Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
17/14.8TBCBT-C.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: PENHORA
PENHORA PARCIAL
IMPENHORABILIDADE
PENHORA DE SALÁRIO E DE OUTRAS PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
PENHORA DE REFORMAS
INDEMNIZAÇÃO POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
REDUCÃO DA PENHORA
ISENÇÃO DA PENHORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Um dos bens do executado que é apenas parcialmente penhorável é o vencimento, salário, prestação periódica paga a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente de viação ou renda vitalícia ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante, prestações pecuniárias que só podem ser penhoradas até 1/3 do seu montante (v. nº 1 do art. 738º do CPC);

II. Nos termos do nº 3 do citado dispositivo estabelece-se que, em geral, a impenhorabilidade prescrita no nº 1 tem como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional;

III. Quando decorrer da penhora que o 1/3 penhorável conduz a um rendimento disponível do executado inferior ao valor do Salário Mínimo Nacional deve-se entender que a parte impenhorável do rendimento se eleva, coincidindo com o valor deste.

IV. À luz do nº 6 do art. 738º do CPC é possível ao executado obter a redução da parte penhorável dos seus rendimentos, e mesmo a isenção, ainda que neste caso por período que não pode exceder 1 ano.

V. Tal faculdade é excepcional e depende de ponderação judicial, tendo o executado que alegar e provar que as suas necessidades e do seu agregado familiar merecem sobrepor-se ao interesse do credor na satisfação do seu crédito, cuja origem e montante são igualmente factores a sopesar
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Recorrente(s): - F. T.;
Recorrido: P., S. A.
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F. T., executado nos presentes autos, veio requerer o levantamento da penhora efectuada sobre o seu salário com o fundamento de que a mesma é ilegal porque prejudica o pagamento dos alimentos aos seus filhos menores de idade.
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Regularmente notificada, a Exequente pugnou pela improcedência do incidente.
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De seguida, o Tribunal de Primeira Instância proferiu a seguinte decisão:
“Decisão:
Nestes termos, julgamos improcedente o presente incidente de oposição à penhora e, em consequência, determino a manutenção da penhora sobre o salário do executado, desde que esta penhora não o impeça de ter um rendimento mensal inferior ao valor de um salário mínimo nacional em vigor.”.
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O Recorrente F. T. interpôs Recurso da aludida decisão.
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Sobre esse recurso foi proferido Acórdão que, dando-lhe razão, proferiu a seguinte decisão:

“III-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em anular a decisão recorrida, determinando o reenvio dos autos ao Tribunal de Primeira Instância, para que profira nova decisão, na qual expressamente se pronuncie sobre os factos alegados pelas partes (nomeadamente, os mencionados nos itens 4º, 7º e 10º do requerimento do executado), e explicite a fundamentação da respectiva decisão de facto, incluindo a análise crítica da prova a que proceda.”
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Baixando os autos à primeira instância, foram realizadas as diligências probatórias, e, de seguida, foi proferida nova decisão no seguinte sentido:
“7.- Decisão:
Nestes termos, julgamos improcedente o presente incidente de oposição à penhora. “
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Não se conformando com esta nova decisão, veio interpor o Recorrente o presente Recurso, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“CONCLUSÕES:
I - A Douta Decisão da qual se recorre não teve em conta os documentos juntos pelo aqui recorrente, mormente, o Acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais junto sob doc. 1, da P.I. dos embargos de executado.
II - O aqui recorrente está obrigado ao pagamento mensal da quantia de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) a título de pensão de alimentos aos seus dois filhos menores.
III - Auferindo somente o salário mínimo, estando este obrigado ao pagamento de pensão de alimentos na quantia mensal de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), o remanescente, isto é, o rendimento disponível para a sua própria sobrevivência, será de €180,00 (cento e oitenta euros).
IV - Entende-se adequada e equilibrada a fixação do valor equivalente a um salário mínimo para o executado como o razoavelmente necessário para o seu sustento minimamente digno, cujo rendimento mensal monta a esse valor.
V - Estando obrigado a pagar pensão alimentícia, no valor de € 350,00 mensais, os remanescentes €180,00 euros são para a sua sobrevivência no dia-a-dia.
VI - Tendo o salário mínimo como referencial do rendimento intangível, ao pagar a pensão alimentícia, direito este indisponível, não podendo ser renunciado ou cedido (artigo 2008.° do Código Civil), operando, no caso concreto, descontos sobre o excedente do salário mínimo, viola-se o princípio da dignidade humana e do mínimo de existência constitucionalmente consagrados.
VII - Com a norma do artigo 738.°, nº 6 do CPC, opera um balanceamento adequado entre o mínimo de existência constitucionalmente garantido ao progenitor, vinculado a um dever alimentar fundamental, e o próprio direito à sua dignidade e à sobrevivência dos filhos.
VIII- A Douta Decisão viola, assim, o preceituado nos artigos 736.°, n.º 1 e 738.°, n.º 6 do CPC.
IX - Pelos documentos juntos e não valorados, o Tribunal a quo deveria ter-se apercebido da factualidade supra descrita, absolvendo o executado do pedido.
X - Viola, igualmente, os princípios constitucionais da dignidade humana, do minino de existência e da equidade.
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o VI mui douto suprimento, em face de tudo o que ficou exposto, deverá o Venerando Tribunal dar provimento ao recurso, e em consequência:
Ordenar a revogação da decisão recorrida e, consequentemente, ordenar o levantamento da penhora do remanescente do salário mínimo nacional. “
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Foram apresentadas contra-alegações, onde a Recorrida pugna pela improcedência do Recurso.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, o Recorrente coloca a seguinte questão que importa apreciar:
- Saber se a penhora dos rendimentos do executado que incida sobre o excedente do Salário Mínimo Nacional viola o princípio da dignidade humana e do mínimo de existência constitucionalmente consagrados, tendo em conta que o executado paga pensão de alimentos aos seus filhos menores.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
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O Tribunal Recorrido considerou provados os seguintes factos:
“Factos provados com relevância para a decisão da causa.
1.-No dia 19-01-2016, o agente de execução procedeu à penhora de 1/3 do salário do executado, conforme documento junto a fls. 79 dos autos de execução, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2.- A entidade patronal do executado, denominada de EA, Distribuição Alimentar, Lda., foi notificada para proceder a essa penhora salarial no dia 31-12-2015, conforme ofício junto a fls. 80 dos autos de execução, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos, o que ainda não aconteceu até à presente data.
3.- O salário do executado, em 31-12-2015, era do valor total líquido de 539,12 euros, conforme recibo de vencimento junto a fls. 92 v dos autos de execução, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- O acordo de regulação do poder paternal junto a fls. 4 e 5 foi homologado por sentença transitada em julgado. “
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A estes factos importa ainda acrescentar o seguinte facto que se mostra provado por não ter sido impugnado pela Embargada (prova por acordo das partes- art. 574º, nº 2 do CPC; cfr. art. 607º, nº4 do CPC aplicável à presente decisão por remissão do art. 663º do CPC):
5. O executado recebe a título de compensação a quantia global de 274,77 € (duzentos e setenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos) mensais, pelo exercício de funções na Junta de freguesia de … – doc. nº 2 junto com o requerimento inicial- (item 10º) não impugnado pela parte contrária;
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Conforme resulta das posições do Recorrente e da Recorrida, a matéria de facto considerada como provada pelo Tribunal Recorrido não foi impugnada pelo mecanismo processualmente próprio, pelo que o presente Tribunal terá de se pronunciar sobre o objecto do Recurso, tendo em consideração apenas aquela factualidade.
Na verdade, embora a Recorrida tenha desenvolvido, nas contra-alegações que apresentou, considerações sobre a prova produzida, a verdade é que não chega a deduzir a pertinente Impugnação da matéria de facto, com obediência ao disposto no art. 640º do CPC, conformando-se, assim, com a decisão sobre a matéria de facto produzida pelo Tribunal Recorrido.
Nessa medida, não tendo sido deduzida Impugnação da matéria de facto, o presente Tribunal só poderia alterar (oficiosamente) a decisão sobre a matéria de facto de uma forma limitada(1).
Ora, como decorre da fundamentação de facto atrás mencionada, foi justamente por força de uma dessas situações (existir acordo das partes quanto a determinado facto) que o presente Tribunal procedeu a essa alteração.
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Aqui chegados, e dentro destes pressupostos fácticos, importa, pois, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a argumentação do Recorrente que contende com a questão da pretendida impenhorabilidade dos seus rendimentos, nomeadamente, da parte remanescente que exceda o valor do Salário Mínimo Nacional.
Entende o Recorrente que, tendo em consideração que paga pensão de alimentos aos seus filhos menores, tal penhora violará o princípio da dignidade humana e do mínimo de existência constitucionalmente consagrados.
Vejamos se assim se pode entender.
Em primeiro lugar, importa esclarecer os parâmetros fácticos que estão subjacentes à decisão recorrida (e à decisão que aqui se tem que proferir).
Conforme resulta da matéria de facto provada:
- o executado aufere rendimentos globais no montante de 813,89 € (539,12 € + 274,77 €);
- foi ordenada a penhora 1/3 do salário auferido pelo executado (dos 539, 12 €), ou seja, a quantia de 179,70 €;
- o executado está obrigado a pagar aos seus dois filhos menores a quantia de 350,00 € mensais (é o que resulta da matéria de facto provada não impugnada pelas partes neste Recurso).
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Pretende o Recorrente, perante esta factualidade, defender que a decisão proferida, mantendo a penhora de 1/3 do salário, atenta contra o disposto no art.º 784.º, n.º 1, al. a) do CPC, que prevê como fundamento da oposição a inadmissibilidade da penhora ou da extensão com que ela foi realizada, segmento que, cremos, é aquele ao abrigo do qual a oposição que ora se aprecia foi deduzida.
Mais especificamente entende o Recorrente que a decisão recorrida violará a disposição prevista no nº 6 do art.º 738.º do CPC (e o princípio da dignidade humana e do mínimo de existência, constitucionalmente consagrados).
Antes de nos pronunciarmos, em concreto, sobre esta disposição legal, importa fazer um enquadramento geral da penhora dos rendimentos (dos salários) e das regras legais correspondentes à impenhorabilidade de que beneficiam.
Como é sabido, dispõe o art. 735º do CPC que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que nos termos da lei substantiva respondem pela dívida exequenda (nº 1).
Existem, no entanto, bens do executado que se consideram absolutamente (art. 736º do CPC) ou relativamente (art. 737º do CPC) ou apenas parcialmente (art. 738º do CPC) impenhoráveis.
Ora, um dos bens do executado que é apenas parcialmente penhorável é precisamente o vencimento, salário, prestação periódica paga a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente de viação ou renda vitalícia ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante, prestações pecuniárias que só podem ser penhoradas até 1/3 do seu montante (v. nº 1 do art. 738º do CPC).
Estabelece, no entanto, o nº 3 do citado dispositivo que, em geral, a impenhorabilidade prescrita no nº 1 do mesmo preceito legal tem como “ … limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional… “(2).
Aqui chegados, importa, pois, ter em consideração o valor do Salário Mínimo Nacional- que vem sendo sucessivamente aprovado (actualizado) -, já que, como decorre do exposto, a penhora que vier a ser efectivada não pode conduzir a uma situação em que o executado passe a ter mensalmente um rendimento inferior ao aludido valor do salário mínimo nacional, sob pena de violação do princípio da dignidade humana (3).
São os seguintes os valores do salário mínimo nacional que aqui se têm de ter em consideração, tendo em conta a data da efectivação da penhora:
- no ano de 2016 foi de 530 euros (art. 2º do Decreto-Lei nº 254-A/2015);
- no ano de 2017 é de 557 euros (art. 2º do Decreto-Lei n.º 86-B/2016 que fixa o valor da “retribuição mínima mensal garantida”)
Aqui chegados, fácil será concluir, em abstracto, que, incidindo a penhora sobre o 1/3 dos rendimentos do executado (813,89 €), uma tal penhora apenas se poderá manter na medida em que não viole a regra da impenhorabilidade atrás explanada.
Ora, se durante o ano de 2016 o rendimento disponível que resultaria para o executado, após penhora de 1/3, seria de 542, 6 €- montante que é superior ao salário mínimo nacional então vigente- já no ano de 2017, tendo em conta o novo valor do salário mínimo nacional (557 euros), tal extensão da penhora, por força daquele limiar mínimo de impenhorabilidade, não se poderia manter.
Com efeito, quando decorrer da penhora que o 1/3 penhorável conduz a um rendimento do executado inferior ao valor do Salário Mínimo Nacional, deve-se entender que a parte impenhorável do rendimento se eleva, coincidindo com o valor deste.
Assim, considerar-se-ia que, no ano de 2017, apenas poderia ser penhorada a diferença entre o valor do rendimento global do executado e o valor do Salário Mínimo Nacional, sob pena de se ofender o princípio de uma sobrevivência minimamente digna.
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É esta, pois, a primeira conclusão que se tem que afirmar, em abstracto e em termos gerais (ainda sem ponderar a restante argumentação do Recorrente):
- por força da impenhorabilidade geral estabelecida pelo legislador a penhora do rendimento global do executado, durante o ano de 2017, teria de ser restringida de forma a garantir ao executado um rendimento disponível equivalente ao salário mínimo nacional – 557 €- ou seja, a penhora só pode incidir sobre o montante de rendimento remanescente do executado (256, 89 €)- o que se julga ter sido o sentido da decisão recorrida.
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Porém, importa atender que, no caso concreto, por ora, e tanto quanto decorre da matéria de facto, apenas se mostra ordenada a penhora de 1/3 do salário que o executado aufere na entidade patronal, EA Distribuição Alimentar, Lda., ou seja, só se mostra penhorada a quantia de 179,70 € (1/3 do salário - 539, 12 €).
Isto significa que, tendo em conta os rendimentos globais do executado (813, 89 €), a penhora não chegou a incidir sobre aquela fracção de penhora, com a consequência de o montante de rendimento disponível remanescente do executado, afinal, coincidir com o valor de 634,19 € (813, 89 € - 179, 70 €)- valor superior ao salário mínimo nacional.
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Apesar disso, o Recorrente, quer na oposição à penhora deduzida, quer no presente Recurso, pretende a isenção da penhora que incide sobre esse montante remanescente, apelando ao facto de se encontrar obrigado a pagar uma pensão de alimentos no montante de 350 € aos seus dois filhos menores que se encontram à guarda da respectiva progenitora.
A pretensão do executado tem por fundamento legal o que se estabelece no nº 6 do art. 738º do CPC (e os princípios constitucionais invocados), já que os referidos encargos com os seus filhos menores não podem ser deduzidos no rendimento penhorável para apurar dessa forma o valor líquido desse rendimento.
Na verdade, quando o art. 738º do CPC se refere a valor líquido dos rendimentos, está-se a referir ao valor daqueles, após os descontos legalmente obrigatórios.
Ou seja, o legislador não pretende aqui apontar para “… um valor líquido no plano pessoal, i. e., depois de deduzidas as despesas pessoais. Qualquer invocação de despesas pessoais deve ser feita a posteriori, nos estritos limites do… art. 738º, nº 6 do CPC…”(4).
Daí que é no âmbito deste dispositivo legal que a pretensão do Recorrente deverá ser ponderada.
Com efeito, estabelece-se no nº 6 do art. 738º do CPC que: “Ponderados o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, pode o juiz, excepcionalmente, e a requerimento do executado, reduzir, por período que considere razoável, a parte penhorável dos rendimentos e mesmo, por período não superior a um ano, isentá-lo da penhora”.
À luz deste preceito é possível, pois, ao executado obter a redução da parte penhorável dos seus rendimentos, e mesmo a isenção, ainda que neste caso por período que não pode exceder 1 ano (atente-se que, nesta ponderação, o Recorrente só poderia obter esta limitada isenção de penhora)
Tal faculdade, excepcional, depende de ponderação judicial, tendo o executado/ requerente que alegar e provar que as necessidades suas e do seu agregado familiar merecem sobrepor-se ao interesse do credor na satisfação do seu crédito, cuja origem e montante são igualmente factores a sopesar(5).
Também, Rui Pinto (6) acentua que a faculdade conferida pelo artigo 738.º, nº 6, do CPC, tem um carácter excepcional e que os factores que determinam a decisão do juiz são a natureza e o montante da dívida exequenda e as necessidades do executado e do seu agregado familiar.
Como diz Amâncio Ferreira (7), nestes casos, "...optou o legislador e justamente pelo sacrifício do direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for indispensável, mesmo totalmente, neste caso para evitar que o devedor se transforme num indigente a cargo da colectividade... ".
Da mesma forma, refere Remédio Marques que“…sendo a penhora uma «agressão» ao património do obrigado – seja ele devedor ou terceiro -, a afectação (e respectiva oneração) dos bens apreendidos às finalidades da acção executiva, a despeito de servir os interesses patrimoniais dos credores, não pode esquecer o interesse de o devedor (ou terceiro) não ser excessivamente onerado na fase da responsabilidade patrimonial” (8).
Procura-se, assim, introduzir neste preceito legal “…critérios de equidade, em abrandamento da rigidez dos critérios matemáticos legais…” (9).
Retornando ao caso dos autos, basta atentar na factualidade apurada para concluir que o Recorrente não fez prova de uma situação que justificasse a aplicação deste regime excepcional, posto que, tal como ficou decidido em primeira instância, amputados os rendimentos do executado da fracção penhorada (nos limites atrás definidos- que não atingem, repete-se, 1/3 dos rendimentos globais, mas sim 1/3 de um dos seus rendimentos), ainda assim fica garantida a satisfação das suas necessidades (e dos seus filhos menores).
Na verdade, entende-se que a penhora ordenada, mesmo tendo em conta o facto de o executado se encontrar obrigado a pagar a pensão de alimentos aos seus filhos menores – em valor que ele próprio fixou por acordo com a progenitora-, não onera excessivamente o seu património, nem conduz a que o mesmo se coloque numa situação de indigência (o que conduziria a considerar que, nestas circunstâncias, grande parte da população portuguesa- que, como é sabido, estatisticamente aufere o salário mínimo nacional- vivesse abaixo do limiar da dignidade humana).
Aliás que assim é, basta atender a que, se o executado não pagasse a pensão de alimentos devida aos seus filhos menores e contra ele fosse instaurada uma execução de alimentos, o limite mínimo de impenhorabilidade passaria a coincidir antes com o valor da pensão social do regime não contributivo (art. 738º, nº 4 do CPC) - que no presente momento se fixa em € 203,35 (art. 17º, nº1 da Portaria n.º 98/2017; mais € 1,01 do que em 2016) - e também aí não se poderiam considerar violados os princípios constitucionais invocados pelo Recorrente/executado.
Na verdade, estes princípios constitucionais (cfr. arts. 1º, 59º, nº 2, al. a) e 63º da CRP) no caso concreto (em que não está em causa um direito de crédito de alimentos) apenas impõem que não seja atingido o valor da “retribuição mínima mensal garantida” que, de acordo com a Jurisprudência Constitucional (e com a actual lei supra citada), deverão constituir o patamar mínimo de existência e da dignidade humana constitucionalmente consagrados.
Assim, “…num quadro de conflito de direitos, o direito do credor à oportuna realização do seu crédito e o direito do devedor à retenção de uma quantia que lhe garanta o mínimo de subsistência adequada à sua dignidade de pessoa, o legislador sacrificou o direito do credor, fazendo prevalecer a tutela da dignidade humana mas, na hipótese em apreço, não chega a ocorrer esse conflito de direitos e os dois direitos surgem compatibilizados: o do credor com a penhora de 1/3 do vencimento e o do devedor com a retenção de uma parcela do vencimento susceptível de assegurar, com esforço e sacrifício, sem ser, no entanto, excessivo e desproporcionado, o seu nível de subsistência básico…”(10).
Nestes termos, importa concluir pela improcedência da argumentação do Recorrente.
E isto até porque, conforme se referiu, decorre da decisão recorrida que o Tribunal mantém a penhora sobre o salário do executado, desde que essa penhora não imponha ao executado um rendimento mensal inferior ao valor de um salário mínimo nacional em vigor- o que, como se julga ter demonstrado, se verifica no caso concreto, tendo em conta que a penhora, efectivamente ordenada, recaiu sobre um terço (1/3) de um dos rendimentos do executado, mantendo o mesmo a disponibilidade do rendimento remanescente - 634,19 € (813, 89 € - 179, 70 €) (11) - valor superior ao salário mínimo nacional e que lhe permite assegurar, de uma forma minimamente condigna, as suas necessidades e o cumprimento da obrigação de alimentos a que se encontra obrigado.
Improcede, pois, em absoluto o Recurso interposto.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o Recurso interposto pelo Recorrente F. T..
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Custas pelo Recorrente (art. 527º do CPC).
Notifique.
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Guimarães, 11 de Julho de 2017

(Dr. Pedro Alexandre Damião e Cunha)
(Dra. Maria João Marques Pinto de Matos)


Consigna-se que a Exma. 2ª Adjunta votou em conformidade a decisão exarada supra, que só não assina por não se encontrar presente (art. 153º, nº 1, in fine, do C.P.C.).
(Dra. Rita Maria Pereira Romeira)


1. Sobre os casos em que tal alteração oficiosa pode ocorrer, v. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo CPC”, págs. 241 e ss., explicitando o Autor os seguintes exemplos: “… quando o Tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de determinado meio de prova…” (por ex. um documento com valor probatório pleno); “quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358º do CC e arts. 484º, nº1 e 463º do CPC) ou tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º, nº 2 do CPC) ”; “ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente” (por ex. presunção judicial ou depoimento testemunhal nos termos dos arts. 351 e 393º do CC); “Em qualquer destes casos, a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo da sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte… “; finalmente, acrescenta este autor que “também não oferece dúvidas a possibilidade… de se modificar a decisão sobre a matéria de facto quando for apresentada pelo Recorrente documento superveniente que imponha decisão”.
2. Na sequência aliás de acs. do Tribunal Constitucional – por ex. o Ac. do Tribunal Constitucional nº 177/02 de 2/7/02 onde se decidiu com força obrigatória geral que a penhora de rendimentos cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana ( in DR I série-A de 2.7.02 , pág. 5152), v. também, o Ac. Do TConstitucional 96/2004 de 1 de Abril; mais recentemente, v., no entanto, o ac. do mesmo Tribunal nº 770/2014 de 12.11.2014 que não julgou inconstitucional “a norma extraída da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 de prestações periódicas (limites à penhorabilidade de pensões ou prestações sociais)”.
3. Segundo o Prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume III, pág. 357, a propósito dos correspondentes preceitos legais do CPC anterior: "A base de cálculo da parte impenhorável das prestações periódicas abrangidas pelo artigo continua a ser a fracção de dois terços, pelo que só o terço restante dessas prestações está sujeito a penhora. Uma vez, porém, determinado o montante impenhorável, há que confrontá-lo com os valores dependentes do salário mínimo nacional à data de cada apreensão, coincidente com a data do vencimento da prestação (arts. 860-1 e 861-1). Quando os 2/3 excedam o valor de três salários mínimos nacionais, a impenhorabilidade limita-se a este valor, sendo penhorável, juntamente com o terço restante, a parte dos 2/3 que o exceda. Em compensação, quando os 2/3 sejam inferiores ao valor de um salário mínimo nacional, a parte impenhorável do rendimento eleva-se, coincidindo com o valor deste, desde que se verifiquem dois requisitos: o executado não ter outro rendimento; o crédito exequendo não ser de alimentos. O primeiro requisito entronca na própria razão de ser da salvaguarda constituída pelo artigo 824.°: trata-se de garantir a satisfação das necessidades vitais do executado, que, sendo de outro modo garantidas não carecem da mesma protecção; por isso mesmo, é preciso que o outro rendimento existente subsista (não seja penhorado) e que adicionado ao montante impenhorável, perfaça ou exceda o valor de um salário mínimo nacional".
4. Rui Pinto, in “Manual Da Execução E Despejo”, pág. 509;
5. V. o ac. da RC 21.10.2014 (relator: Maria Domingas Simões), in dgsi.pt.
6. In “Manual Da Execução E Despejo”, págs. 515 a 517.
7. In “Curso de processo de Execução”, pág. 209.
8. In “Curso de Processo executivo comum”, pág. 184; Veja-se no mesmo sentido o Ac da RL de 14.07.2011 (relator: Amélia Ribeiro), in dgsi.pt.
9. Como refere Lebre de Freitas, in “ A acção executiva à luz do CPC de 2013”, pág. 250, nota 26.
10. V. o ac. da RP de 22.2.2011 (relator: Cecília Agante), in dgsi.pt.
11. Ou para usar o cálculo referido em nota (3) pelo Prof. Lebre de Freitas: “… por isso mesmo, é preciso que o outro rendimento existente subsista (não seja penhorado) e que adicionado ao montante impenhorável, perfaça ou exceda o valor de um salário mínimo nacional"- ou seja, no caso concreto, teríamos a seguinte operação matemática: 359, 42 € (rendimento impenhorável) + 274,77 € (outro rendimento) = 634, 19 €, valor superior ao do SMN.