamentos da douta decisão (pese embora para a procedência do CASO JULGADO invocado).
29. No que à consequência da litigância de má-fé respeita pela apresentação da presente providência cautelar, por apenso aos autos de processo principal, sempre se afirma que a recorrente não fez do processo, nem dos meios processuais, um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, ou impedir a descoberta da verdade.
30. A recorrente acudiu à via judicial para garantir a defesa dos seus direitos como era o da restituição provisória da sua casa de morada de família e respectivo recheio.
31. Os recorridos agiram por meio de violência e esbulho, tomando de assalto a referida casa de morada de família, enjeitando a via judicial que lhes conferisse os direitos de posse, e em total desrespeito pela ordem jurídica.
32. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 362º, n.º 4, 542º, n.º 1 e n.º 2, al. d) e 543º, n.º 1, al. a), todos do CPC.
A parte contrária veio contra-alegar e ampliou o objecto do recurso, alegando, em síntese, que ainda que não se entenda que ocorre repetição da providência, como foi considerado na sentença recorrida, sempre será aplicável ao caso a excepção de caso julgado, ou no mínimo, a autoridade de caso julgado.
A apelante respondeu à ampliação do objecto do recurso.

II – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,
as questões a decidir são as seguintes:
. se a decisão recorrida é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão;
. se a decisão recorrida é nula por o Tribunal ter conhecido de questão de que não podia conhecer;
. se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que ordene a produção da prova oferecida pela oponente, por não estarmos perante repetição de providência na dependência da mesma causa principal; e,
. se a recorrente deve ser condenada como litigante de má fé.
Subsidiariamente, se ocorre a excepção de caso julgado ou de autoridade do caso julgado (ampliação do recurso).

III – Fundamentação
A situação factual é a que supra se refere e ainda os seguintes factos:
. A requerente e ora apelante instaurou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra DD que correu termos sob o nº 3114/13 no Tribunal Judicial de Viana do Castelo.
. No referido procedimento a requerente alegou ter vivido com o pai do requerido em união de facto, durante 30 anos e até à sua morte, ultimamente e desde 2007, na Rua Flávio Gonçalves, lote …, Darque.
. Desde essa data e até 20.11.2013 procedeu à sua limpeza e conservação, colhendo os seus frutos e beneficiando de tudo o que aquela lhe proporciona, sem oposição de ninguém e do mesmo modo, de forma pacífica, contínua e pública, usou e usufruiu de todo o recheio da habitação.
. No dia 21 de Novembro de 2013, da parte da manhã, o requerido, acompanhado de um terceiro que não foi possível identificar, bem sabendo que a requerente já havia saído de casa da morada de família e ali não se encontrava ninguém, partiu o vidro de uma janela, introduziu-se na casa e mudou as fechaduras, sem qualquer autorização ou consentimento seus, recusando-se a entregar quaisquer chaves à requerente.
. A requerente está impossibilitada de aceder à sua habitação, tendo ali os seus pertences, documentos e bens, estando impedida de ali dormir, comer, receber família e amigos.
. Requereu a final ser ordenada a restituição provisória de posse da casa de morada de família à requerente sita na Rua Flávio Gonçalves, lote …, Darque, Viana do Castelo, condenando-se o requerido a pagar à requerente uma indemnização correspondente ao prejuízo sofrido, nomeadamente, substituição das fechaduras a liquidar em execução de sentença por naquele momento ser indeterminável.
. Foram ouvidas as testemunhas arroladas pela requerente XXX…
. Foi proferida, em 16.12.2003, sentença que ordenou a restituição requerida.
. O requerido deduziu oposição que foi julgada procedente, após a produção de prova e foi consequentemente, por sentença de 7 de Abril de 2014, revogada a decisão que decretara a restituição provisória de posse.
. A ora apelante interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal, o qual, por acórdão de 11 de Setembro de 2014 julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão que revogara a providência.

Da nulidade da decisão por contradição entre os fundamentos e a decisão
A propósito desta nulidade diz José Lebre de Freitas Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 670. “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
Ora o invocado não constitui de modo algum o vício constante da alínea c) do nº 1 do artº 615º do CPC.
A Mma Juiz a quo julgou procedente a excepção invocada, apenas a qualificou de modo diferente. O que releva são os factos em que os oponentes se basearam para fundamentarem a sua defesa, não estando o julgador sujeito à qualificação jurídica dada pelas partes (artº 5º, nº 3 do CPC) e a Mma. Juíza a quo não se socorreu de outros factos, não alegados pelas partes.

Da nulidade da decisão por conhecer de questões de que não podia conhecer
A sentença será nula, quer no caso de o juiz deixar de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, quer quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artº 615, nº 1, alínea d), do CPC). Desde logo, importa precisar o que deve entender-se por questões, cujo conhecimento ou não conhecimento constitui nulidade por excesso ou falta de pronúncia. Como tem sido entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, apenas as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o “thema decidendum”, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artº 615, nº 1, al. d) do CPC. Deve-se assim distinguir as verdadeiras questões dos meros “raciocínios, razões, argumentos ou considerações”, invocados pelas partes e de que o tribunal não tenha conhecido ou que o tribunal tenha aduzido sem invocação das partes Entre outros, Abílio Neto, Código do Processo Civil Anotado, 14.ª ed., pág. 702.. Ora, como é sabido, a nulidade por excesso de pronúncia prevista na alínea d) do nº 1 do artº 615º do CPC, ocorre quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Este normativo tem de ser interpretado em conjugação com o disposto no artº 608, nº 2, 2ª parte, do CPC, que impõe que o juiz não se ocupe senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras. Por questões deve entender-se “os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente cumpre, ao juiz, conhecer” Conforme defendem Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 670.
.
No entender dos apelantes, o Mmo Juiz a quo pronunciou-se sobre questões de que não podia conhecer, ao julgar que o presente procedimento era repetição do anteriormente instaurado, por não sido suscitada essa questão, mas apenas a de excepção do caso julgado e da autoridade do caso julgado.
Efectivamente na oposição que deduziram os apelados não invocam a violação do artº 362º nº 4 do CPC, mas é claro que invocaram a repetição de procedimentos (cfr resulta desde logo do artº 16º da oposição onde é literalmente invocada a repetição) e dos artº 17º a 19º e 30º a 33º. A qualificação jurídica que os apelantes fazem dos factos alegados não vincula o tribunal.
Assim, o Mmo. Juiz a quo ao qualificar de modo diferente os factos invocados pelos apelados, não cometeu qualquer nulidade.

Da aplicabilidade do artº 362º nº 4 do CPC
Dispõe este artigo que “não é admissível na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado”.
Alega a apelante que não se aplica este preceito legal porquanto não corre por apenso ao processo principal com o nº 411/14.4T8VCT qualquer outro procedimento cautelar além do presente. O procedimento a que os apelados se referem correu termos sob o nº 3114/13.3TBVCT do extinto 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viana do Castelo que não se achou dependente de qualquer causa principal porque nunca foi instaurada, pelo que, em seu entender, não se pode considerar que os dois processos estão na dependência da mesma causa.
Vejamos:
A solução passa pela interpretação do que se deve entender por “dependência da mesma causa” e por “repetição de providência”.
A presente redacção vigora desde o Decreto-Lei n.º 47 690, de 11 de Maio de 1967 O qual introduziu alterações ao CPC e cuja redacção do nº 1 do artº 387º era a seguinte:”Se a providência for julgada injustificada ou caducar, o requerente é responsável pelos danos causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal, e não pode requerer outra providência como dependência da mesma causa”., e abrange duas situações diferentes: que tenha sido decretada a caducidade da providência ou que tenha sido julgada injustificada. No caso, a primeira providência foi julgada injustificada. Conhecendo da oposição, o Tribunal ordenou a revogação da decisão que decretara a restituição do imóvel, o que constitui uma das situações susceptíveis de serem subsumidas à previsão legal.
E poderá dizer-se que a presente providência é uma repetição da anterior?
O primeiro procedimento foi instaurado apenas contra DD e o procedimento actual foi instaurado contra a herança aberta e indivisa por óbito de FF, representada por DD e demais herdeiros, filhos do falecido: BB e EE.
O primeiro procedimento tem por fundamento a alegada união de facto entre a requerente e o pai do requerido ao longo de mais de 30 anos e o esbulho levado a cabo pelo então único requerido praticado em 21.11.2013 e o actual, a mesma união de facto e o esbulho levado a cabo pelo mesmo DD e também pelo seu irmão, CC, em 7.10.2014, sendo agora requerida a herança, representada por todos os herdeiros.
Em ambos os procedimentos a requerente pediu para ser restituída à posse da casa sita na Rua Flávio Gonçalves, nº …, lote 17, Darque, casa de morada de família, onde vivia com o autor da herança à data da sua morte.
Ora, não obstante os factos não serem exactamente os mesmos, assim como as partes, entendemos que está em causa a repetição da mesma providência que tem por fim o mesmo pedido: restituir à requerente a posse da casa sita na morada identificada e que constituiria a casa de morada de família.
E o que se deve entender por repetição na dependência da mesma causa?
Desde o Código de Processo Civil de 1961 que o legislador manteve sempre inalterada a expressão “na pendência da mesma causa”. Conforme se refere no Ac. do TRL de 03.05.2012 Proferido no proc. 2737/11, citado pelos apelados, acessível em www.dgsi.pt., na interpretação da norma questionava-se se esta expressão queria significar uma causa já pendente ou a causa que tem por fundamento o direito acautelado e da qual é sempre dependente a providência cautelar. Ora, não tendo o procedimento cautelar autonomia, dependendo de uma acção já proposta ou a propor pelo requerente, a resposta à questão apenas pode ser a que foi dada no Acórdão da Relação do Porto, de 18 de Maio de 1977, em cujo sumário se lê, que «A locução “mesma causa” (n.º1 do art.º 387.º) não significa necessariamente mesma acção ou meio processual, mas mesmo litígio ou questão a decidir»Col. Jur., 1977, 4.º, 849..
Não deixa de haver repetição da providência na dependência da mesma causa nos casos em que, como nos autos, a apelante não chegou a instaurar a acção principal, à qual viesse a ser apensado o procedimento instaurado, em primeiro lugar. O litígio e a questão em decidir são coincidentes em ambas os procedimentos: saber se a requerente beneficia da protecção concedida pelo artº 5º da Lei nº 7/2001 de 11/05.
A não se entender assim, a parte poderia indefinidamente repetir um procedimento. Bastaria que não instaurasse a acção principal até que obtivesse uma decisão favorável no procedimento e as providências nunca estariam na dependência da mesma causa.
Assim, em nosso entender, não obsta a que considere haver repetição a instauração de novo procedimento ao qual foi atribuído nova numeração.
A proibição de repetição da providência tem por fim evitar a repetição de actos e por outro lado assenta em razões de autoridade e prestígio das decisões, prevenindo eventuais pronúncias de sinal contraditório ou de conteúdo repetitivo sobre o mesmo objecto. Tem por base fundamentos de natureza similar aos que estão subjacentes ao instituto do caso julgado Cfr. se defende no Ac. do STJ de 07.07.1999, proferido no proc. nº 99B563, disponível em www.dgsi.pt. e tais razões mantém-se plenamente na situação dos autos.
A proibição visa impedir a formulação de uma pretensão que tem a mesma finalidade que a providência julgada injustificada ou declarada caducada, ainda que não seja ipsis verbis a sua cópia, no âmbito do mesmo litígio ou questão a decidir. Vedado está ao requerente ainda que sejam outros os factos alegados como fundamento. Mas já não existe impedimento legal a que seja solicitada outra providência de conteúdo diferente ou destinada a tutelar interesses diferentes daqueles que se visaram com a providência anterior Conforme defende Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 4.ª Edição, Almedina, 2010, pp.129, apud o Ac. do TRL que temos vindo a seguir de perto..
Não o entender assim seria dar cobertura legal a situações como a dos autos, em que se afigura que a apelante pretende, através da presente providência, pôr em causa a decisão do Tribunal da Relação, proferida em 11.09.2014 que confirmou a decisão da 1ª instância que revogara a providência.
Assim, a decisão recorrida não merece censura.
O decidido neste procedimento não obsta a que a requerente instaure, como instaurou, acção principal contra a herança, visando a restituição do imóvel. O que não pode é obter a tutela provisória concedida pelo recurso ao procedimento cautelar.

Da alegada má fé da apelante
De acordo com o n.º 2 do artº 542º do CPC, na parte que aqui pode interessar, “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade …” – nº 2 do mesmo artigo.
Escreveu-se a propósito na decisão recorrida:
“Perante os factos supra referidos, é por demais evidente que a requerente fez um uso manifestamente reprovável do processo, usando de uma segunda providência, sem audição prévia dos requeridos e após ter sido vencida na primeira, para ser ver novamente restituída à posse do mesmo imóvel. Por assim ser condeno a requerente como litigante de má-fé numa multa de 2 UC e numa indemnização aos requeridos que consistirá no reembolso das despesas a que a má-fé tenha obrigado, incluindo os honorários. “
Diversamente do que se verificava anteriormente à reforma processual civil introduzida pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, passou a ser sancionável a título de má-fé, não apenas a lide dolosa, mas também a lide temerária, como dela se diz quando as regras de conduta processual conformes com a boa-fé são violadas com culpa grave ou erro grosseiro Neste sentido, José Lebre de Freitas. A. Montalvão Machado e Rui Pinto, obra citada, p. 194..
Na apreciação da conduta da parte deverá atender-se ao princípio da cooperação consagrado no art.º 7º, nº 1 do CPC que recai sobre as partes.
Conforme tem vindo a ser entendido pela jurisprudência, a conclusão no sentido da litigância de má fé não pode ser extraída automaticamente da verificação de comportamento processual subsumível à tipicidade das várias alíneas do n.º 2 do art.º 542º do Cód. Proc. Civil. A condenação nesse sentido exige uma apreciação casuística.

Resulta manifesto que, no caso, a apelante insistiu na utilização de um meio processual para se ver restituída à posse, não desconhecendo que tal pretensão já lhe tinha sido negada, por se considerar não se verificarem os pressupostos da união de facto, os quais teriam sempre de se verificar, independentemente da data em que ocorreu o alegado esbulho e até do esbulhador, pois que constitui condição indispensável para a aplicação do disposto no artº 5º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio. Trata-se de conduta dolosa que não pode deixar de ser censurada.

Não merece assim também qualquer censura a condenação da apelante como litigante de má fé.

Ficam prejudicadas as questões suscitadas na ampliação do objecto do recurso pela apelada.

Sumário:
.A diferente qualificação jurídica pelo Tribunal de determinados factos alegados pela parte, não fere a sentença de nulidade, pois não está vedado ao Tribunal qualificar como “repetição de providência” o que a parte, com base nos mesmos factos, tinha apelidado de excepção do caso julgado.
. Para os efeitos do artº 362º nº 4 do CPC, considera-se injustificada a providência nos casos em que o Tribunal julga a oposição procedente e revoga a decisão que decretara a providência.
. A locução “mesma causa” inserta no nº 4 do artº 362º do CPC não significa necessariamente mesma acção ou meio processual, mas mesmo litígio ou questão a decidir.
. Assim, considera-se que ocorre repetição da providência quando a requerente formula nova pretensão com a mesma finalidade, ainda que a causa de pedir não seja totalmente coincidente com a invocada no procedimento cautelar anterior, mas tem por fim o mesmo pedido que o formulado na providência anterior, no âmbito do mesmo litígio ou questão a decidir: restituição da posse da casa sita na morada identificada e que constituiria a casa de morada de família, porquanto a proibição legal visa impedir a formulação de uma pretensão que tem a mesma finalidade que a providência julgada injustificada ou declarada caducada.
.Litiga com má fé a apelante que insiste na utilização de um meio processual para se ver restituída à posse, não desconhecendo que tal pretensão já lhe tinha sido negada, por se considerar não se verificarem os pressupostos da união de facto, os quais teriam sempre de se verificar, independentemente da data em que ocorreu o alegado esbulho e até do esbulhador, pois que constitui condição indispensável para a aplicação do disposto no artº 5º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio.

IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação e em confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Not.
Guimarães, 10 de Setembro de 2015
Helena Melo
Isabel Silva
Heitor Gonçalves