Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1805/13.8TJVNF.G1
Relator: ANTÓNIO SANTOS
Descritores: ANULAÇÃO DE DELIBERAÇÃO SOCIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
CONTITULARIDADE DE QUOTA SOCIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – O contitular de quota de sociedade não pode, por si, isoladamente, exercer os direitos inerentes à mesma, antes o deve fazer através de um representante comum.
II – Agindo em juízo individualmente em acção de impugnação de deliberações sociais, e porque o subjacente direito não é, por natureza, um direito de exercício individual , tal conduz inevitavelmente à excepção dilatória da sua ilegitimidade e à consequente absolvição da instância da demandada pessoa colectiva .
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 2 dª Secção CÍVEL do Tribunal da Relação de Guimarães

1.- Relatório.
I.., residente em Vila Nova de Famalicão, intentou acção declarativa de condenação, com processo comum e sob a forma ordinária, contra F.., Lda, sociedade comercial por quotas com sede social na Avenida.., em Vila Nova de Famalicão, pedindo que , sendo a acção julgada provada e procedente , sejam as deliberações sociais aprovadas pela Ré na sessão ordinária de assembleia geral realizada a 21/5/2013 , declaradas nulas , ou , se assim não se entender, anuladas.
Para tanto, alegou a autora, em síntese, que :
- é contitular de participações sociais no capital social da Ré, por legado feito por seu falecido Pai “em comum e partes iguais e por conta da sua quota disponível “ à A. e a seu irmão J..;
- Sucede que, a 21/5/2013, em sessão ordinária da assembleia-geral da Ré, foram aprovadas com o único voto favorável da sócia maioritária da ré determinadas deliberações [ v.g. foi aprovado o relatório de gestão, o balanço e contas referentes ao exercício de 2012, e a constituição de reservas legais no montante de quatro mil duzentos e dez euros e constituir reservas livres no montante de oitenta mil e um euros e quarenta e três cêntimos ] ;
- Porém, à autora foi vedado obter uma fotocópia dos documentos que foram analisados na sessão ordinária de assembleia geral aludida, sendo as deliberações sociais na mesma aprovadas nulas , ou , pelo menos, anuláveis, porquanto consubstanciam o exercício abusivo, ilegítimo e ilícito dos direitos sociais e das maiorias para prejudicar a sociedade e a A. enquanto contitular de parte do capital social;
- Efectivamente, a deliberação aprovada no tocante à constituição de reservas legais e à constituição de reservas livres, e em contrário do disposto no art.º 217º, CSC , não foi aprovada por maioria de três quartos do capital social como era exigido, ocorrendo violação de lei expressa, sendo portanto nula, ou , pelo menos, anulável , sendo que à A. Assiste o direito de requerer a declaração de nulidade ou, se assim não se entender, a anulação das deliberações supra-descritas, face à sua qualidade de contitular de participações sociais na R..
1.1.- Após citação, contestou a Ré, por excepção e impugnação motivada, invocando designadamente a Excepção de ilegitimidade activa da autora, pois que, alega, sendo a Autora contitular de duas participações sociais no capital social da Ré ( concretamente de duas quotas, sendo uma do valor nominal de € 75.000,00, e uma outra do valor nominal de €425.000,00 ) , por força do que dispõem os artºs 222.º e 223, ambos do Código das Sociedades Comerciais, devem os contitulares da quota exercer os direitos a ela inerentes através de um representante comum, estando-lhes vedada a prática de actos isoladamente, sob pena de anulabilidade.
1.2. – Após réplica [ no âmbito da qual a autora responde à matéria da excepção e deduz incidente de intervenção principal provocada de J.. ] , foi admitida a intervenção principal provocada de J.. , e, citado o terceiro chamado , veio o mesmo declarar fazer seus os articulados da Ré F.., Lda, a quem disse que se associa, seguindo-se depois a resposta da autora.
1.3.- Designado dia para uma audiência prévia, à mesma se procedeu ( a 8/1/2015 ), sem que tenha sido possível a conciliação das partes, após o que, proferiu a Exmª Juiz titular a seguinte decisão :
“ Os presentes autos iniciaram-se com a PI apresentada pela Autora I.. contra a Ré «F.., Ldª», peticionando a declaração de invalidades das deliberações sociais aprovadas na Assembleia Geral da Ré de 21.05.2013.
Resulta desde já assente que o pai da Autora - M.. – por testamento outorgado em 4.08.2010 legou à Autora e ao seu irmão e interveniente principal destes autos, em partes iguais e por conta da quota disponível, as quotas da Ré, melhor descritas no art. 1º da PI apresentada.
A autora, é por isso, contitular com o seu irmão, das referidas quotas da Ré.
Citada para contestar, veio a Ré invocar a excepção de ilegitimidade da Autora.
Por despacho datado de 5.12.2013, foi relegado o conhecimento da excepção invocada para sede de sentença.
Todavia, porque entendemos que já estamos em condições de apreciar e decidir a excepção invocada, e tendo em atenção os princípios de economia processual e de afastamento da prática de actos inúteis, iremos de imediato, proferir decisão relativamente à excepção invocada.
Conforme se referiu, a Autora é contitular de duas quotas da Ré, uma de valor nominal de 75.000,00 euros e outra de 425.000,00 euros.
Estabelece o art. 222º do Código das Sociedades Comerciais que os contitulares das quotas devem exercer os direitos a elas inerentes através de um representante comum, estando vedada aos contitulares a prática de actos isoladamente ou sequer mesmo em litisconsórcio, sob pena de invalidade do acto.
No caso dos autos, nunca foi designado um representante comum para exercer os direitos inerentes às quotas em comum da Autora e do seu irmão, em obediência às regras do art. 1407º do Código Civil.
Desta feita, não pode a Autora, isoladamente praticar quaisquer actos em relação à sua parte ideal das quotas, designadamente, não pode intentar a presente acção por carecer totalmente de legitimidade para o efeito.
Neste mesmo sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, por Acordão proferido a 3 de Julho de 2014, cuja cópia se encontra junta aos autos a fls. 266, o qual versa sobre situação idêntica e no qual figura como parte a aqui Autora.
Face ao exposto, decide-se declarar a Autora I.., parte ilegítima na presente acção, e consequentemente determina-se a absolvição da Ré da instância – Art. 278º, n.º1, al. D), 576º, n.º 2 e 577º, al. E), todos do CPC.
Famalicão, d.s.”
1.4.- Inconformado com a decisão indicada em 1.3., da mesma apelou então a autora I.., apresentando na respectiva peça recursória as seguintes conclusões :
1 - A quota social de que a recorrente é contitular foi objecto de um legado (vd. nºs 1 a 4 da p.i.), tendo já sido registada a favor da recorrente e do outro contitular no correspondente registo comercial.
2 - Afastam-se, ab initio, todas aquelas situações em que a representação de uma quota social integrante de uma herança cabe ao cabeça-de-casal, face à circunstância de a administração do cabeça-de-casal não abranger legados.
3 - O que está em causa é saber se a recorrente, como contitular de quota social e também para defesa de direitos e interesses individuais, pode suscitar judicialmente a declaração de nulidade de uma deliberação social que viola disposições imperativas.
4 - A douta e vasta jurisprudência supra-citada afirma a legitimidade activa inquestionável de um contitular de uma quota social para impugnar uma deliberação social e para requerer a sua declaração de nulidade.
5 - As deliberações ora impugnadas são, além do mais, nulas, sendo a nulidade invocável a todo o tempo e por qualquer interessado, conforme se pode comprovar (a propósito da invocada nulidade) no Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/1/1993, Processo 79-811, in www.colectanea de jurisprudencia.com, que afirma a nulidade de uma deliberação social e a qualifica como abuso de direito (do conhecimento oficioso do tribunal) a (deliberação) que aprova a não distribuição de lucros, como é o caso dos autos.
6 - A recorrente invoca, nos autos, a nulidade da deliberação impugnada, nulidade que, mesmo considerando as normas dos artigos 56º a 62º do Código das Sociedades Comerciais, “ é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal” ( art.286º do Código Civil) - neste sentido vd. Pinto Furtado, Deliberações, Almedina, 2005, página 758
7 - O que está em causa nos autos é saber se pode ser aprovada uma deliberação social, que viola lei expressa e imperativa (o art. 217 CSC) - existente até para defesa das minorias (que, de outra forma, estariam sempre à mercê do arbítrio e do abuso de poder das maiorias) e cuja nulidade, a seguir o entendimento da douta sentença recorrida, não pode ser suscitada por quem tem um claro e manifesto interesse também de natureza individual (in casu, a recorrente, que é contitular de participações sociais correspondentes, na sua totalidade a metade do capital social) e por quem é inequivocamente afectada por tal deliberação (pois vê vedado o acesso aos lucros do exercício que ficam, assim, nas mãos dos gerentes que são os demais titulares de participações sociais na R.).
8 - A violação do art. 217 CSC pela deliberação (nula) impugnada nos autos consubstancia incumprimento de uma obrigação que impende sobre qualquer sociedade comercial e que é a distribuição de, pelo menos, metade dos lucros do exercício.
9 - A regra geral plasmada no art. 294, nº1, CSC e que consagra o direito dos sócios à partilha anual de metade dos lucros distribuíveis só pode ser afastado por deliberação da assembleia geral aprovada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social, conforme Douta Jurisprudência unânime na matéria,
10 - Face ao enquadramento apresentado, não pode ser aceite outro entendimento que não o que permita a um contitular de quota social que lhe foi legada impugnar uma deliberação social que viola lei expressa.
11 - Choca, pois, com a mais elementar ideia de Justiça que, pela mera circunstância de inexistência de representante comum, um co-titular de quotas indivisas fosse privado de poder exercer os direitos respectivos, para mais em situações como a dos autos com implicações financeiras e patrimoniais evidentes (designadamente na própria esfera jurídica e patrimonial da própria recorrente, o que é merecedor de tutela própria), que frustram totalmente o fim para que uma sociedade comercial é constituída, sendo totalmente desprezados os direitos minoritários.
12 - Aliás, face a recente entrada e vigor do NCPC, a opção do legislador é claramente que se atinja a Justiça material e que não deixem de ser tutelados e protegidos direitos apenas por meras questões formais.
13 - Também no caso dos autos, a questão formal (para além de, no entendimento da recorrente, não ter sido decidida de forma respeitadora do Direito, nem da Lei) está a obstar a que o Tribunal faça Justiça e obrigue a R. a distribuir metade dos lucros do exercício.
14 - Cumpre destacar que, conforme resulta dos autos, a recorrente é a única contitular de participações social que não exerce funções de gerente na sociedade R., pelo que é bom de ver em que mãos fica o dinheiro que deveria ter sido entregue à recorrente...
15 - É ainda de destacar que sempre a R. convocou ambos os contitulares das quotas sociais para as várias sessões de assembleia geral que se realizaram e sempre permitiu que qualquer dos contitulares apresentasse propostas e fizesse declarações em acta, só tendo deixado de o permitir quando a recorrente começou a denunciar as situações que são abordadas na p.i. dos autos...
16 - O que está em discussão nos presentes autos e no presente recurso é a opção pela vertente exclusivamente formal (sem aferir do que foi violado) ou pela vertente da Justiça material e da obrigação de cumprimento dos deveres consagrados na Lei ( in casu, o art. 217 CSC).
17 - Efectivamente, nos presentes autos, o que está em jogo é a discussão entre se tudo é permitido, a coberto de eventuais formalismos ou jogos de palavras, ou se a Lei existe para alguma coisa (nomeadamente para evitar abusos).
18 - Parece manifestamente que a protecção das minorias perante deliberações nulas e claramente violadoras de lei expressa não pode deixar de prevalecer e de subjugar o interesse daqueles que, à sombra de eventuais formalismos, tentam fazer de conta que a Lei não existe e que as obrigações não são para serem cumpridas.
19 - Aliás, o entendimento subjacente à douta sentença recorrida leva a que, no limite, um sócio que detenha um por cento possa fazer aprovar o que entender contra uma participação social de noventa e nove por cento detida por vários contitulares que inda não nomearam representante comum, ficando vedado a qualquer contitular dessa participação social de noventa e nove por cento obter a declaração de nulidade de qualquer deliberação aprovada pelo sócio de um por cento, por muito abusiva, nula ou legal que seja, o que diz bem do resultado perverso a que o entendimento da douta sentença recorrida leva e da denegação da
Justiça que a mesma pode implicar.
20 - A vasta e douta jurisprudência supra-citada sustenta a posição da recorrente e consagra um mecanismo de defesa a quem, a não ser assim, fica totalmente despojado de tutela dos respectivos direitos.
21 - Nos presentes autos, discute-se o interesse e os direitos individuais da recorrente, mas também princípios de ordem pública e de boa-fé, retractados na obrigatoriedade de distribuição de metade dos lucros do exercício social.
22 - A legitimidade ad causam não pode deixar de ser reconhecida, especialmente a partir do momento em que o outro contitular está no processo, mercê do incidente de intervenção principal provocada suscitado nos autos.
23 - Em questão similar, a pretensão da recorrente já foi decidida, em impugnação de deliberação social com o mesmo circunstancialismo de forma favorável à posição que aqui setenta fazer valer (proc. nº 1752/12.0TJVNF do 3º Juízo Cível de Vila Nova de Famalicão), sendo certo que, face ao contexto societário existente na recorrida (bem patente até na posição processual que o chamado vem assumir, totalmente coincidente como da recorrida), não pode deixar de se considerar que estamos também em presença de um interesse individual, face à circunstância da recorrente estar a ser marginalizada, também em sede de partilha de lucros, pelos demais titulares do capital social, nomeadamente o outro contitular da participação social que, em contitularidade, integra a esfera jurídica da recorrente.
24 - A douta sentença recorrida viola o disposto nomeadamente no artº. 217 CSC.
Nestes termos e no Mais que for Doutamente suprida por V.Exas,
Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a douta sentença recorrida substituída por Douto Acórdão que reconheça legitimidade activa à recorrente para os presentes autos e para a questão controvertida, Assim se fazendo JUSTIÇA.
1.5.- Os apelados contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, e , em consequência , pela total improcedência da apelação interposta.
Para tanto aduziram as seguintes conclusões :
1. Tendo-se limitado, sob epígrafe de conclusões, a reproduzir toda a alegação do recurso por si interposto, a recorrente não cumpriu com o formalismo de formular conclusões;
2. Neste caso não se trata de conclusões extensas ou prolixas, mas sim da total omissão do ónus de formular conclusões.
3. Tal facto determina desde logo que deva ser liminarmente rejeitada a admissibilidade do recurso;
4. A recorrente também não indica o sentido com que no seu entender, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
5. É ao representante comum que cabe o exercício dos direitos inerentes às quotas indivisas, neles se incluindo o direito à informação, o direito aos lucros e o direito de impugnação.
6. No direito de impugnação inclui-se o direito de exigir quer a declaração de nulidade de deliberações sociais, quer o pedido de anulação de deliberações anuláveis.
7. A Autora, como contitular de quotas indivisas da sociedade Ré, à luz do disposto no art.º 222.º do Código das Sociedades Comerciais, não tem legitimidade para, por si só, instaurar ou prosseguir na presente acção.
8. O facto de o outro contitular das quotas indivisas que também pertencem á Autora (são contitulares em partes iguais) subscrever a proposta de aplicação de resultados contra a qual esta se manifesta, não deixa de constituir uma declaração de vontade de sentido contrário ao da Autora, facto que também impede que esta esteja dotada de legitimidade para prosseguir com a presente acção.
9. Os factos que a recorrente alega não são, sequer, passíveis de enquadramento na figura da nulidade, uma vez que não há preterição de convocatória, para deliberar sobre matérias cujo conteúdo está sujeito a deliberações dos sócios e das mesmas não se extrai ofensa aos bons costumes ou preterição de norma que não possa ser derrogada
10. A regra de que a nulidade é invocável por qualquer interessado a todo o tempo, no caso de quotas indivisas tem que ser interpretada de harmonia com o instituto do representante comum, deferindo-se a este a condição de interessado, por não se tratar de interesses de natureza exclusivamente pessoal do sócio e como forma de proteger a sociedade das divergências entre contitulares de quotas indivisas.
11. Do contrário, bastaria que o contitular invocasse uma qualquer nulidade e logo a protecção do interesse da sociedade numa unidade de actuação dos contitulares de quotas indivisas estaria posta em causa, pondo em causa a vida da sociedade.
12. Não estando sequer feita prova da existência de deliberação dos contitulares de quotas indivisas a respeito da instauração da acção, esta não pode prosseguir
13. As citações jurisprudenciais da recorrente não têm aplicação no caso sub judice.
14. A aprovação das deliberações em crise está conforme o disposto no art.º 217.º do Código das Sociedades Comerciais, uma vez que as mesmas foram aprovadas pela unanimidade do capital social em assembleia para o efeito convocada.
15. Não há que censurar a decisão de não permitir a intervenção em assembleia dos contitulares de quotas que não designaram representante comum, pois tal decisão visa assegurar uma unidade de actuação dos contitulares de quotas indivisas, e evitar a perturbação do funcionamento dos processos deliberativos e por consequência, da vida da sociedade.
16. A aprovação das deliberações em causa não é fortemente penalizadora dos interesses da Autora, pois se fosse titular de 25% do capital social, estaria sujeita a ver aprovadas tais deliberações mesmo contra a sua vontade.
17. Não tem razão a recorrente em pretender ver soçobrar os formalismos legais em homenagem a um interesse singular, quando tem outros meios para proteger esses interesses próprios, designadamente por via da divisão de coisa comum.
18. A possibilidade de aprovação de propostas em assembleia geral por uma minoria, à vista de um conflito entre contitulares representativos de maioria expressiva, é solução que protege em regra os interesses da sociedade, dos seus recursos e de terceiros credores.
19. A invocação da prolação de despacho de deferimento de incidente de intervenção principal não só não releva para a apreciação do caso vertente, como também não resolveu o problema de legitimidade, quer porque persiste falta de representante comum, quer porque o chamado aderiu ao processado da Ré sociedade, sufragando as posições desta (quanto a legitimidade e quanto à manutenção das deliberações que se pretende impugnar).
20. O disposto no art.º 217.º do Código das Sociedades Comerciais tem natureza dispositiva – conforme decorre do acórdão do Tribunal da Relação do Porto – pelo que mesmo que se entendesse as deliberações em crise tivessem sido tomadas em violação deste preceito, sempre as mesmas seriam meramente anuláveis, motivo pelo qual sempre a recorrente careceria de legitimidade para, só por si, instaurar a presente acção.
Termos em que deve manter-se a decisão recorrida julgando-se improcedente o recurso interposto, assim se fazendo justiça.
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Thema decidendum
1.6 - Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo que , estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões [ daí que as questões de mérito julgadas que não sejam levadas às conclusões da alegação da instância recursória, delas não constando, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal ad quem ] das alegações dos recorrentes ( cfr. artºs. 635º, nº 3 e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho ), e sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, as questões a apreciar e a decidir são as seguintes :
I) Aferir se a decisão proferida pelo a quo carece de ser confirmada, ou, ao invés, se impõe ser revogada, reconhecendo-se que à autora assiste legitimidade para , na qualidade de contitular de participação social no capital social da Ré, e desacompanhada do outo contitular, propor a presente acção de impugnação de deliberações sociais aprovadas pela Ré na sessão ordinária de assembleia geral realizada a 21/5/2013.
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2.- Motivação de Facto.
Para a decisão da apelação, importa atender, para além da factualidade a que se alude no presente Ac, em sede de relatório , e para o qual se remete, à seguinte matéria de facto:
2.1.- O pai da Autora - M.. – por testamento outorgado em 4.08.2010 legou à Autora e ao seu irmão e interveniente principal destes autos, em partes iguais e por conta da quota disponível, as quotas da Ré, melhor descritas no art.º. 1º da PI apresentada.
2.2. - A autora é contitular com o seu irmão, de duas quotas da Ré, sendo uma de valor nominal de 75.000,00 euros e uma outra de 425.000,00 euros.
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3.- Aferir se a decisão proferida pelo a quo carece de ser confirmada, ou, ao invés, se impõe ser revogada, reconhecendo-se que à autora assiste legitimidade activa para, na qualidade de contitular de participação social no capital social da Ré, , e desacompanhada do outo contitular, propor a presente acção de impugnação de deliberações sociais aprovadas pela Ré em assembleia geral.
Como decorre do relatório do pressente Ac., o thema decidendum da apelação ora em análise prende-se com a questão da legitimidade singular da recorrente para intentar a acção de impugnação de deliberação social da Ré/ora apelada, legitimidade que, entendendo a apelante que lhe assiste, considerou porém o tribunal a quo que é a Autora I.., parte ilegítima na presente acção.
A ancorar a pretensão que pretende fazer valer através da presente acção, é dado adquirido que invoca a autora a sua qualidade de contitular , com o seu irmão, de duas quotas da Ré ( sendo uma de valor nominal de 75.000,00 euros e uma outra de 425.000,00 euros ), as quais aos referidos contitulares foram deixadas pelo pai de ambos , o M.., e por testamento outorgado em 4.08.2010.
Ora, nesta matéria ( a da legitimidade das partes ), dispõe o art° 30º do Cód. de Proc. Civil que " 1 - O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor".
A disposição legal acabada de citar como que define a legitimidade como o poder de dirigir o processo através da titularidade do objecto do processo ( a relação controvertida ).
Assim, pelo lado activo, será parte legítima quem tiver interesse directo em demandar e, será parte legítima, como réu ( lado passivo ),quem tiver interesse directo em contradizer, sendo que o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha .
Já o nº 3 da disposição legal referida , ao fixar uma regra supletiva para a determinação da legitimidade, estipulando que sempre que a lei não disponha de outro modo, considerar-se-ão como titulares do interesse relevante os sujeitos da relação controvertida, tal com é ela configurada pelo autor, de uma vez por todas veio pôr termo à polémica entre os defensores da corrente subjectivista e os da corrente objectivista.
Elucidativa é, de resto e a propósito, o que no preâmbulo do D.L. 329-A/95, de 12/12 foi escrito, designadamente que "decidiu-se (..) após madura reflexão, tomar posição expressa sobre a vexata quaestio do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes visando" (…) “pôr termo a uma querela jurídico-processual que há várias décadas se vem interminavelmente debatendo na nossa doutrina e jurisprudência sem que se haja até agora alcançado consenso". E logo se acrescenta em seguida que “partiu-se, para tal, de uma formulação de legitimidade semelhante à adoptada no D.L. 224/82 ( de 8/06 ) e assente, consequentemente, na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição imputada a Barbosa de Magalhães na controvérsia que historicamente o opôs a Alberto do Reis".
Isto dito, e precisamente com base na relação controvertida tal como se mostra a mesma configurada pela autora, ao invocar a sua qualidade de contitular de quotas na Ré, forçoso e inevitável é , para a resolução do thema decidendum, atentar no regime jurídico aplicável à contitularidade da quota e que consta do Código das Sociedades Comerciais
Na verdade, relativamente a tal matéria, estabelece o Código das Sociedades Comerciais [ a cujo diploma pertencerão, doravante, todas as disposições legais citadas sem qualquer outra menção ] um regime especifico na contitularidade de quotas ( artºs 222º a 224º ), sendo que o ponto de partida do mesmo centra-se na legitimação para o exercício dos direitos inerentes às quotas, devendo os mesmos ser exercidos através de um representante comum ( cfr. artº 222º, nº1 ), e podendo a determinação deste último resultar de determinação legal [ v.g. o cabeça-de- casal da herança jacente na qual se integra uma quota societária ] , ou de disposição testamentária , e , na falta dela, de nomeação pelos contitulares ( artº 223º,nº2 ) , ou de decisão judicial ( art.º 223º, nº3, primeira parte ). (1)
No essencial, e adiantando desde já as características do referido regime jurídico especifico, lícito é concluir que aponta o mesmo para que o exercício dos direitos inerentes à quota se realize sempre sob uma orientação/vontade unitária , quer através de um representante comum ( artº 223º,nº 5 e 6) , quer através de uma manifestação de vontade dos contitulares que seja maioritária ( cfr. artºs 223º, nº6 e 224º,nº1 ), pois que , mesmo quando a prática de um acto dependa da vontade dos contitulares da quota, a lei estabelece os critérios que permitam a redução da pluralidade à unidade, ou seja, a conformação da vontade dos diversos sócios numa única vontade imputada colectivamente a todos , independentemente de a vontade colectiva poder não corresponder à vontade individual de cada um deles. (2)
Com efeito, dispondo o nº1, do artº 222º, do CSC, que “ Os contitulares de quota devem exercer os direitos a ela inerentes através de representante comum“, acrescenta de imediato o nº1, primeira parte, da disposição legal seguinte que “ O representante comum, quando não for designado por lei ou disposição testamentária, é nomeado e pode ser destituído pelos contitulares”, sendo que, diz o nº3 do mesmo dispositivo, “Não podendo obter-se, em conformidade com o disposto nos números anteriores, a nomeação do representante comum , é lícito a qualquer dos contitulares pedi-la ao tribunal da comarca da sede da sociedade.
Por outra banda, e com o desiderato de permitir a redução da pluralidade à unidade, é o nº1, segunda parte do artº 223º , elucidativo em estipular que a nomeação do representante comum dos contitulares exige uma deliberação tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil, isto por um lado e, por outro, que “ A deliberação dos contitulares sobre o exercício dos seus direitos pode ser tomada por maioria, nos termos do artigo 1407.º, n.º 1, do Código Civil, salvo se tiver por objecto a extinção, alienação ou oneração da quota, aumento de obrigações, renúncia ou redução dos direitos dos sócios, caso em que é exigido o consentimento de todos os contitulares ( cfr. artº 224º,nº1).
Ou seja, em razão do regime especial referido, que emerge do CSC e que regula o exercício de direitos pelos contitulares de quotas , existe assim lei especifica que impede que o contitular possa agir em juízo individualmente [ o direito de impugnação de deliberações sociais não é por natureza, um direito de exercício individual – cfr. Raúl Ventura (3) ] , antes está obrigado a exercer o direito de que se arroga titular através de um representante comum, o que equivale a dizer em última análise que não é ele sujeito activo do direito ( como o não é a ora apelante no âmbito da presente acção) que no tocante à quota pretende exercer, ou , dito de uma outra forma, é em rigor destituído de legitimidade activa para o seu exercício , pois que , no seu lugar, exige/obriga a lei que esteja colocado uma outra pessoa (o representante comum ).
Em suma, tal como se sustenta em Ac. do Tribunal a Relação de Coimbra (4), dir-se-á que o regime que emerge do CSC no tocante à contitularidade de quota, constitui uma dimanação da regra geral civilística para a contitularidade ou compropriedade de direitos, qual seja a que consta do artº 1405º nº1 do CC, nos termos do qual: «os comproprietários exercem em conjunto todos os direitos que pertencem ao proprietário singular…».
Para além do referido, acresce ainda que, a perfilhar-se o entendimento da apelante, tal poderia conduzir ( qual reduction ad absurdum ), tal como de resto veio a suceder in casu, à incongruência de, ao invés de em sede de contitularidade de quota os direitos à mesma serem exercidos através de uma orientação/vontade unitária e maioritária [ o que o legislador pretende, cf. decorre expressis verbis do nº1, do artº 224º,nº1 e 1407º, do CC. ] , cair-se exactamente no oposto [ o que o legislador quer evitar e afasta ] , ou seja, surgir um contitular de uma quota a exercer direitos em relação à mesma de forma isolada, não maioritária [ recorda-se que in casu, o outro contitular da quotas, veio aos autos, na sequência de incidente de intervenção principal admitido, informar que se associava à Ré, que não à autora ] .
Ou seja, não apenas o entendimento da apelante contraria lei expressa, como ainda vai ainda de encontro à intenção legislativa de afastar a possibilidade do exercício individual, por cada um dos contitulares, dos direitos inerentes à quota, e exercício esse que, como bem chama a atenção Raúl Ventura, é geralmente banido por causa das incertezas, contradições e confusões que pode criar para com a sociedade . (5)
Em razão de tudo o acabado de expor, e como de resto vem sendo decidido de forma praticamente unânime pela jurisprudência da segunda instância (6), lícito é concluir, tal como o concluiu – e bem - a primeira instância, que o contitular de quota que não seja representante comum , não tem legitimidade activa para intentar acção de impugnação de deliberações sociais, pois que de direito se trata que não é, por natureza, de exercício individual.
5.- Sumário ( cfr. artº 663º, nº7, do CPC)
I – O contitular de quota de sociedade não pode, por si, isoladamente, exercer os direitos inerentes à mesma, antes o deve fazer através de um representante comum.
II – Agindo em juízo individualmente em acção de impugnação de deliberações sociais, e porque o subjacente direito não é, por natureza, um direito de exercício individual , tal conduz inevitavelmente à excepção dilatória da sua ilegitimidade e à consequente absolvição da instância da demandada pessoa colectiva .
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6 - Decisão.
Em face de todo o supra exposto, acordam os Juízes na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em , negando provimento ao recurso de apelação apresentado por I.. ;
6.1.- Confirmar a decisão apelada no tocante à decisão de absolvição da Ré da instância.
Custas pela apelante.
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(1) Cfr. João Espirito Santo, in Sociedade Unipessoal por Quotas, 2013, Almedina.
(2) Cfr. João Espirito Santo, in Sociedade Unipessoal por Quotas, 2013, Almedina.
(3) In Sociedades por Quotas, Vol. I, 2ª Edição, 1989, Almedina , pág. 503.
(4) Ac. De 4/6/2013, Proc. 1010/10.5TBCBR.C1, e disponível in www.dgsi.pt..
(5) Ibidem , pág. 501
(6) Cfr. , de entre outros, o Ac do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/6/2011 ( Proc. nº 1215/10.9TJCBR.C1 ) , do Tribunal da Relação do Porto de Porto de 28/1/2013 ( Proc. nº 3618/12.5TBSTS-A.P1.), e ainda e também Tribunal da Relação do Porto ,de 26/2/2009 ( Proc. nº 0837016).
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Guimarães, 9/07/2015
António Santos
Figueiredo de Almeida
Ana Cristina Duarte