Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1124/10.1TBGMR-F.G1
Relator: RITA ROMEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no nº 2 do artigo 186º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.
II - Não é de qualificar como culposa a insolvência em que se prova, que os sócios gerentes da insolvente fizeram dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura, pertencentes à devedora, mas não se prova o valor desses bens, dados para pagamento da quantia de € 45 000,00, devida aos mesmos em consequência dos acordos de cessação dos contratos de trabalho que tinham com aquela.
III – Não se apurando o valor dos bens, objecto da dação, não se podem considerar verificados nem o facto referido na al. a), nem na al. d), do nº2, do artº 186, do CIRE.
IV – Sem se ter apurado o valor dos bens não é possível determinar o modo como foi afectado o património do devedor, nos termos exigidos na al. a), ou seja, “...no todo ou em parte considerável...”, nem o “...proveito de terceiros.”, (no caso, trabalhadores), nos termos exigidos na al. d), já que, apenas se provou o valor dos seus créditos e, não se provou o valor dos bens que receberam para satisfação dos mesmos.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

O Exmº Administrador da Insolvência veio requerer a abertura do apenso respeitante ao incidente de qualificação da insolvência e remeter o parecer referido no nº 2 do art. 188º do CIRE, propondo que a mesma seja considerada culposa.
A fls. 44 e ss. dos autos, o MP emitiu parecer acompanhando a proposta do Exmº Administrador.

Foi cumprido o disposto no art. 188º nº 5 do CIRE.
Os insolventes deduziram oposição a fls. 59 e ss., alegando não se verificarem os pressupostos invocados pelo Sr. Administrador de Insolvência, concluindo que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.

Foi designada data para a realização da diligência referida no nº 1 do artº 136 “ex vi” do artº 188, ambos do CIRE, com a advertência de, no caso da sua frustração, o que veio a acontecer, ser realizada uma audiência preliminar, onde foi proferido despacho saneador tabelar e fixadas a matéria assente e base instrutória.

Notificado da oposição apresentada, o Exmº Administrador manteve o seu parecer inicial, a fls. 142.

Os autos seguiram para julgamento, ao qual se procedeu com observância das formalidades legais.
Respondida que foi a matéria de facto, sem reclamações, de imediato foi proferida sentença na qual se decidiu:
Por todo o previamente exposto, o tribunal decide:
A) Declarar a insolvência de “C..., Lda.” como tendo sido de natureza culposa.
B) Considerar os Ana, José e Jorge responsáveis pela situação de insolvência.
C) Não declarar inabilitados os Requeridos, por recusa da aplicação da norma constante do art.º 189.º, n.º 2, al. b), do C.I.R.E., com fundamento na sua inconstitucionalidade.
D) Declarar Ana, José e Jorge inibidos para o exercício do comércio durante um período de três anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
E) Condenar a massa insolvente nas custas do incidente.”.

Inconformados os recorrentes interpuseram recurso, cujas alegações de fls. 176 a 184 terminam com as seguintes conclusões:
1ª Não foi destruído danificado, inutilizado, ocultado ou feito desaparecer, no todo o património do devedor.
2ª Resulta do auto de apreensão de fls._ dos autos, que os bens que foram dados em pagamento não constituíam a totalidade dos bens da C...Ldª.
3ª Resulta claro do auto de apreensão que, para além dos bens dados de pagamento, havia outros bens da C...Ldª e que, inclusivamente, foram entregues à Massa Insolvente.
4ª Assim sendo, não se encontra preenchido um dos pressupostos previstos na alínea a) do n°1 do artigo 186º do C.I.R.E., qual seja, o de que os gerentes fizeram desaparecer “no todo” os bens da C...Ldª.
5ª Não foi destruído, danificado, inutilizado, ocultado ou feito desaparecer, em “parte considerável” o património do devedor.
6ª Não se encontram tão pouco alegados factos que permitam concluir qual o valor dos bens dados em pagamento.
7ª Se o valor dos créditos está determinado por acordo das partes, o mesmo não se pode dizer do valor de cada um dos bens que foram entregues pois os bens dados em pagamento aos trabalhadores até poderiam ter um valor comercial mais reduzido que o valor do crédito tal qual negociado.
8ª Nada está provado a esse respeito, nem no sentido de o respectivo valor ser mais elevado nem no sentido de ser mais reduzido, peio que não podemos aferir se o valor dos bens entregues em dação em cumprimento, assim como o veículo CT constituem ou não parte considerável do património do devedor.
9ª Desconhecendo-se nos autos o valor dos bens que foram entregues em dação em cumprimento, não poderemos nunca concluir — como se faz na Sentença objecto de recurso — que os mesmos constituem uma parte considerável do património do devedor, pelo que não se pode dar por demonstrada a situação prevista no referido normativo.
10ª Sendo a expressão “no todo ou parte considerável” um conceito jurídico, não conseguimos vislumbrar quais os factos que motivaram a que o Tribunal “a quo” tivesse enquadrado na situação subsumível a tal conceito.
11ª Por isso mesmo a matéria de facto dada como provada não é suficiente para preencher o circunstancialismo previsto na presunção prevista na alínea a) em questão.
12ª Resulta dos autos qual o destino que os adminstradores da Carpintaria da Vinha deram aos bens em questão.
13ª Não resulta provado que os bens tivessem sido destruídos. Não resulta que tenham sido danificados, Não resulta provado que os bens tivessem ficado inutilizados. Não resulta dos autos que tivessem sido ocultados. Não resulta dos autos que os bens tivessem desaparecido,
14ª Os bens em causa não padeceram de qualquer um dos vícios acima referidos e que seria necessário verificar-se para resultar preenchida a disposição legal. Os bens em questão foram dados em pagamento, sendo que resulta da matéria de facto dada como provada quais os outorgantes nos contratos e conhece-se o destino dado ao produto da venda, na medida em que os mesmos foram aplicados no pagamento de créditos, nomeadamente de créditos de natureza laboral.
Isto posto,
15ª Dos factos dados como provados na referida Sentença não consta um único que permita extrair a conclusão de que os administradores da C...Ldª tivessem disposto dos bens em proveito pessoal ou de terceiros.
16ª Da própria Sentença não consta, por um lado, qual o proveito que adveio e, por outro lado, não descreve qual o beneficiário do alegado proveito, se os administradores pessoalmente, se os terceiros.
17ª Resulta da matéria de facto dada como provada que os bens foram dados em pagamento aos trabalhadores e a viatura CT foi alienada tendo o produto da venda sido aplicado no pagamento a diversos credores, sendo que os créditos são de natureza laboral.
18ª Não resultou alegado que o valor dos créditos estivesse incorrectamente calculado. Também não resultou que houvesse desproporção entre as prestações, pelo que a entrega das máquinas é adequada e proporcional ao valor do crédito de cada um dos trabalhadores.
19ª A massa insolvente não ficou prejudicada pelos contratos outorgados, pois os trabalhadores em questão tinham créditos laborais sobre a massa insolvente de valor não inferior a € 45.000 que ao receberem as máquinas e veículo como dação em pagamento deixaram de ter qualquer crédito sobre a insolvente.
20ª Os trabalhadores da C...Ldª não apresentaram qualquer reclamação de créditos.
21ª Não tivesse havido o referido acordo e o que sucederia seria simples: os trabalhadores reclamariam os respectivos créditos, os bens seriam apreendidos em favor da massa e, por esta, vendidos. O produto da venda dos referidos bens reverteria a favor dos mesmos trabalhadores, porquanto o respectivo crédito é legalmente privilegiado, nomeadamente sobre os referidos bens.
22ª A própria lei é que estabelece privilégios em relação aos trabalhadores e não os gerentes da insolvente, pois de acordo com o artigo 333° n°1 alínea a) e n°2 alínea a) do Código do Trabalho, os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua cessação gozam de privilégio creditório mobiliário geral, graduado antes dos créditos referidos no n°1 do artigo 774° do Código Civil, assim como, naturalmente, sobre os créditos de natureza comum.
23ª Assim sendo, não se consegue vislumbrar qual o prejuízo verificado para os restantes credores.
24ª Sendo certo que, igualmente, não se vislumbra qual o proveito que já não decorresse da própria lei.
25ª Por tudo quanto alegado, e pelo facto de serem claras as dívidas, resulta claro que a situação não é subsumível na previsão da alínea d) do n°2 do artigo 186° do C.I.R.E.
26ª O Tribunal ao qualificar a Sentença como culposa não efectuou a correcta interpretação e aplicação do direito positivo, designadamente das normas previstas nas alíneas a) e d) do n°2 do artigo 186º do C.I.R.E., pelo que a Sentença deverá ser revogada e a insolvência qualificada como fortuita.
Termos em que se deverá dar provimento ao presente recurso, com todos os devidos e legais efeitos.

O Ministério Público contra-alegou, terminando as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
A. Como resulta provado nas alíneas A a I, a empresa insolvente a 17/02/2010 fez diversas dações em pagamento aos seus trabalhadores, reconhecendo- lhes os créditos de que eram titulares, no valor global de 45.000,00€.
B. Como dação em pagamento dos créditos dos trabalhadores os ora apelantes, enquanto administradores da sociedade insolvente, entregaram aos trabalhadores diversas máquinas que, no conjunto, valeriam, pelo menos, 45.000,00€.
C. Ora, ao contrário do que pretendem fazer crer os apelantes as referidas máquinas não poderiam ter um valor reduzido mas valeriam, pelo menos, o valor correspondente ao montante dos créditos.
D. Comparando o valor dos créditos reconhecidos aos trabalhadores, 45.000,00€, com o valor dos bens apreendidos para a massa insolvente, 44.800,00€, facilmente se conclui que com a celebração dos contratos de dação em pagamento o património da sociedade insolvente ficou diminuído em menos de 50%.
E. Tendo os contratos de dação em pagamento sido celebrados no dia 17/02/2010 e a sociedade se apresentado à insolvência passado cerca de 30 dias, facilmente se conclui que a realização de tais contratos foi a causa principal da sociedade não poder continuar a laborar e portanto vir a ser considerada insolvente.
F. Pelo que com a celebração dos contratos de dação em pagamento a sociedade ficou impedida de continuar o exercício da sua actividade.
G. Com a celebração dos contratos de dação em pagamento e entrega efectiva dos bens melhor identificados na matéria dada como provada, os apelantes quiseram como efectivamente conseguiram beneficiar os trabalhadores em detrimento dos restantes trabalhadores.
H. Assim, da matéria dada como provada resulta que se mostram preenchidos os pressupostos previstos nas aI. A e D) do n° 2 do artigo 186° do C.l.R.E., para que a insolvência possa ser considerada culposa.
Nestes termos e nos demais de direitos que Vossas Excelências proficientemente suprirão, deverá o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Assim se fazendo inteira JUSTIÇA

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do nº 2 do artigo 660º do mesmo código.
Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber se estão verificados os pressupostos que a decisão recorrida deu como preenchidos, sejam alªs a) e d) nº2, do artº 186, do CIRE, para qualificar a insolvência como culposa.

II - FUNDAMENTAÇÃO
Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
A) C...Lda., sociedade comercial com o NUIPC 504492225, com sede na Rua Salvador Ribeiro de Sousa, nº..., freguesia de Ronfe, concelho de Guimarães, apresentou-se à insolvência, tendo a mesma sido declarada em 29.03.2010, já transitada em julgado.
B) À data da declaração de insolvência eram gerentes da insolvente Ana, José e Jorge.
C) A ora insolvente, em 17.02.2010 fez dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura.
D) A João foi reconhecido o crédito de 4.000, € foi-lhe entregue uma orladora, marca KD56, nº 0/261//03/9113.
E) A Rogério foi reconhecido o crédito de 10.000,00 €, foi-lhe entregue uma esquadrejadora, marca Martin, T73 Automatic, nº V436065.
F) A João foi reconhecido o crédito de 5.000,00 €, tendo-lhe sido entregue uma guilhotina, marca Casati e um compressor Boge S15.
G) A José foi reconhecido o crédito de 10.000,00 €, tendo-lhe sido entregue um empilhador, marca Nissan, chassis WFO3-002032 (1992) e uma prensa hidraúlica frama 3.1.MTS com caldeira baixa pressão.
H) A Abílio foi reconhecido o crédito de 10.000,00 €, tendo-lhe sido entregue uma seccionadora, marca Homag, modelo CH/03/32/32 Plus, nº 0/341/07/5201.
I) A Jorge foi reconhecido o crédito de 6.000,00 €, tendo-lhe sido entregue uma molduradora, marca Seteton FH 55S e uma viatura marca Opel Corsa, com a matrícula 65-50-XR.
J) A contabilidade da insolvente apresenta um saldo devedor da conta de clientes, no valor de 643.123,48 € .
K) Apresenta um saldo de imobilizações corpóreas, líquidas de amortizações, no valor de 246.380,42 € que corresponde essencialmente a equipamento básico, no valor de 198.516,54 €.
L) O A.I. endereçou cartas registadas aos requeridos, datadas de 07 de Julho de 2010, a solicitar que, no prazo de 05 (cinco) dias, apresentassem os documentos de suporte aos cálculos efectuados das indemnizações dos trabalhadores referidos em C) a I).
M) Em resposta à comunicação referida, os requeridos, por “E-mail”, datado de 06.08.2010 comunicaram através de mandatário:
I Contratos de Dação em Pagamento:
a) Abílio admitido em 1 de Setembro de 1999 na C...Ldª, na sequência de cessão de posição contratual de empresa João Lda. e João enquanto empresário em nome individual há já 24 anos, com o salário líquido de 500,00 €, recebeu o total de 10.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (500,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (291,66 €) e indemnização por antiguidade (11.000,00 €);
b) João, admitido em 1 de Setembro de 2005, com o salário líquido de 475,00 €, recebeu o total de 5.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (475,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (277,09 €) e indemnização por antiguidade (2.375,00 €);
c) João, admitido em 1 de Agosto de 2006, com o salário líquido de 475,00 €, recebeu o total de 4.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (475,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (277,09 €) e indemnização por antiguidade (1.900,00 €);
d) Jorge, admitido em 1 de Janeiro de 2000, com o salário líquido de 475,00 €, recebeu o total de 6.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (475,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (277,09 €) e indemnização por antiguidade (4.750,00 €);
e) José, admitido em 1 de Setembro de 1999, na sequência de cessão de posição contratual de empresa João, Lda. e João enquanto empresário em nome individual há já vinte e dois anos, com o salário líquido de 500,00 €, recebeu o total de 10.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (475,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (277,09 €) e indemnização por antiguidade (9.500,00 €);
f) Rogério, admitido em 1 de Setembro de 1999, na sequência de cessão de posição contratual de empresa João Lda. e João enquanto empresário em nome individual há já vinte e dois anos, com o salário líquido de 475,00 €, recebeu o total de 10.000,00 € como compensação de natureza global pelo pagamento dos salários atrasados de Outubro, Novembro, Dezembro de 2009 e Janeiro e Fevereiro de 2010 (2.500,00 €), subsídio de férias de 2009 (475,00 €), proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal de 2010 (277,09 €) e indemnização por antiguidade (11.000,00 €);
A gerente da carpintaria da Vinha, pese embora todos os esforços, não consegue obter o histórico contributivo dos trabalhadores, na medida em que muitos deles já se encontram neste momento emigrados e na Segurança Social tal informação de igual forma, não consegue obter de momento os contratos de cessão da posição contratual celebrado com os trabalhadores Abílio, José Luís e Rogério.
II Veículo SI-33-89:
O veículo em questão foi entregue para sucata em 2007, na medida em que já na altura não tinha qualquer valor comercial e não circulava. Aliás, o veículo já havia sido abatido em termos contabilísticos e mesmo para efeitos fiscais, na medida em que já nem é pago o imposto de circulação respectivo.
III Veículo 37-34-CT:
Este veículo foi vendido, tendo o produto dessa venda sido aplicado no pagamento a diversos credores. Convém salientar que é um veículo antigo com reduzido valor comercial. Estou a aguardar do gabinete de contabilidade o envio quer da factura de venda do carro, quer ainda da empresa cujo pagamento foi aplicado o produto da venda.
Na expectativa de que as presentes explicações sejam suficientes, coloco-me à disposição para qualquer esclarecimento adicional, sendo que mal o tenha em meu poder remeterei os dados referentes à viatura 37-34-CT, sendo que me encontro de férias nos próximos 15 dias.”
N) O Veículo matrícula 37-34-CT foi alienado pela insolvente e o produto aplicado no pagamento a diversos credores.
O) O veículo matrícula SI-33-89 foi entregue pela insolvente para sucata em 2007, por não circular nem ter valor comercial.
*
Vejamos agora se os factos dados como provados são suficientes para se concluir que a insolvência da devedora foi culposa.

Dispõe o artigo 185º do CIRE que a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, sendo que essa qualificação não é vinculativa para efeitos de decisões de causas penais, nem das acções a que se reporta o nº 2 do artigo 82º do mesmo diploma.
E, o artigo 186º do mesmo diploma dispõe:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao inicio do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantendo uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

A verificação em concreto de qualquer das situações previstas no nº 2, do referido artigo, determina a qualificação da insolvência como culposa.
Face à ocorrência das mesmas estipula a lei uma presunção inilidível, jure et jure, de culpa, conforme é defendido pela generalidade da doutrina. O que flui do advérbio «sempre».
Perante qualquer uma das situações tipificadas nas alíneas do nº 2 do artº 186 do CIRE, deve o julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa. Podendo defender-se que estes factos índice mais do que simples presunções inilidíveis são situações típicas de insolvência culposa, cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11. 2008, DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009.
Sendo que, opte-se por um ou outro entendimento, nas situações descritas nas várias alíneas do nº 2, desde que, demonstrado o facto nelas enunciado, fica, logo, estabelecido o juízo normativo da culpa do administrador, sem necessidade de se demonstrar o nexo causal entre a omissão dos deveres constantes dessas alíneas e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
Tal já não acontece, do mesmo modo, com o nº 3 do mesmo artigo, que contempla meras situações de presunção de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas suas alíneas a) e b). Aqui, trata-se de presunções juris tantum, ilidíveis por prova contrária, cfr artº 350, nº 2, do CC, ver entre outros, Carvalho Fernandes in “Revista Themis”, 2005, pág. 94, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 611 e Acs.RC de 24.03.2009, de 21.04.2009 e de 23.06.2009, Acs.RP de 20.10.2009 e de 25.5.2009, Ac.RL de 22.1.2008 e Acs.RG de 20.9.2007, 29.6.2010 e 12.7.2011, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Face ao exposto, vejamos o caso dos autos, onde a Sra. Juíza concluiu que os factos apurados permitem a subsunção da conduta dos apelantes na previsão das alíneas a) e d) do nº2 do artº 186 do CIRE, decidindo nos seguintes termos:
“... a “C... Lda.”, apresentou-se à insolvência, tendo a mesma sido declarada em 29.03.2010. Provou-se que os sócios e gerentes da mesma Ana, José e Jorge, no mês anterior ao da declaração de insolvência, em 17.02.2010, fizeram dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura, nos termos referidos em A) a N).
Estes factos foram dados como provados por acordo das partes.
A questão que se coloca é da relevância de tais dações em cumprimentos, em sede de qualificação da insolvência.
A nosso ver, os legais representantes da insolente não podiam ignorar todas as consequências dos acordos e, sobretudo, não podiam ignorar que perante a situação económico-financeira da sociedade e a impossibilidade que tinham em solver todas as suas dívidas, estes contratos, na prática, subtraíam ao património da insolvente bens que integravam a garantia comum dos credores (artigo 601.º do Código Civil), beneficiando apenas alguns deles. Aliás, após a celebração de tais acordos, apresentaram-se á insolvência. São pois os próprios gerentes da insolvente, Ana, José e Jorge a estabelecer o nexo de causalidade entre esses acordos e a situação de agravamento da situação de insolvência da empresa. Com a dação dos bens aos credores que elegeram, em detrimento dos demais, entregando-lhes o património daquela sociedade, decidiram, como se referiu, beneficiar uns credores em detrimento dos demais.
Consequentemente, verifica-se o preenchimento do n.º 2, alíneas a) e d) do artigo 186.º do CIRE.”.
Os recorrentes pugnam pela insuficiência dos factos apurados para assim se concluir. Defendendo que para assim ser, outros deveriam ter sido apurados, desde logo o valor dos bens dados em pagamento – cfr. conclusão 6ª.
Vejamos.
Recapitulando, nos termos do nº 2 do artº 186 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
A decisão recorrida concluiu estarem preenchidas estas duas alíneas, atento os factos provados por acordo das partes que a mesma citou na decisão: “... a “C... Lda.”, apresentou-se à insolvência, tendo a mesma sido declarada em 29.03.2010. Provou-se que os sócios e gerentes da mesma Ana, José e Jorge, no mês anterior ao da declaração de insolvência, em 17.02.2010, fizeram dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura, nos termos referidos em A) a N).”
Ora, salvo diferente entendimento que se respeita, não podemos concordar com o modo como se decidiu no Tribunal “a quo”, atenta a factualidade apurada. Isto, porque entendemos não serem os factos provados suficientes para se terem por preenchidos os comportamentos descritos naquelas duas alíneas.
Sem dúvida, tal como na aplicação dos textos legais, também na consideração dos factos apurados num processo se impõe ao julgador a tarefa, delicada mas nobre, da sua exegese ou análise interpretativa.
Na verdade toda a fonte necessita de interpretação para que revele a regra que encerra.
Se toda a fonte consiste numa matéria que encerra um sentido ou conteúdo: o seu espírito, importa que sobre ela recaia uma actividade intelectual interpretativa como condição da mesma extrair e dimensionar o seu sentido e alcance, cfr. Oliveira Ascensão in “O Direito” 2ªed., Gulbenkian, pág. 349 e ss.
O julgador não pode nem deve ater-se secamente à simples consideração dos factos literal e expressamente provados e decorrentes das alegações das partes, podendo e devendo sobre eles operar uma interpretação crítica, dinâmica e dialéctica – atenta, a globalidade do factualismo apurado - a qual, por força das regras da experiência comum e dos ensinamentos da lógica, pode acarretar que ele possa inferir a verificação ou ocorrência de outros, que são a consequência necessária, ou, pelo menos, normal daqueles.
No entanto, já não pode extrair conclusões, sem que as mesmas sejam possíveis de extrair sem uma factualidade que não se apurou.
E, no caso é isso que aconteceu. O Tribunal “a quo”, acaba por concluir do modo que o fez sem para tal ter factos suficientes. Pois, perante a factualidade apurada, é nosso convencimento que desse modo não podia ter concluído.
Efectivamente, da actuação dos gerentes da insolvente não é possível concluir que a mesma criou ou agravou a situação de insolvência em que a devedora se encontra.
Temos provado que os mesmos, no mês anterior ao da declaração de insolvência, em 17.02.2010, fizeram dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura, para satisfazerem aos mesmos os créditos que lhes foram reconhecidos na sequência da cessação dos seus contratos de trabalho, no valor global de € 45 000,00.
Este valor ficou assente e nenhum dos intervenientes o questionou como sendo desajustado, nem o A.I. nem o Ministério Público.
Por sua vez, o valor dos bens que os mesmos receberam não se apurou.
Supomos que se houvesse suspeitas que eles tinham valor superior ao que era devido aos trabalhadores, essa prova teria sido fácil de fazer e, dessa forma estaríamos, então, na posse de elementos suficientes para concluir do modo que o fez a decisão recorrida, ou seja, que “os legais representantes da insolvente não podiam ignorar todas as consequências dos acordos e, sobretudo, não podiam ignorar que perante a situação económico-financeira da sociedade e a impossibilidade que tinham em solver todas as suas dívidas, estes contratos, na prática, subtraíam ao património da insolvente bens que integravam a garantia comum dos credores, beneficiando apenas alguns.”.
O exposto, não passa de uma conclusão sem suporte fáctico, impossível de subsumir no enquadramento jurídico que foi feito.
É sabido, que os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação gozam de privilégio mobiliário geral. Os trabalhadores em relação aos bens objecto da dação beneficiam de uma posição previligiada, sendo os seus créditos graduados antes dos créditos do próprio Estado, cfr. artº 333, nºs 1 e 2, do CT.
Donde, sempre os trabalhadores iriam ser ressarcidos dos seus créditos e, a atitude dos legais representantes da insolvente é uma atitude normal, em situações como a presente, actos próprios da sua gestão, em que as empregadoras colocadas perante a impossibilidade de pagar os créditos que devem aos trablhadores e, sabendo as demoras que ocorrem até que sejam satisfeitos os créditos na sequência da insolvência, acabam por chegar a acordo com os trabalhadores dando-lhes bens que os mesmos, na sua posse, possam de modo mais rápido atenuar os transtornos inevitáveis para os mesmos da cessação dos seus contratos. Sendo que esta atitude não nos permite concluir que estejam a beneficiar uns e a prejudicar outros.
No caso, atento o reduzido valor de € 45 000,00 devido aos trabalhadores, não se tendo apurado o valor dos bens, objecto da dação, não se podem dar por verificados nem o facto referido na al. a), já que não é possível determinar o quanto, em que dimensão, foi afectado o património do devedor, ou seja, “...no todo ou em parte considerável...”, nem o “...proveito de terceiros.”, (no caso trabalhadores, que não se vislumbra que tenham sido beneficiados) nos termos exigidos na al. d), ambos do nº 2, do artº 186, do CIRE.
Em nosso entender, o comportamento dos legais representantes não é, perante a factualidade apurada, possível de ser visto de outro modo que não seja um acto de gestão da empresa devedora.
Nada nos permite concluir de outro modo, que não seja, que os bens dados aos trabalhadores lhes foi atribuído um valor justo.
Assim, concluir-se que os legais representantes subtraíram bens ao património da insolvente e decidiram beneficiar uns credores em detrimento dos demais, como se diz na sentença recorrida, é conclusão impossível de tirar perante os factos provados.
Em suma, os factos apurados, devida e sagazmente interpretados, são insuficientes para fazerem emergir a previsão das alªs a) e d) do nº2 do artº 186º do CIRE, ou de qualquer outro segmento normativo deste preceito.
O que clama a conclusão que, a insolvência não pode ser declarada culposa e, a apelação tem de ser julgada procedente.
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SUMÁRIO (artº 713, nº7, do CPC):
I - A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no nº 2 do artigo 186º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário.
II - Não é de qualificar como culposa a insolvência em que se prova, que os sócios gerentes da insolvente fizeram dações em pagamento aos trabalhadores de diversas máquinas e uma viatura, pertencentes à devedora, mas não se prova o valor desses bens, dados para pagamento da quantia de € 45 000,00, devida aos mesmos em consequência dos acordos de cessação dos contratos de trabalho que tinham com aquela.
III – Não se apurando o valor dos bens, objecto da dação, não se podem considerar verificados nem o facto referido na al. a), nem na al. d), do nº2, do artº 186, do CIRE.
IV – Sem se ter apurado o valor dos bens não é possível determinar o modo como foi afectado o património do devedor, nos termos exigidos na al. a), ou seja, “...no todo ou em parte considerável...”, nem o “...proveito de terceiros.”, (no caso, trabalhadores), nos termos exigidos na al. d), já que, apenas se provou o valor dos seus créditos e, não se provou o valor dos bens que receberam para satisfação dos mesmos.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida, qualificando-se como fortuita a insolvência da devedora C..., Ldª.

Custas pela massa insolvente.

Guimarães, 9 de Fevereiro de 2012
Rita Romeira
Amílcar Andrade
Manso Rainho