Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1386/03-2
Relator: ANTÓNIO RIBEIRO
Descritores: OBRAS
DESPEJO IMEDIATO
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/11/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Há lugar à resolução do contrato de arrendamento que tem por objecto um estabelecimento comercial e ao consequente despejo, quando os arrendatários, sem o conhecimento do locador, promovem a realização de obras no interior do locado de molde a alterar substancialmente a disposição dos espaços e das divisões, mediante o derrube da maior parte duma parede divisória, também suporte do andar superior, e a sua substituição por duas vigas em ferro
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:



I – Relatório;


Apelantes: "A";
Apelados: "B";
3º Juízo Cível da Comarca de Viana do Castelo – acção sumária (despejo) nº ...).


"A" intentaram contra "B" acção declarativa, coma forma sumária, alegando, em síntese, que são proprietários do prédio que identificam no art. 1º da p.i., e que deram de arrendamento à ré mulher uma divisão central do referido prédio, sita no rés do chão; mais alegam que, em Fevereiro de 2000 tomaram conhecimento que os réus tinham efectuado obras no arrendado contra a sua vontade e sem o seu conhecimento, nomeadamente, destruindo uma parede que servia de apoio ao 1º andar do prédio, sendo necessária à sua segurança, para assim aumentaram a área da loja arrendada. Com estes fundamentos, pedem que seja decretada a resolução do contrato de arrendamento e os réus condenados a despejar imediatamente o arrendado, entregando-o aos autores livre e desembaraçado de pessoas e coisas.
Os réus contestaram, impugnando alguns dos factos alegados e defendendo que as obras em causa foram efectuadas com o conhecimento dos autores, que as aceitaram e deram autorização para as mesmas e que, em todo o caso, nunca as referidas obras consubstanciariam uma alteração substancial. Invocaram ainda a excepção da caducidade da acção, nos termos do art. 65º do RAU.
Os autores responderam à contestação, pugnando pela improcedência da excepção invocada, mantendo tudo o alegado na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador que relegou para final o conhecimento da alegada excepção de caducidade da acção, seleccionando-se os factos assentes e organizando-se a base instrutória.
Realizada a audiência de julgamento, foi a matéria de facto fixada por despacho de fls. 90 e 91 e, de seguida, proferida sentença que, julgando improcedente a excepção peremptória de caducidade do direito de acção, julgou improcedente a acção, absolvendo os réus do pedido.

Inconformados com tal decisão dela interpuseram os autores o presente recurso de apelação, em cujas alegações formularam as conclusões seguintes:

«1. Está provado que os R.R. procederam a obras que mexeram com a estrutura do locado e a sua disposição originária.
2. A cláusula 48 do contrato proibia-as expressamente.
3. Essas obras foram feitas com desconhecimento e contra a vontade dos A.A., aproveitando-se os R.R. da sua ausência em Moçambique onde residiam e exerciam as respectivas profissões.
4. A má-fé dos inquilinos, elemento a ponderar nestes casos, conforme jurisprudência dominante, é manifesta.
5. Inclusive, não só usaram abusivamente o nome do A. marido, como requerente das alterações, como as obras foram feitas e se mantiveram clandestinas, á revelia da prévia aprovação camarária, durante largo tempo.
6. Trata-se, aliás, de uma alteração substancial, pela sua natureza e qualidade, pois atinge a substância de coisa - ao afectar a estrutura, o sistema de segurança e a configuração do locado.
7. Em termos futuros é susceptível de lesar os interesses dos A.A..
8. Há uma transformação do locado um direito que é exclusivo do proprietário.
9. A douta sentença recorrida violou o disposto nos art.°s 1.038°, 1.043° do C.C.. e n.° 1 ai. d) do artº 64° do R.A.U.»

Os apelados contra-alegaram, pugnando pela confirmação do julgado.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos autores apelantes, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 660º, nº 2, 664º, 684º, nºs 3 e 4 e 690º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC).

As questões suscitadas são, em suma:

a) Arrendamento comercial; obras no locado sem autorização do senhorio;
b) Alteração substancial da disposição interna das divisões do prédio locado.


III – Fundamentos;

1. De facto;

1. Os autores são donos e possuidores de um prédio constituído por casa de r/c, 1º andar e águas furtadas, sito na Rua ..., freguesia de ..., a confrontar do norte com a Rua ..., do sul com a Rua ..., do nascente com a Rua ... e do Poente com a Rua ..., inscrito na matriz predial urbana respectiva sob o art. ...º e descrito na CRP sob o nº ... – al. A) da Matéria Assente.
2. Por escritura pública celebrada em .../.../91, os autores deram de arrendamento à ré mulher uma divisão central do referido prédio sita no R/C – al. B) da Matéria Assente.
3. O arrendamento foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável por iguais períodos, com início em .../.../91, mediante o pagamento de uma renda anual de 60.000$00, paga no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, em duodécimos mensais de 5.000$00, na casa do procurador dos autores – al. C) da Matéria Assente.
4. Do referido contrato de arrendamento consta uma cláusula (4ª), nos termos da qual “a arrendatária poderá efectuar, na parte arrendada, quaisquer obras que não interfiram com a estrutura do prédio e que sejam necessárias ou úteis ao exercício da sua actividade comercial, ficando, no entanto, desde já autorizada a abrir uma montra, obras essas que, uma vez feitas, não obrigam os senhorios ao pagamento de qualquer indemnização nem dão à arrendatária o direito de retenção” – al. D) da Matéria Assente.
5. Os autores vivem em ... há dezenas de anos, onde exercem a sua vida profissional, deslocando-se ocasionalmente a Portugal no gozo das férias – al. E) da Matéria Assente.
6. No R/C do prédio dos autores existem, além da divisão arrendada à ré mulher, mais duas lojas – al. F) da Matéria Assente.
7. O R/C centro tinha uma parede transversal em pedra que se implantava do chão ao tecto, a qual tinha uma abertura, com o formato de uma porta, que servia de comunicação entre dois espaços – al. G) da Matéria Assente.
8. Em inícios do ano 2000, os autores tomaram conhecimento de que os réus, à sua revelia e contra a sua vontade, tinham procedido às obras referidas infra nos pontos 9, 10 e 11 – resposta ao quesito 1º.
9. A parede referida no ponto 7 servia de apoio ao 1º andar, sendo necessária à sua segurança – resposta ao quesito 6º.
10. Foram destruídos, pelos réus, cerca de 2/3 da referida parede – resposta ao quesito 7º.
11. Em sua substituição foram colocadas duas vigas metálicas de suporte ao andar superior – resposta ao quesito 8º.
12. As obras foram realizadas com desconhecimento dos autores e contra a sua vontade – resposta ao quesito 9º.
*****

2. De direito;

Entendem os apelantes que os inquilinos promoveram a realização de obras no locado que mexeram com a sua estrutura e a sua disposição originária, violando a proibição expressa constante da cláusula 4ª do contrato de arrendamento e fazendo-o sem o conhecimento e contra a vontade deles senhorios, aproveitando-se da sua ausência em ....

Escreveu-se na sentença recorrida que «no caso dos autos, está assente que o R/C centro tinha uma parede transversal em pedra que se implantava do chão ao tecto, a qual tinha uma abertura, com o formato de uma porta, que servia de comunicação entre dois espaços. A dita parede servia de apoio ao 1º andar, sendo necessária à sua segurança. Os réus destruíram cerca de 2/3 da referida parede e, em sua substituição foram colocadas duas vigas metálicas de suporte ao andar superior.
Não há dúvida que a referida obra buliu com uma parede necessária à segurança do prédio; mas também é verdade que os réus a substituíram por duas vigas metálicas que conferem do mesmo modo segurança ao edifício.
Repare-se que a obra teve em vista a beneficiação do arrendado (espaço destinado a comércio), criando uma maior ligação entre duas divisões. Contudo, não se pode dizer que a obra realizada pelos réus, apesar de ter eliminado 2/3 de uma divisória entre dois espaços, transforma de tal forma o locado que o mesmo deixa de ser aquilo que era anteriormente, perdendo a sua identidade ou alterando-se na sua essencialidade e alterando a disposição ou equilíbrio do imóvel. A obra realizada pelos réus não parece representar uma alteração fundamental da fisionomia interna do prédio, pois não tem a virtualidade de o desfigurar ou descaracterizar naquilo que é a sua estrutura, com a consequente perda da sua individualidade original. E, como assim é, carece de fundamento legal a acção intentada pelos autores».

Se aqui se reproduz esta parte da sentença é porque, salvo o devido respeito, nos parece nela patente o desfasamento entre as respectivas premissas e a conclusão.
Desde logo não está em causa, no âmbito do direito de resolução consagrado no artigos 64º, nº 1, alínea d) do RAU, designadamente no que se refere à alteração substancial da disposição interna do locado, a segurança do prédio, mas a sua fisionomia. Por outro lado, o próprio conceito de obra, para efeitos deste dispositivo, pressupõe a beneficiação do locado, pois de contrário teríamos de falar de deterioração.

O artigo 64º, nº 1, alínea d) do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15.10, prescreve que «o senhorio só pode resolver o contrato» se o arrendatário “fizer no prédio, sem consentimento escrito do senhorio, obras que alterem substancialmente a sua estrutura externa ou a disposição interna das suas divisões, ou praticar actos que nele causem deteriorações consideráveis, igualmente não consentidas e que não possam justificar-se nos termos dos artigos. 1043º do Código Civil ou 4º do presente diploma”.

Na interpretação do fundamento de resolução previsto na citada norma há que ter presente o pendor proteccionista da lei para com o arrendatário, que caracteriza o regime do arrendamento urbano. Basta ter em conta que enquanto o arrendatário pode resolver o contrato nos termos gerais de direito, alegando o incumprimento do senhorio e podendo fazê-lo por simples declaração receptícia (art. 63º, nº 1 do RAU), já ao locador impõe a lei que a resolução seja prosseguida pela via judicial (art. 63º, nº 2) e, ainda assim, restritivamente, apenas com base nas infracções taxativamente previstas no artigo 64º.

Esta disposição (art. 64º, nº 1, alínea d) visa sancionar a violação, por parte do arrendatário, da obrigação de manter o locado, estrutural e substancialmente, no mesmo estado em que o recebeu, uma vez que o direito de transformação do imóvel pertence em exclusivo ao proprietário (art. 1305º do CC).
Ao arrendatário cabe apenas o gozo temporário do imóvel pelo que, quando pratica actos de transformação, ingere-se na esfera patrimonial do proprietário, situação que a lei comina com o direito deste ao despejo (neste sentido vide Januário Gomes, “O Direito”, ano 125º, p. 448 e segs.).

É obrigação do inquilino não fazer do prédio uma utilização imprudente (art. 1038º, alínea d) do C. Civil).
Todavia, o fundamento do direito à resolução do contrato por parte do senhorio não se esgota na violação daquela obrigação imposta ao inquilino; se tal pode ocorrer com as deteriorações consideráveis, o mesmo não se poderá dizer no tocante às alterações substanciais.

Consideram-se, assim, como fundamento de resolução do contrato, na alínea d) do nº 1 do art. 64º, três tipos de situações:
a) obras que alterem a estrutura externa do prédio;
b) obras que alterem a disposição interna das divisões do prédio;
c) as deteriorações consideráveis.

Antes de mais, convém sublinhar que a interpretação do conceito de obra, para efeitos deste dispositivo, tem subjacente uma ideia de beneficiação do prédio, de outro modo estar-se-ia perante uma deterioração.
A disposição interna das divisões prende-se com a forma como se articula a distribuição do espaço interior do prédio, com a maneira como se encontram dispostos os respectivos compartimentos, ou seja, com o modo por que as divisões se conjugam entre si.
No entanto, a alteração da disposição interior do prédio só é erigida em fundamento resolutivo do contrato de arrendamento quando possa ser caracterizada como alteração substancial.

Efectivamente a jurisprudência e a doutrina (cfr. Ac. da Rel. de Lisboa de 18.03.1993, in CJ 1993, II, pág. 113, Aragão Seia, in “Arrendamento Urbano”, 4º edição, pág. 345, 347 e 348, Pais de Sousa, in “Extinção do Arrendamento urbano”, 1ª ed., pág. 209 e Januário Gomes, em “O Direito”, ano 125º, pág. 461) vêm sustentando a referência do requisito de «alteração substancial» a ambas as hipóteses de obras (na estrutura externa ou na disposição interna) consagrando um entendimento restritivo do direito de resolução do senhorio, quando em presença de alterações da disposição interna das divisões do prédio.

A lei não define um critério que permita concretizar o conceito de «alteração substancial», pelo que só uma análise casuística permite proceder a essa determinação (cfr. Ac. da Rel. do Porto de 15.11.1990, in CJ 1990, 5º, 198).
Em qualquer caso, opera-se uma alteração substancial quando as obras efectuadas determinam uma desfiguração interna do prédio, de natureza duradoura, ou seja, sempre que elas levam a que o interior do prédio passe a apresentar, de modo perene, uma outra fisionomia, uma nova distribuição, uma diferente forma de ocupação do seu espaço. Uma alteração considerável surge ligada a um certo sentido de perenidade.

Como escreve Aragão Seia (ob. e loc. citados), a norma em apreço abrange não apenas as divisões do interior, ou o miolo de um edifício urbano, mas também outras realidades como a planificação interna ou o modo de distribuição interna desse tipo de prédio.

É precisamente esta a situação que se verifica na presente situação.
Com efeito, o r/c centro arrendado aos réus tinha uma parede transversal em pedra que se erguia do chão ao tecto e que servia de apoio ao 1º andar, sendo necessária à sua segurança, a qual tinha uma abertura, com o formato de uma porta, que servia de comunicação entre dois espaços.
À revelia dos autores apelantes e contra a sua vontade, promoveram os réus a realização de obras no arrendado, que implicaram a destruição de cerca de 2/3 da mencionada parede, sendo colocadas duas vigas metálicas de suporte do andar superior.
Os casos de transformação definitiva de vários compartimentos num só ou de um só em vários traduzem situações típicas de alteração da disposição interior do prédio e, desde que essa modificação altere de forma relevante (ou substancial) tal disposição, justifica-se a resolução do contrato (neste sentido cfr. o Ac. da Rel. de Lisboa de 18.03.93, in CJ 1993, 2º, 114).

Convém frisar que pouco importa que tais obras tivessem visado assegurar a criação de um espaço moderno e adequado ao desenvolvimento da actividade a que se destinava o locado e proporcionar um maior conforto e comodidade. Essa circunstância apenas releva quanto às pequenas deteriorações lícitas, nos termos dos arts. 1043º do C.C. e 4º do RAU.

Aliás, se a invocação do conforto e da comodidade fosse susceptível de afastar a causa resolutiva em apreço, a al. d), do art. 64º, do RAU, seria letra morta na parte em que se reporta às alterações substanciais, porquanto o arrendatário nunca faria, por certo, alterações para seu desconforto e incomodidade.

De igual modo, é irrelevante o apelo à ideia de reparabilidade das obras efectuadas.
A própria destruição total do prédio é reparável na medida em que é possível construir um prédio igual ao primitivo.
Conforme refere Meneses Cordeiro (ob. e loc. citados, pág. 238), “não há obra humana que não possa ser desmanchada, substituindo-se por outra” (vide também o Ac. da R.L. de 18.11.1982, in CJ 1982, 5º, 103).

Ao promoverem a execução das obras descritas, os apelados ingeriram-se no direito de transformação do imóvel, que cabe em exclusivo ao proprietário, violando a sua obrigação de se absterem de produzir alterações substanciais no espaço interior do locado.
Daí que aos apelados não fosse lícito realizar as referidas obras sem consentimento escrito do senhorio, o que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento, de harmonia com o disposto no art. 64º, al. d) do RAU.

Nos termos do art. 433º do Código Civil os efeitos da resolução do contrato, na falta de disposição especial, são equiparados aos da nulidade ou da anulabilidade do negócio jurídico. Quanto a estes, estabelece o art. 289º que "... têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado...".
Nos contratos de execução continuada ou periódica (“... em que as prestações se renovam, em prestações singulares sucessivas, ao fim de períodos consecutivos – v.g. as do pagamento da renda pelo locatário,...” – Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, pág. 62), a resolução não abrange as prestações já efectuadas, nos termos prescritos pelo art. 434º, nº 2.
Não obstante, os efeitos jurídicos da declaração de resolução do arrendamento operam de imediato, com a consequente obrigação imposta aos inquilinos de entregarem o locado ao senhorio.


IV – Decisão;

Em face de todo o exposto, acordam em julgar procedente a apelação e em revogar a sentença recorrida, decretando a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o autor-apelante e os réus-apelados e condenando estes a restituir àquele o locado, de imediato, completamente livre de pessoas e coisas.

Custas pelos apelados em ambas as instâncias.