Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4106/09.2TBGMR.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/28/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. A violação de normas urbanísticas, desde que cause danos aos proprietários de prédios confinantes, fruidores do bem jurídico tutelado, é fundamento de indemnização civil.
2. A construção dum muro com 5 metros de altura, sem justificação, no exercício do direito de tapagem, por parte dos réus, traduz-se num abuso do direito, porque fere de forma intolerável, inadmissível o fim social e económico deste, acabando por prejudicar o direito de propriedade dos autores.
3. Porque há necessidade da ampliação da matéria de facto, anula-se, parcialmente, a decisão para apuramento da matéria de facto dos artigos 12, 15, 16, 17, 19 e 20 da petição inicial, ao abrigo do disposto no artigo 712 n.º 4 do CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães



A.e mulher, B, residentes na Rua do ..., n.º ..., Ronfe, Guimarães, intentaram contra C. e mulher, D. a presente acção declarativa de condenação sob a forma sumária de processo peticionando a condenação dos RR. na demolição de construções não licenciadas, designadamente anexos e paredes de vedação que identificam, e ainda a quantia de €6.000, €1.000 a título de despesas com deslocações e tempo dispendidos com contactos com a CM Guimarães e €5.000 a título de danos não patrimoniais.

Alegam, para o efeito, e em síntese, serem proprietários de um determinado prédio urbano, que identificam, sendo os RR. proprietários de prédio urbano com o deles confinante pelo lado sul, sendo que em finais de 2003 os demandados terão edificado nesse seu prédio, sem autorização ou licenciamento, anexos dotados de placa de cobertura em betão, terão alçado os muros de vedação do prédio até uma altura de 5 metros e terão ampliado a cave do seu edifício na confrontação com os AA até ao limite do seu terreno, sem respeitar qualquer afastamento.




Mais alegam que essas obras estão a provocar o escoamento de águas pluviais e de limpezas para o seu prédio, retiram exposição solar ao seu quintal, com diminuição da respectiva rentabilidade em produtos hortícolas, árvores de fruto e plantas de jardim, levam à perda de privacidade e prejudicam a envolvente urbanística do local, por não terem revestimento exterior, o que lhes causa perturbações e incómodos e gera discussões e mal-estar, para além de os terem obrigado a suportar despesas computadas em €1.000 em deslocações e tempo dispendido em contactos com a CM Guimarães.

Regularmente citados, contestaram os RR., admitindo a edificação das aludidas construções, mas arguindo que têm mantido contactos com a CM Guimarães no sentido da regularização das obras em causa, jamais tendo essas obras provocado o escoamento de águas para o prédio dos AA e perda de exposição solar ou de privacidade.

Foi prolatada decisão que julgou improcedente a acção, absolvendo os réus dos pedidos formulados, de demolição das construções e pagamento da indemnização no montante de 6.000 €.

Inconformados com o decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, formulando conclusões.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões, a saber:

1.Impugnação na vertente do facto

1.1 Se é de considerar provada e com interesse para a decisão da causa, a matéria de facto alegada nos artigos 1, 2, 9, 11, aceite na contestação.

2. Impugnação na vertente do direito

2.1 Se a realização das obras viola o direito de propriedade dos autores, mais concretamente o disposto no artigo 1360, 1362 e 1365 do C.Civil.

2.2 Se a construção dos muros com 5 m é considerada excessiva e viola o disposto no artigo 334 do C.Civil.

2.3 Se os réus, com a realização das obras, sofreram danos morais e patrimoniais.

Vamos conhecer das questões enunciadas.

1.1No que tange ao teor do artigo 1 da petição inicial, este foi dado como assente, no 1.1 al. a) dos factos provados da decisão recorrida. Daí que não se imponha qualquer alteração.

No que respeita ao artigo 2 da petição, o essencial e com relevo para a acção está vazado no ponto 1.1 al. b) dos factos provados da decisão recorrida, pelo que não se justifica qualquer alteração.

No tocante aos artigos 9 e 11 da petição inicial, estamos perante matéria de facto relativa a uma ordem de demolição das obras levadas a cabo pelos réus sem licença de construção por banda da Câmara Municipal de Guimarães, que não foi acatada, o que originou um processo crime, por desobediência, que veio a terminar pela aplicação duma injunção por parte do MP., que veio a ser cumprida pelos arguidos.

Esta matéria não é relevante para o que se discute nestes autos, que se traduz na violação do direito de propriedade dos autores, por parte dos réus, enquanto proprietários do prédio confinante a Sul. Pois a matéria desses artigos restringe-se à violação de normas de direito urbanístico e de direito penal. Não sendo essencial para a discussão da causa, não deve constar do elenco fáctico, fundamentador da decisão.

Foi dada como provada, na decisão impugnada, a seguinte matéria de facto, que passamos a transcrever:

1.1. Factos provados, com relevância para a decisão da causa.
Estão provados por documento e acordo os seguintes factos:
a) Encontra-se registada a favor do A. marido a propriedade do prédio urbano sito na R. Rio ..., n.º ..., Ronfe, Guimarães, composto de casa de cave e r/c, dependência e logradouro, a confrontar do Norte com E., do Sul com o R. marido, do Nascente com F. e do poente com estrada municipal, inscrito na matriz sob o art. 1362 e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Comercial sob o n.º 1478/20070731 (doc. fls. 10 a 13);

b) Em finais de 2003, os RR. construíram no prédio que confronta do lado sul do prédio referido em a), sem que para tal possuíssem autorização ou licenciamento, anexos dotados de placa de cobertura em betão, alçaram os muros de vedação do prédio até uma altura de cerca de 5 metros e ampliaram a cave do edifício na confrontação com o prédio dos AA. até ao limite do terreno (acordo).

2.1 Para aquilatar da violação do direito de propriedade dos autores, por parte dos réus, temos a matéria de facto consignada no ponto 1.1 al. b) da decisão recorrida. E, com base nela, considerou o tribunal recorrido que não havia violação de qualquer norma que afectasse o direito de propriedade dos autores.

Ponderou as dúvidas que poderia suscitar a matéria dos artigos 12 e 14 da petição inicial, e concluiu que o escoamento das águas pluviais é natural e não se sabe a natureza das águas de limpeza, por falta de alegação, pelo que acabou por decidir contra os autores. E quanto à falta de parapeito na placa de cobertura em nada afecta o direito de propriedade dos autores, pelo que também nesta parte decidiu contra os autores.

Quanto ao teor do artigo 12 da petição inicial, julgamos que é importante a matéria de facto alegada, na medida em que é patente a alegação do nexo de causalidade entre a construção dos anexos, a ampliação da cave e dos muros e o escoamento das águas pluviais e de limpeza para o prédio dos autores. Deste artigo resulta que, em consequência das obras referidas, as águas pluviais e de limpeza destes espaços escoam para o prédio dos autores. E este escoamento não é permitido. Incumbe ao proprietário do prédio confinante realizar obras de molde a que as águas das chuvas ou de limpezas sejam canalizadas para o seu prédio ou para o saneamento, mas nunca para o prédio vizinho. Quanto às águas pluviais, o artigo 1365 do C.Civil é expresso no sentido de que a edificação não goteje sobre o prédio vizinho, devendo o proprietário deixar um intervalo de 50cm entre o seu prédio e o do vizinho.

Como esta matéria está controvertida, necessita de prova em audiência de discussão e julgamento. No que tange ao alegado no artigo 14, não vislumbramos violação do direito de propriedade. Pois o artigo 1360 do C.Civil, refere-se a abertura de janelas ou portas ou a varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes que sejam servidos com um parapeito de altura inferior a metro e meio em toda a extensão. E se estas obras permanecerem por um período de tempo igual ou superior a 20 anos, leva à constituição duma servidão de vistas nos termos do artigo 1362 do C.Civil.

O certo é que neste caso não se verificam os pressupostos apontados, pelo que não está em perigo a constituição da servidão apontada pelos autores. Daí que a matéria do artigo 14 da petição inicial não seja relevante para a causa.

2.2 Os autores defendem que a construção do muro com 5 metros de altura é excessiva e revela o exercício abusivo do seu direito de propriedade, violando o disposto no artigo 334 do C.Civil.

Os réus, ao concretizarem a construção do muro, fazem-no no exercício do direito de tapagem previsto no artigo 1356 do C.Civil, que é a expressão duma das faculdades inerentes ao direito de propriedade. Visa, essencialmente, “…impedir o livre-trânsito de pessoas estranhas ou animais (Antunes Varela, C.Civil anotado Vol. III, Coimbra Editora 1972, pag. 185).

Será que o exercício deste direito, no caso em apreço, se traduz num abuso? A altura de 5 metros é desproporcionada para os fins da tapagem. Estes seriam atingidos com um muro de altura muito inferior, que não ultrapassasse 1,8 metros, como se exige no artigo 1363 n.º 2 do C.Civil, para as seteiras, frestas ou óculos para luz e ar. Só a indicação duma causa justificativa para essa altura é que fundamentaria o uso legítimo do direito de tapagem nestas circunstâncias.

O instituto do abuso de direito, consagrado no artigo 334 do C.Civil, é uma cláusula geral, que tem por finalidade última temperar o exercício dos direitos subjectivos. Deve intervir em situações excepcionais, quando, do exercício de qualquer direito, sejam ultrapassados, de forma intolerável, inadmissível, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Que seja ferida a consciência jurídica, os valores fundamentais da ordem jurídica, socialmente dominantes.

No caso em apreço não foi justificada a altura e esta fere de forma intolerável, inadmissível o fim social e económico do direito de tapagem, acabando por prejudicar o direito de propriedade dos autores, diminuindo o período de sol no seu prédio, afectando, necessariamente, as culturas que pretenda nele desenvolver e limitando as suas próprias vistas de forma desajustada. Daí que a construção desse muro, com esta altura, se traduza num abuso do direito, tornando-se ilegítimo o uso do direito de tapagem nos termos em que foi exercido. O que leva a que seja limitado de molde a que realize os fins da tapagem cuja altura não deve ser superior 1,8 metros.

2.3 Os autores alegam factos que, na sua perspectiva, fundamentam danos morais e patrimoniais, emergentes das construções levadas a cabo, sem licença das autoridades administrativas competentes.

O tribunal recorrido indefere esta pretensão porque considera que se não verifica a ilicitude do acto, uma vez que a norma violada protege interesses públicos ou colectivos e não particulares, mais concretamente, o direito de propriedade dos autores.

Na verdade, os autores assentam os danos morais no carácter inestético da altura dos muros e da falta de revestimento exterior das construções, que, pela sua permanência, há vários anos, lhes causa perturbações e incómodos e gera frequentes discussões e mal-estar. E no sentido de resolver a situação ilegal das construções, vem diligenciando junto da Câmara Municipal, mas sem sucesso, apesar de ter tido várias reuniões.

Ora, os fundamentos dos danos assentam na violação de normas de natureza urbanística que visam a protecção de interesses colectivos e não directamente o direito de propriedade dos autores. Porém, enquanto proprietários e utentes de um determinado espaço, têm direito a que sejam cumpridas as normas de direito urbanístico. E, no caso do seu incumprimento, podem e devem exercer o direito de denúncia às autoridades públicas competentes, com vista a reporem a legalidade. E se da actividade ilegal do infractor advierem prejuízos para o denunciante, este pode requerer aos tribunais o seu ressarcimento, com base na violação dessas normas. Pois, neste caso, a estética da envolvente urbanística é um bem público, de que os autores são fruidores. A violação desse bem legitima a acção de denúncia e a indemnização, no caso de originar danos.

Como os factos alegados, fundamentadores dos danos, estão controvertidos, é necessário submetê-los a julgamento.

Assim, anula-se a decisão recorrida ao abrigo do disposto do artigo 712 n.º 4 do CPC, com vista ao apuramento dos factos alegados no artigo 12, 15, 16, 17, 19 e 20 da petição inicial. E, ainda se ordena a demolição do muro construído com a altura de 5 metros, para que seja adaptado ao fim da tapagem, que não deve ultrapassar 1,8 metros de altura.

Concluindo:

1. A violação de normas urbanísticas, desde que cause danos aos proprietários de prédios confinantes, fruidores do bem jurídico tutelado, é fundamento de indemnização civil.
2. A construção dum muro com 5 metros de altura, sem justificação, no exercício do direito de tapagem, por parte dos réus, traduz-se num abuso do direito, porque fere de forma intolerável, inadmissível o fim social e económico deste, acabando por prejudicar o direito de propriedade dos autores.
3. Porque há necessidade da ampliação da matéria de facto, anula-se, parcialmente, a decisão para apuramento da matéria de facto dos artigos 12, 15, 16, 17, 19 e 20 da petição inicial, ao abrigo do disposto no artigo 712 n.º 4 do CPC.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, e, consequentemente:

1. Anulam, parcialmente, a decisão recorrida para apuramento da matéria de facto dos artigos 12, 15, 16, 17, 19 e 20 da petição inicial.
2. Ordenam a demolição do muro construído com 5 metros de altura, até, pelo menos, 1,8 metros.

Custas devidas a final em ¾ a suportar por autores e réus e em ¼, a suportar pelos réus, na Relação, pelo decaimento no recurso.

Guimarães,