Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
936/16.7T8VRL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: REPRESENTAÇÃO
PODERES
CULPA IN CONTRAHENDO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Quando o representante age em nome do representado e cabendo o acto realizado dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos, a representação produz o seu efeito típico, que é a inserção direta, imediata, do acto na esfera jurídica do representado.

2 – Se o representante extravasou os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, ou se atuou de má fé, ou se violou os deveres de lealdade ou de informação na preparação ou conclusão do negócio, pode incorrer em responsabilidade pela indemnização de eventuais danos resultantes dessa sua atuação ilícita, por culpa “in contrahendo”, desde que essa atuação seja autonomizável da culpa do representado na conclusão do negócio, surgindo o representante como sujeito material do negócio, com ele se estabelecendo diretamente a relação pré-negocial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

J. R. e mulher M. R. e S. M. e marido C. F. deduziram ação declarativa contra J. B., J. S., Câmara Municipal e “EMPRESA X – Construções e Granitos, Lda.” pedindo que os réus sejam condenados a reconhecer os autores como donos e legítimos proprietários das frações identificadas na petição, a reconhecerem, o 1.º e o 2.º, a sua atuação lesiva e indevida na venda e legalização das frações dos autores, a 3.ª ré, a reconhecer que pela sua deficiente atuação contribuiu para a situação sofrida pelos autores, os 1.º, 2.º e 3.ª réus, condenados no ressarcimento dos danos morais sofridos pelos autores, no montante de € 10.000,00, os 1.º, 2.º e 3.ª réus, condenados a pagar aos autores a desvalorização que sofreu cada uma das suas frações, no montante de € 25.000,00 por cada fração, o 4.º réu, condenado na retirada dos ferros colocados na parede das frações dos autores, bem como na retirada do cimento das paredes e varandas destes ou, em alternativa, caso não seja possível a retirada dos ferros, e verificado que tal não acarreta qualquer problema estrutural para o prédio dos autores, deverá o 4.º réu ser condenado a indemnizar os autores no valor de € 2450,00, tudo acrescido de juros até efetivo e integral pagamento.
Em síntese (para o que aqui interessa quanto ao R. J. B., já que a instância foi julgada extinta quanto aos demais R.R.) invocaram que:
O 1º R. lhes vendeu duas fracções autónomas, através do seu representante, o 2º R. J. B.. Posteriormente à compra que realizaram, constataram que, as marquises das fracções não constavam do projecto, do que não foram informados. As fracções foram-lhes vendidas com garantia de que o novo edifício que iria ser construído junto àquelas ocuparia apenas a parte que estava por pintar na parede poente do imóvel de que fazem parte as fracções, o que não veio a acontecer. O novo edifício construído retira luz às fracções. Fruto do supra referido, cada fracção sofreu uma desvalorização de € 25.000,00, e os A.A. sofreram danos não patrimoniais.
Contestaram todos os réus, sendo que os 1.º e 2.º réus, excecionaram a ineptidão da petição inicial, por contradição entre a causa de pedir e o pedido, e contestaram por impugnação.
Os autores responderam.

Em audiência prévia foi a 3.ª ré absolvida da instância face à procedência da exceção de incompetência material. Foi também a 4.ª ré absolvida da instância por coligação ilegal entre os 1.º a 3.ª réus, por um lado, e a 4.ª ré, por outro. Foi determinada a retificação de erro material na petição inicial, que gerava a contradição entre a causa de pedir e o pedido suscitada pelos réus.
Posteriormente, foi ainda extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto ao réu J. S., em virtude da declaração de insolvência deste.
Permaneceu na ação, como réu, apenas J. B..

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença que condenou o réu J. B. a reconhecer os autores como proprietários das frações identificadas na petição inicial e a reconhecer a sua atuação lesiva e indevida na venda das frações aos autores, enquanto representante do 2.º réu e indo, no mais, absolvido.

O autor J. R. interpôs recurso da sentença, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1 – Os autores intentaram a presente ação contra, além do mais, dois réus.
2 – O promotor da obra – J. S. – e o seu representante, J. B..
3 – Tendo o primeiro sido declarado insolvente, na pendência desta ação, seguiu a mesma exclusivamente contra o segundo réu.
4 – Foi dado como provado que a conduta do réu J. B. foi lesiva e indevida, contudo
5 – O mesmo foi absolvido porquanto se considerou que atuava segundo as instruções do réu J. S..
6 – Mas tal facto não foi alegado pelo réu J. B..
7 – A este cabia alegar que a sua atuação tinha sido ditada pelo J. S. e seguindo as suas instruções e que desconhecia, sem culpa, que as informações eram falsas.
8 – Facto que também não alegou, nem provou.
9 – Impor tal prova aos autores é não só impor-lhes uma prova impossível, como inverter o ónus da prova.
10 – Os autores não estiveram nunca com o réu J. S., não conhecem.
11 – Desconhecem, sem culpa sua, quais as instruções que este deu ao réu J. B..
12 – As informações falsas podiam ser da lavra de um deles ou dos dois.
13 – Para se eximir teria o réu de alegar que só transmitiu as informações que o J. S. lhe deu e que desconhecia sem culpa que eram falsas.
14 – A não ser assim deveria ser condenado.
15 – Mas este réu somente alegou que as obras realizadas o tinham sido pelos autores, que se demonstrou que era uma mentira que nem ele mesmo conseguiu manter quando foi inquirido em audiência de julgamento.
16 – Pelo que deveria ter sido não só condenado no pedido, como deveria ter sido condenado como litigante de má fé, por ter alegado factos que sabia não corresponderem à verdade.
Consideram-se violados os artigos 342.º do Código Civil e 659.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de direito que Vªs Ex.ªs mais doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso, alterando a decisão recorrida farão a esperada JUSTIÇA.

O réu contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A única questão a resolver traduz-se em saber se o réu deveria ter sido condenado, apesar de atuar como representante do vendedor.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Factos provados:

1 – Os A.A. compraram ao R. J. S. as fracções autónomas identificadas em 3 e 4.
2 - A venda foi-lhes feita por intermédio do R. J. B., que, em
“representação” do R. J. S., fez todas as visitas às fracções, negociou as condições da venda, recebeu o dinheiro e tratou dos contratos.
3 - Pela Ap. 7 de 2001/11/09, mostra-se registada a aquisição, por compra efectuada a J. S. e esposa, a favor dos A.A. J. R. e esposa, da fracção autónoma correspondente à letra J, do prédio descrito na CRP de Vila Pouca de Aguiar, pela mesma freguesia, sob o n º ….
4 - Pela Ap. 2 de 2002/01/18, mostra-se registada a aquisição, por compra efectuada a J. S. e esposa, a favor dos A.A. C. F. e esposa, da fracção autónoma correspondente à letra F, do prédio descrito na CRP de Vila Pouca de Aguiar, pela mesma freguesia, sob o n º ….
5 - As fracções adquiridas possuíam licença de habitabilidade emitida pela Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, que certificou que as fracções estavam em condições de ser habitadas e que estavam de acordo com o projecto que havia sido aprovado.
6 – Porém, os A.A. vieram a constatar que o imóvel de que fazem parte as fracções, tinha sido objecto de alterações em obra e que a marquise que existe nas duas fracções não estava sequer prevista, não constando do projecto aprovado.
7 - Tal facto não lhes havia sido comunicado, nomeadamente pelo primeiro e segundo réus.
8 - À data da venda das fracções, estava por pintar na parede poente do imóvel de que as mesmas fazem parte, uma área com a configuração do novo imóvel ali a edificar.
9 - E a área que ficou por pintar, como só a aguardar o inico das obras, ficava a cerca de 10 cm das janelas das fracções.
10 – Aquando da venda das fracções, os A.A. foram informados pelo R., de que o novo edifício teria a configuração da área que ficou por pintar referida em 8.
11 – O novo edifício foi construído com a configuração referida em 8, até a uma distância de cerca de 5/6 metros do edifício a que pertencem as fracções, e, daí em diante com configuração distinta, ocupando, para lá da distância de 5/6 metros, parcialmente, a parte frontal às janelas das fracções.
12 - A parede do novo edifício retira alguma luz que as fracções recebiam.
13 – Se fossem conhecedores de que o novo edifício iria ter a configuração que veio a ter, os A.A. não teriam adquirido as fracções.
14 - Os A.A. ficaram desgostosos e incomodados com a construção do novo edifício e dormiram mal.
15 – Devido à construção do novo edifício, as fracções sofreram uma desvalorização de cerca de € 3.000,00, cada uma.

Factos não provados:

1 – Os A.A. ficaram aflitos e com receio.
2 – A construção das marquises desvalorizou as fracções.
3 - Cada uma das fracções sofreu uma desvalorização de € 25.000.

Não está posta em causa a decisão de facto, pelo que importa considerar as razões da discordância do recorrente, partindo da matéria de facto dada como provada e não provada.
Em primeiro lugar deve dizer-se que foram os próprios autores que alegaram, na petição inicial, a matéria constante dos factos provados n.ºs 1 e 2, ou seja, que compraram as frações a J. S. (entretanto declarado insolvente) e que a venda lhes foi feita por intermédio do réu J. B., que atuou em representação do primeiro. Isto mesmo é confirmado pelo réu na contestação – artigo 27.º.
Importa, assim, esclarecer, se o réu, agindo como representante do vendedor, podia ser condenado no pagamento de indemnizações devidas pela desvalorização das frações e por danos não patrimoniais sofridos pelos autores.
Quanto aos efeitos da representação, estatui o artigo 258.º do Código Civil que “o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último”.
Tendo o representante agido em nome do representado e cabendo o acto realizado dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos, a representação produz o seu efeito típico, que é a inserção direta, imediata, do acto na esfera jurídica do representado – cfr. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 240.
Se os autores entendiam que o representante extravasou os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, ou se atuou de má fé, ou se violou os deveres de lealdade ou de informação na preparação ou conclusão do negócio, ou seja, se lhe imputavam uma culpa “in contrahendo” autonomizável da culpa do representado na conclusão do negócio – cfr. artigo 259.º do CC -, então tais factos teriam que estar alegados, aos autores cabendo a respetiva prova – artigo 342.º, n.º 1 do CC. Seria necessário que o representante surgisse como sujeito material do negócio, “com ele se estabelecendo diretamente a relação pré-negocial”, de forma a que tal autonomia, perante o representado, o pudesse fazer incorrer em responsabilidade pela indemnização de eventuais danos resultantes dessa sua atuação ilícita – veja-se Acórdão do STJ de 16/03/2004 (Conselheiro Alves Velho), in CJ/STJ, ano XII, tomo I, pág. 132.
Neste acórdão pode ler-se, citando Ana Prata (Notas sobre a responsabilidade pré-contratual), pág. 184: “as hipóteses de responsabilidade in contrahendo de terceiros são, na realidade, situações em que o sujeito, que é ou pode ser considerado terceiro relativamente ao negócio projetado ou concluído, é parte na relação pré-negocial. É isso que se verifica não apenas quando o terceiro é um falsus procurator, mas também quando ele, sendo um representante com poderes, é o autor de um ilícito pré-negocial”.
Ponto é, como se diz no acórdão em causa, que a relação que se estabeleceu entre o representante e a contraparte no negócio, visando a sua preparação e conclusão, seja autonomizável da que vai estabelecer-se com o representado por efeito do contrato (artigo 259.º do Código Civil). Ou seja, o eventual ilícito pré-contratual, imputável ao representante, teria de ser autónomo e passível de acrescer à responsabilidade decorrente do incumprimento do contrato.
No caso de que nos ocupamos, os autores nunca procederam a essa individualização – talvez porque intentaram a ação contra vários réus ao mesmo tempo, tendo restado, apenas, por uma ou outra circunstância, o réu que atuou como representante do vendedor – tendo imputado a responsabilidade, em conjunto, a todos eles.
Não foi alegado que o representante tenha extravasado os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, atuando de má fé, ou que tenha violado os deveres de lealdade ou de informação na preparação ou conclusão do negócio, de forma a que lhe pudesse ser imputada uma culpa “in contrahendo” autonomizável da culpa do representado na conclusão do negócio – cfr. artigo 259.º do Código Civil.
Aliás, isso mesmo transparece dos factos provados.
Deve, até, dizer-se que, que não há qualquer facto, entre os factos provados, do qual pudesse extrair-se a responsabilidade do réu perante os autores, uma vez que esta sempre só poderia ter lugar se os actos por ele praticados preenchessem, cumulativamente, os pressupostos da responsabilidade civil: facto do agente, ilicitude desse facto, culpa, dano e nexo de causalidade entre o acto praticado e o dano verificado.
Ora, como se vê, apenas ficou provado que os réus – vendedor e representante – não comunicaram aos autores a alteração ao projeto aprovado pela Câmara, com a construção das marquises, sendo que, quanto a estas, não se provou que a sua construção tenha desvalorizado as frações – factos 5, 6 e 7 dos factos provados e 2 dos factos não provados.
Já quanto à desvalorização das frações e aos desgostos e incómodos dos autores relativamente à construção do novo edifício “colado” àquele onde se situam as suas frações, nada vem imputado aos réus e, designadamente, a este réu em particular, apenas aí se dizendo que os autores foram informados pelo réu de que o novo edifício teria a configuração da área que ficou por pintar na parede poente. Ora, tendo ficado essa área por pintar, era de todo crível que o novo edifício encostasse aí. O que é que aconteceu, posteriormente, para que tal não sucedesse, não sabemos, nem tal resulta da matéria de facto apurada.

Sabemos apenas que os autores interpuseram providência cautelar de embargo de obra nova contra a construtora do novo edifício, que terminou por transação, mediante a qual foi possível recuar parcialmente a parede do novo edifício em cerca de 1,5 m e fechar as janelas que se encontravam mais próximas das dos autores (tornando-se um óculo de sol para as casas de banho da nova construção).
Assim, a existir qualquer dever de indemnizar – e já vimos que não existia, por não estarem preenchidos, cumulativamente, os requisitos da responsabilidade civil -, o mesmo recairia sobre a parte interveniente no contrato, ainda que tenha utilizado para o efeito, um representante – cfr. artigo 800.º, n.º 1 do CC – uma vez que não foi alegada qualquer atividade do representante que pudesse configurar-se de forma autonomizável e destacada da estabelecida com o representado, por efeito do contrato.
Improcede, nestes termos, a apelação, sendo de confirmar a sentença recorrida.

Sumário:

1 – Quando o representante age em nome do representado e cabendo o acto realizado dentro dos limites dos poderes que lhe foram conferidos, a representação produz o seu efeito típico, que é a inserção direta, imediata, do acto na esfera jurídica do representado.
2 – Se o representante extravasou os poderes que lhe foram conferidos pelo representado, ou se atuou de má fé, ou se violou os deveres de lealdade ou de informação na preparação ou conclusão do negócio, pode incorrer em responsabilidade pela indemnização de eventuais danos resultantes dessa sua atuação ilícita, por culpa “in contrahendo”, desde que essa atuação seja autonomizável da culpa do representado na conclusão do negócio, surgindo o representante como sujeito material do negócio, com ele se estabelecendo diretamente a relação pré-negocial.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Guimarães, 9 de novembro de 2017


Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro