Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
519/16.1T8BRG-A.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: ERRO DA FORMA DE PROCESSO
DIREITO DE DEFESA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - É em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo autor que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo, a qual não é afectada pelas razões que se ligam ao fundo da causa.

II - A ocorrência de sinistro num determinado circunstancialismo de tempo e lugar não é questão médica.

III - A seguradora tem o direito de invocar a existência de um novo acidente e questionar o nexo causal, e não deve ser prejudicada nesse direito pelo facto de ter solicitado o mecanismo do artigo 34º da LAT., que se destina apenas a divergência sobre as matérias reguladas nos artigos 31.º, 32.º e 33.º, ou outra de natureza clínica.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.

Catarina apresentou participação de acidente de trabalho contra X-Seguros, invocando ter sofrido acidente de trabalho ao serviço da entidade patronal YY Portugal Ldª, em 21/11/2013. Que foi alvo de tratamentos, que não foram totalmente finalizados, um dos dentes implantados cai sem qualquer esforço. A seguradora nega os tratamentos invocando que foi vítima de um novo sinistro, o que é falso. Sempre lhe competiria se verdade fosse acionar um novo sinistro.

- Tendo sido referenciada a existência de uma pancada em 11/7/2015, o que consta da informação prestada pela clinica médica dentária Dr. Mário, que procedeu aos tratamentos após o sinistro de 2013, a seguradora questionou o nexo de causalidade, recorrendo ao procedimento do artigo 34º 1 da L. 98/2009.

- Consta da dita informação “ paciente levou pancada e removi espigão”.

Resulta ainda da informação:

- No relatório médico do IML de 19/5/2016, tendo em conta as informações clinicas constantes do aludido registo, solicitou-se uma perícia médica dentária inquirindo:

- A Faculdade de Medicina Dentária do Porto, Medicina médico forense concluiu:

- No relatório de 17/1/2017 do IML consta que relativamente ao dia 11/7/2017 a sinistrada informou que «estaria a “comer pão de forma” e o implante terá caído novamente”». Refere-se ainda em “Dados documentais”;

Apresenta as seguintes conclusões:

- Por despacho de 24/2/2017 a Sra procurador ordenou a notificação da seguradora para proceder aos tratamentos necessários propostos.

- Veio então a seguradora por requerimento de 9/3/2017, invocar que a sinistrada tinha recebido nova pancada no dente, e tinha recebido nova participação de acidente de trabalho a 8/10/2015, relativamente ao dente 21, tendo sido indicado que o mesmo ocorreu ao fechar a porta de uma prensa de cartão a vibração terá provocado a queda do dente, sustentando que tal facto não é susceptível de provocar a queda do dente, requerendo a conferência de médicos a que alude o artº 34º da L. 98/2009.

- Da participação de acidente junta consta no local destinado a data 2017/07/11, e aposto com letra diferente na parte relativa a “exame direto” consta; “ nova pancada no região do dente 21… fratura radicular dente 21” “””, constando da mesma assinatura não identificada.

- Foi ordenada a conferência no pressuposto de um sinistro ocorrido a 11/7/2015, colocando-se as seguintes questões:

- Na conferência médica os Srs. Peritos declararam por unanimidade que “existe nexo de causalidade entre o acidente ocorrido a 11/julho de 2015 e as lesões que a sinistrada apresenta no dente 21 e que existe a necessidade de realizar os tratamentos pretendidos pela sinistrada, sendo essa extracção e colocação de implante e respectiva coroa do dente 21”.

- Notificado às partes a seguradora veio invocar que o processo deu entrada como correspondendo a sinistro de 2013. Que tratando-se de um outro sinistro ocorrido em 2015 deve o processo ser extinto por falta de pressupostos.

- A entidade patronal, que para o efeito foi notificada, juntou a participação efetuada relativamente a 11/7/2015, com data de 2015/10/08, onde se refere “recaída de uma dor na boca (dente) referente a uma participação realizada em 21/11/2013”.

- O MºPº, na sequência de requerimento da sinistrada nesse sentido, após notificada para esclarecer os termos processuais, veio invocar erro na forma de processo, referindo ser adequado o procedimento do artigo 145º nº 8 do CPT, implicando a anulação unicamente dos atos que não possam aproveitar-se

- Por despacho de 12/10/2017 decidiu-se que não se justifica que os autos passem a seguir a tramitação do incidente de revisão da incapacidade previsto no artigo 145º do CPT, já que a pretensão não é que seja alterada a incapacidade, mas que sejam prestados os tratamentos necessários para finalizar a sua recuperação. Refere que tem sido seguida a tramitação adequada à pretensão do sinistrado. De seguida foi proferida decisão nos seguintes termos:

1. Não julgar verificado o erro na forma de processo

2. Determinar que a seguradora preste à sinistrada os tratamentos que são necessários para finalizar a sua recuperação, mais concretamente a extracção e colocação de um implante e respectiva coroa do dente 21.”

- Inconformada a seguradora interpôs recurso alegando:

- Vem o presente recurso interposto da decisão que condenou a ora Recorrente a prestar á sinistrada os tratamentos médicos que são necessários para finalizar a sua recuperação, mais concretamente a extracção e colocação doe um implante e respectiva coroa de dente 21.

2 Entende a recorrente que, além de não ser esta a forma processual correcta, houve igualmente uma incorrecta aplicação do direito, A recorrente ainda não sabe que forma de processo seguiram os presentes autos.

4 De facto a sinistrada vem peticionar a assistência clínica para a colocação do considerando dente 21, que o mesmo resulta de deficiente implantação deste dente aquando do tratamento efectuado no âmbito do sinistro ocorrido em 21.11,2013,

5 Acontece, porém, que a sinistrada teve outro acidente de trabalho em 11.07.2015 tal como é referido no exame médico efectuado no I.N.M.L. e na Conferência de Médicos agora efectuada.

6 Ora, tal configura um novo acidente de trabalho e, como tal, deveria a Entidade Patronal efectuar uma participação de sinistro a relatar o sucedido,

7 Deveria igualmente a participação ao Tribunal de Trabalho relatar o acidente de trabalho, pata, pelo menos, poder a recorrente confirmar as circunstâncias de tempo, lugar e modo como ocorreu o referido acidente,

8 Significa isto que o processo deveria ter seguido a fase conciliatória até final, após o que poderia a recorrente pronunciar-se sobre o acidente em si.

9 No entanto, o que é participado são factos decorrentes do sinistro ocorrido em 21.11.2013, quando é certo que a Conferência de Médicos refere que as lesões actuais são decorrentes do sinistro de 2015,

10 Assim, deve ser anulada a presente decisão, devendo a ora Ré ser absolvida da instância por erro no processo, o que se pede.

11 Por outro lado, e como já se referiu acima, é relatado pelo I.N.M.L., no seu exame médico, e pela Conferência de Médicos, a ocorrência de um acidente de trabalho em 11.07.2015.

12 A Conferência de Médicos é ainda mais explícita ao referir que as lesões que a Autora apresenta actualmente são decorrentes deste acidente de 11.07.2015.

13. Resulta deste facto, que a ora recorrente não tem, nem nunca teve, conhecimento deste sinistro, não lhe sendo possível confirmar a ocorrência do mesmo, nem as circunstancias em que terá ocorrido.

14 Ser agora condenada a prestar uma assistência clínica com base no sinistro de 2013, quando é referido na Conferência de Médicos que as lesões actuais resultam de um acidente ocorrido em 2015 é, no mínimo, “sul generis”.

15 Com efeito, refere o artigo 102° do Código Processo Trabalho que “se o sinistrado ainda não estiver curado quando for recebida a participação e estiver sem tratamento adequado... o ministério Público solícita perícia médica, seguida de tentativa de conciliação...”

16 Ora, do que resulta dos autos é que a ora recorrente nunca foi notificada de qualquer tentativa de conciliação para se poder pronunciar quanto ao presente sinistro.

17 Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 125°, no 1, o Juiz pode determinar o pagamento por parte da recorrente nos tratamentos que a sinistrada necessita.

18 No entanto, tal só se pode verificar quando for de entender que o pedido é fundado à face dos exames, pendas e outros elementos constante do processo.

Assim, face à divergência que existe entre o que a sinistrada participa e o que diz aos médicos presentes na Conferência de Médicos, é óbvio que deveria ter negado a pretensão da sinistrada, tanto mais que fica sem se saber se as lesões são decorrentes do acidente de 2013 ou de 2015.

20 Pelo exposto, deve ser negada a assistência médica peticionada pela sinistrada, o que se pede.

21 O douto despacho/sentença de fis. ..., violou o disposto no artigo 125°, n° 1 do C.P.T.

Sem contra-alegações.

O Exmº PGA deu parecer no sentido da improcedência defendendo a propriedade do meio empregue e que a recorrente teve todas as garantias. Refere que a invocação constitui quiçá abuso de direito.

Vistos os autos cumpre decidir.

As questões colocadas prendem-se com o erro na forma do processo e a inexistência da possibilidade de a seguradora se pronunciar quanto ao sinistro que alega ter ocorrido em 2015.

A factualidade é a que resulta do precedente relatório.

Sustenta a recorrente o erro na forma de processo.

A forma de processo afere-se pela pretensão formulada. “ A forma de processo escolhida pelo autor deve ser adequada à pretensão que deduz e deve determinar-se pelo pedido que é formulado e, adjuvantemente, pela causa de pedir. É em face da pretensão de tutela jurisdicional deduzida pelo autor que deve apreciar-se a propriedade da forma de processo, a qual não é afetada pelas razões que se ligam ao fundo da causa” - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil - 1 - Princípios Fundamentais. 2 - Fase Inicial do Processo Declarativo.”, Volume I, 2.ª Edição Revista e Atualizada, janeiro de 2003, páginas 280 e 281.

Deve ocorrer uma adequação entre o pedido formulado e as razões pelas quais a lei criou determinada forma de processo.

No caso presente a autora alegou que sofreu um acidente em 2013 e que nunca ficou definitivamente curada, referindo que a colocação dos dentes nunca foi totalmente finalizada com o sucesso esperado. À situação, tal como configurada pela autora, é aplicável o processo especial regulado nos artigos 99º ss. Refere a recorrente a previsão do artigo 102º do CPT, nº 1, ora esta previsão insere-se no processo especial emergente de acidente de trabalho.

Consequentemente é de confirmar o juízo quanto à forma processual.

*

Refere a recorrente que é relatado pelo I.N.M.L., no seu exame médico, e pela Conferência de Médicos, a ocorrência de um acidente de trabalho em 11.07.2015.

Importa desde já referir que os Srs médicos não têm que decidir sobre quando ocorrem os sinistros. A ocorrência do sinistro num determinado circunstancialismo de tempo e lugar não é questão médica. O que ocorre é a apreciação da situação médica face a uma eventualidade que lhes é indicada e cuja veracidade ou não ignoram.

Nos autos não está de forma alguma demonstrada a existência de qualquer sinistro no ano de 2015, não obstante as tentativas da seguradora com base no que consta, (sabe-se lá porquê), no registo clinico da clinica médica dentária Dr. Mário, onde a sinistrada era tratada. Nunca esta referiu qualquer outra ocorrência, nem a segurada participou qualquer ocorrência na ocasião, vindo a fazê-lo mais tarde, em circunstâncias que se ignoram mas referindo uma dor no dia 11/7/2015 e reportando ao sinistro de 2013.

A alegação de um novo sinistro escuda-se exclusivamente na circunstância atrás referido, que consta do registo clinico. Certo que refere uma participação em que se indicaria uma outra ocorrência, ocorrida ao fechar a porta de uma prensa de cartão “a vibração terá provocado a queda do dente”. Tal constaria de participação efetuada pela segurada, sendo que nas alegações já refere não ter havido qualquer participação deste novo sinistro.

Claro que, não obstante, a seguradora tem o direito de invocar um novo acidente e questionar o nexo causal, e não deve ser prejudicada nesse direito pelo facto de ter solicitado o mecanismo do artigo 34º da LAT, aceitando reduzir a questão a uma divergência de natureza clinica, embora o normativo não tenha sido propriamente pensado para a questão do nexo causal entre uma ocorrência e as lesões ou sequelas apresentadas.

Havendo divergência quando ao nexo causal e quanto à ocorrência ou não de um novo sinistro, o procedimento adequado é o dos artigos 117 ss do CPT, se não houver acordo na tentativa conciliatória.

Assim é de revogar a decisão proferida quanto à condenação da seguradora a preste à sinistrada os tratamentos que são necessários para finalizar a sua recuperação, devendo os autos prosseguir na fase conciliatória até à tentativa de conciliação. Quanto ao abuso de direito invocado, só a final poderá o mesmo ser apreciado.

DECISÃO:

Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão na parte em que condena na prestação de tratamentos, devendo prosseguir-se até final da fase conciliatória.
Custas pelo recorrido sem prejuízo do apoio judiciário.

19/04/2018

Antero Veiga
Alda Martins
Eduardo Azevedo