Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
30/08.4TBCMN.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
NULIDADE
FORÇA PROBATÓRIA
PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- As escrituras, sendo é certo documentos autênticos, não provam a factualidade declarada pelos outorgantes. Apenas provam que os declarantes proferiram tais declarações.

II - A força probatória dos documentos autênticos consta do art. 371º do CC. As escrituras públicas fazem prova plena apenas dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e dos factos nelas atestados como percepcionados pela mesma autoridade.

III - Tal força probatória não se estende à veracidade ou verosimilhança, ou seja a correspondência com a realidade dos factos constantes das declarações.
IV - Relativamente aos factos de que não façam prova plena, os documentos estão sujeitos ao princípio da livre apreciação pelo tribunal – artº 366º do CC. E não constituem sequer confissão.
V - O artigo 236º do CC, consagra um critério objectivo de determinação do sentido juridicamente relevante (teoria da impressão do destinatário), mitigado embora com concessões subjectivistas – parte final do nº 1 e nº 2 do normativo. Visou-se com a consagração de um critério objectivo proteger a “legitima confiança do declaratório e os interesses gerais do comércio jurídico “ .
VI - No que respeita aos elementos a atender e à sua interpretação, deve o interprete pautar-se pela “capacidade e diligência” de um declaratário normal, de um homem de mediana instrução, sagacidade e diligência, conhecedor dos concretos factos circunstanciais.
VII - Como elementos atendíveis, temos além da letra da lei, o conjunto ou totalidade da declaração, podendo ocorrer que outras cláusulas esclareçam o sentido pretendido; o fim ou objetivo do negócio, que ajuda a esclarece o horizonte em que o declarante se moveu; as negociações prévias; o modo como as partes deram execução ao negócio, entre outras circunstâncias.
VIII - Tais circunstancialismos podem ser provados com recurso a qualquer meio de prova, designadamente testemunhal, conforme resulta do artigo 393, nº 1 a contrário e 3 do CC. O que a lei não admite é a prova por via testemunhal da declaração negocial que deva ser reduzida a escrito ou necessite de ser provada por escrito, não a sua interpretação.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.


FR e MULHER MG, intentaram a presente ação declarativa, com processo ordinário, contra, MB; MO; “CANTON…LLC”, representada em Portugal pelo DR. R…, pedindo:
a) Se declare nula e de nenhum efeito a escritura pública de compra e venda celebrada em três de julho de dois mil e sete, no Cartório Notarial sito na Rua Duques de Barcelos n° 2, perante o notário Dr. Jorge Carlos Serro da Costa e Silva, por manifesta falta de legitimidade do outorgante vendedor, dada a natureza apócrifa dos documentos nos quais aquela se ancila (Procuração e Substabelecimento)
b) Concomitantemente, seja ordenada à Conservatória do Registo Predial de Caminha o cancelamento do registo efetuado a favor da 3” ré.
Alegam, sumariamente:
O réu MB, por via de negócios relacionados com o fornecimento de carnes para comercialização nos seus estabelecimentos tinha contraído junto dos Autores uma dívida comercial no valor de € 132.372,80.
O 1º réu propôs aos autores cumprir a obrigação a que estava adstrito, através da figura jurídica – dação em pagamento -, tendo, para tanto, formalizado o negócio através de escritura pública celebrada no dia dezassete de setembro de dois mil e quatro, no Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, pela qual transmitiu aos autores o direito de propriedade sobre o prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato, sito no Lugar de Arnado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Reg. Predial de Caminha, sob o número oitenta e cinco/Orbacém, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1…
Acontece que o lº réu, logo após ter outorgado a escritura de dação em pagamento, solicitou aos autores a outorga de uma procuração a seu favor relativamente ao prédio rústico então transmitido, justificando a outorga de tal procuração, com a necessidade de resolver questões fiscais relacionadas com o imóvel.
Na posse dessa procuração, e com base nos poderes que na mesma lhe foram conferidos, substabeleceu esses poderes ao 2º réu MO e este, no dia 3 de julho de 2007, no Cartório Notarial de Barcelos, celebrou escritura de compra e venda, pela qual vendeu aquele prédio que havia dado em pagamento à empresa 3ª ré.
Na verdade, os autores, outorgaram a procuração a favor do 1º réu apenas e só para lhe conceder poderes para os representar junto das instâncias fiscais mas, ao que tudo indicia, tal procuração conferia poderes ao 1º réu para em representação dos autores, vender o prédio rústico então adquirido pela via da figura jurídica da dação em pagamento.
Os autores, declarantes na supra aludida procuração, não tinham consciência de fazer aquela declaração negocial nem do seu conteúdo.
Nestas circunstâncias, é obvio que a declaração dos autores não produziu qualquer efeito jurídico, o 1° réu não tinha, nem tem, legitimidade para outorgar, em representação dos autores na escritura de compra e venda do prédio rústico objeto da presente demanda. Não tinha legitimidade para outorgar e muito menos podia substabelecer no 2° réu poderes que, objetivamente, não lhe tinham sido conferidos pelos autores.
Invocam a nulidade da escritura de compra e venda por manifesta falta de legitimidade do vendedor.
Citados, o 1º réu contestou.
Impugna, motivadamente, a matéria alegada pelos autores quanto à invocada nulidade do contrato de compra e venda em que atuou, através de substabelecido, na qualidade de procurador dos autores e no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos por estes pela procuração em causa, que considera válida e correspondente à vontade consciente daqueles.
Afirma que, no ano de 2004, corria o sério risco de ficar a figurar como devedor a algumas pessoas. Assim, devido única e exclusivamente a tal facto, e por mera cautela, acordou com os AA. em transferir para estes a propriedade do prédio rústico referenciado.
Por acordo entre AA. e o réu, aqueles outorgaram a este a procuração em causa, conferindo poderes ao réu para proceder à venda do imóvel, dando ainda poderes para substabelecer. Nesse mesmo dia os AA. celebraram com o réu contrato promessa de compra e venda, pelo qual aqueles prometeram vender ao réu o prédio em questão, declarando já ter recebido o preço na sua totalidade.
Resolveu depois o réu proceder à venda do prédio em questão à 3ª ré, tendo toda a legitimidade e poderes para o fazer.
Conclui pela improcedência da ação, com a absolvição do pedido. Invoca a ilegitimidade do 2º réu para pugnar nesta ação.
Pede a condenação dos autores, como litigantes de má fé, e multa e indemnização a favor do réu.
Os autores replicaram, impugnam a matéria de exceção alegada pelos réus.
Concluem como na petição inicial.
Realizado o julgamento o Mmo juiz respondeu à matéria de facto e proferiu sentença decidindo absolver os RR. dos pedidos.

Inconformados com o decidido interpuseram os AA. recurso de apelação.
Conclusões do recurso:
· Em suma, o objeto do recurso ora interposto confina-se a saber se a procuração outorgada pelos Autores/Recorrentes a favor do Réu/Recorrido, através da qual aqueles conferiram a este poderes para vender, onerar e/ou hipotecar o prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato, sito no Lugar de Arnado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Reg. Predial de Caminha, sob o número…/Orbacém, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 177, padece de vícios de natureza substantiva suscetíveis de determinar a ineficácia jurídica de tal procuração.
· Entendeu o Meritíssimo Juiz do tribunal à quo que, o texto ínsito em tal procuração corresponde à vontade real dos outorgantes,

· Com efeito, a vontade manifestada pelos Autores no texto que integra a procuração em causa, não corresponde, de todo, à vontade real destes. Jamais os Autores/Recorrentes tiveram consciência do conteúdo do texto ínsito na procuração outorgada a favor do Réu/Recorrido.
· Na verdade o Réu/Recorrido, ardilosamente, urdiu uma trama, através da qual convenceu os Autores/recorrentes a outorgar a procuração em causa, obtendo, por esta via, um enriquecimento ilegítimo que o direito não admite e a moral reprova.
· O tribunal à quo, entendeu que não foi produzida prova nos autos suscetível de concluir que os Autores não tinham consciência do conteúdo da declaração constante da procuração outorgada a favor do Réu/Recorrente, sustentando tal entendimento, na tese seguinte: «A regra dos negócios jurídicos vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante».
· Pois bem, no caso em apreço, a tese gizada pelo tribunal à quo, confirma, justamente, a falta de consciência dos Autores no que tange ao conteúdo da declaração negocial constante na procuração.
· Na verdade, um declaratário normal, colocado na posição real dos declarantes – in casu os Autores – jamais poderia deduzir que o comportamento destes aquando da declaração negocial – procuração – correspondia à sua vontade real.
· Tal declaração negocial apenas ocorreu porque os declarantes não tinham consciência do conteúdo da mesma.
· Com efeito, utilizando a figura jurídica do bónus paterfamilias, não é, de todo, credível que, alguém, meramente instruído e diligente, no mesmo dia, hora e local que obtém a cobrança de uma dívida através da figura jurídica da dação em cumprimento de determinado prédio rústico, nesse mesmo dia, nessa mesma hora e nesse mesmo local, outorgasse poderes àquele que saldou a dívida, para vender, onerar e/ou hipotecar, justamente, o bem objeto da dação em cumprimento.
· Tal situação apenas é concebível se os declarantes, in casu os Autores, não tiverem a consciência do conteúdo da declaração negocial ou forem coagidos pela força física a emiti-la.
· No caso sub júdice, é obvio que os declarantes não foram coagidos pela força física a outorgar a procuração.
· Sucede, porém, que o beneficiário da procuração, o Réu/ Recorrido, Manuel Borges, ardilosamente e utilizando em seu beneficio o facto de os Autores/Recorrentes não dominarem, minimamente, a língua de Camões, induziu em erro os Autores convencendo-os a outorgar procuração a seu favor, bem sabendo que aqueles não tinham consciência do conteúdo ínsito na mesma.
· Os Autores/Recorrentes estavam e foram convencidos pelo Réu/Recorrido que a procuração em causa tinha apenas como objetivo conferir poderes para os representar junto da Administração Fiscal.
· Destarte, o Réu/Recorrido, «matou vários coelhos com uma só cajadada», livrou-se de uma dívida de 132.272,80 € (cento e trinta e dois mil duzentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos) recuperou o prédio rústico objeto da dação em pagamento e locupletou-se com a quantia em dívida, obtendo, assim, um enriquecimento ilegítimo à custa dos Autores.
· E, tudo isto, a coberto de um formalismo legal – procuração – analisada pelo tribunal à quo apenas à luz da literalidade constante do texto.
Em contra-alegações sustenta-se a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos dos Ex.mos Srs. Adjuntos há que conhecer do recurso.

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Vêm considerados provados os seguintes factos pelo Tribunal ““a quo””:

A) No dia 17 de setembro de 2004, no Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, MB e mulher MB, como primeiros outorgantes, declararam que devem ao segundo outorgante, FR, a quantia de cento e trinta dois mil trezentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos respeitante ao fornecimento de carnes para comercialização nos seus estabelecimentos. Que em cumprimento da obrigação de restituir, e não dispondo eles da referida importância, e em pagamento de tal dívida, através da figura da dação em cumprimento, dão e transmitem ao segundo outorgante o seguinte imóvel: prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato, sito no Lugar de Arnado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Reg. Predial de Caminha, sob o número…/Orbacém, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1…. O segundo outorgante declarou que aceita a dação em cumprimento, nos termos exarados, ficando, assim, extinta a mencionada dívida, nos termos da cópia da certidão da escritura que se encontra junta aos autos a fls. 14 a 17 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
B) Na Conservatória do Registo Predial de Caminha, sob o nº 85, da freguesia de Orbacém, encontra-se descrito o prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato, sito no Lugar de Arnado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1…, em nome de “Canton… LLC”, com sede em 46,…New York, Estados Unidos da América, sobre o qual se encontram registadas duas penhoras;
C) No dia 3 de julho de 2007, no Cartório Notarial do Lic. Jorge Carlos Serro da Costa e Silva, MO, outorgando como procurador substabelecido de FR e mulher MG, e RC, na qualidade de procurador e em representação da sociedade com a firma “Canton… LLC”, com sede em 46…New York, Estados Unidos da América, declararam: o primeiro, que em nome dos seus constituintes, pelo preço de cento e trinta e dois mil trezentos e sessenta e dois euros e oitenta cêntimos, que já recebeu, vende à representada do segundo outorgante o seguinte imóvel: prédio rústico constituído por terra de mato, cultivo e pinhal, sito no Lugar de Arnado ou Armado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1… e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número… /Orbacém, e o segundo, na qualidade em que intervém, que para a sociedade sua representada aceita esse contrato, nos termos da cópia da certidão da escritura que se encontra junta aos autos a fls. 23 e 24 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
D) No dia 2 de julho de 2007, no Cartório Notarial do Lic. Jorge Carlos Serro da Costa e Silva, MB declarou substabelecer, com reserva, em MO, os poderes de vender o prédio rústico constituído por terra de mato, cultivo e pinhal, sito no Lugar de Arnado ou Armado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1…e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número…/Orbacém, que lhe foram conferidos por FR e mulher MG, por procuração por eles outorgada em 17 de setembro de 2004, no extinto Primeiro Cartório Notaria de Barcelos, nos termos da cópia do documento que se encontra junto aos autos a fls. 25 e 26 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
E) Através de procuração outorgada no Primeiro Cartório Notarial de Barcelos, no dia 17 de setembro de 2004, FR e mulher MG, declararam que, com a faculdade de substabelecer, constituem seu bastante procurador MB, ao qual conferem poderes especiais para vender, onerar e /ou hipotecar mesmo em garantia de empréstimos contraídos pelo próprio mandatário, pelo preço, condições e obrigações que entender convenientes, o prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato sito no Lugar de Arnado ou Armado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1…e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número …/Orbacém…, nos termos da cópia do documento que se encontra junto aos autos a fls. 55 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
F) No ano de 2004, o réu MB acordou com os autores, transferir para estes a titularidade do direito de propriedade que detinha sobre o bem descrito no artigo 6º da p.i.;
G) Na sequência desse acordo, foi celebrado o negócio formalizado através do doc. referido em A);
H) Pelo documento que denominaram de Contrato promessa de Compra e Venda, como primeiro pactuante, FR e mulher MG declararam prometer vender ao segundo pactuante, MB, o seguinte prédio, com todas as suas pertenças, prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato sito no Lugar de Arnado ou Armado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1… e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número…/Orbacém. Que o preço da venda é de cento e trinta e dois mil trezentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos, que já receberam na totalidade do segundo pactuante, de que dão a respetiva quitação,…, nos termos da cópia do documento que se encontra junto aos autos a fls. 56 e 57 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.

Das respostas aos números da base instrutória:

1) -Quesito 1º; Provado apenas o que consta da al. A) da matéria assente. -Quesito 1º
2) Provado apenas o que consta das als. A), F) e G) da matéria assente. -Quesito 2º
3) Provado apenas, que logo após a outorga do documento descrito em A) foi outorgado o documento referido em E). -Quesito 3º
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Conhecendo dos recursos:
Nos termos dos artigos 684º, n.º 3 e 690º do CPC o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Os recorrentes questionam a eficácia da procuração que serviu de base à escritura que pretendem seja declarada nula, e colocam a questão da interpretação dessa mesma procuração.
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Sustentam os recorrentes, com base no teor da escritura de dação em cumprimento que celebraram com o Réu MB, que demonstraram que aquele lhes devia a quantia de 132.372,80 € e que para pagamento de tal quantia este lhes transferiu a propriedade do imóvel em causa.
Mais sustentam que a procuração que serviu para a celebração da escritura cuja declaração de nulidade pretendem resultou de um ardil do referido réu, havendo discrepância entre a vontade real e a vontade declarada. Referem não ser credível que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, possa deduzir que a vontade dos declarantes manifestada no conteúdo da procuração corresponda à sua vontade real. Invocam desconhecimento da língua, e o convencimento, resultante do ardil, de que a procuração se destinava a obviar a questões de natureza fiscal.
Invocam o artigo 246 do CC. e referem não ser de todo entendível para aquele que, em linguagem jurídica se denomina por bónus pater familias que, alguém, no mesmo dia, na mesma hora e no mesmo local, aceite como forma de pagamento de dívida confessa a dação de determinado prédio rústico e, simultaneamente, outorgue procuração a favor do devedor confesso conferindo-lhe poderes para em seu nome e representação vender, onerar e/ou hipotecar o prédio objeto da dação em cumprimento.
Vejamos.
Importa começar por esclarecer se está ou não demonstrada nos autos a dívida do réu Borges para com os AA., e ainda se para pagamento desse dívida foi acordada a dação em pagamento (como negócio real, e não simulado, como é versão dos RR.).
No item 1 da base instrutória perguntava-se se “por via de negócios relacionados com fornecimento de carnes para comercialização nos seus estabelecimentos, o réu MB tinha contraído junto dos autores, uma dívida no montante de 132.372,80 €”.
Obteve como resposta; “ provado apenas o que consta da alínea A) da matéria assente”.
No item 2 perguntava-se se o acordo descrito em F) e G) constitui a forma de pagamento dessa dívida, obtendo resposta semelhante (provado apenas o que consta das als. A), F) e G) da matéria assente.
Resultou assim não demonstrada nos autos, quer a dívida quer o acordo (independentemente de a dívida existir ou não, sendo que no caso o ónus de prova competia aos autores).
Os recorrentes pretendem que aquela factualidade resulta da escritura de dação em pagamento.
Consta da escritura celebrada a 17 de setembro de 2004, em que são primeiros outorgantes MB e mulher Maria, e segundo outorgante o autor:
“Declararam os primeiros outorgantes:
Que devem ao segundo outorgante, FR, a quantia de cento e trinta dois mil trezentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos respeitante ao fornecimento de carnes para comercialização nos seus estabelecimentos.
Que em cumprimento da obrigação de restituir, e não dispondo eles da referida importância, e em pagamento de tal dívida, através da figura da dação em cumprimento, dão e transmitem ao segundo outorgante o seguinte imóvel:
prédio rústico constituído por cultura, pinhal, pastagem e mato, sito no Lugar de Arnado, freguesia de Orbacém, concelho de Caminha, descrito na Conservatória do Reg. Predial de Caminha, sob o número…/Orbacém, inscrito na matriz predial rústica sob o art. 1….
Declarou o segundo outorgante:
Que aceita a dação em cumprimento, nos termos exarados, ficando assim extinta a mencionada dívida…”
As escrituras, sendo é certo documentos autênticos, não provam a factualidade declarada pelos outorgantes. Apenas provam que os declarantes proferiram tais declarações.
A força probatória dos documentos autênticos consta do art. 371 do CC.. As escrituras públicas fazem prova plena apenas dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e dos factos nelas atestados como percepcionados pela mesma autoridade.
Tal força probatória não se estende à veracidade ou verosimilhança, ou seja a correspondência com a realidade dos factos constantes das declarações.
Fazem consequentemente prova apenas de que as pessoas intervenientes nas ditas escrituras declararam a existência daquela dívida e mais declararam que não dispondo da referida importância, e em pagamento de tal dívida, através da figura da dação em cumprimento, dão e transmitem ao segundo outorgante o imóvel.
Relativamente aos factos de que não façam prova plena, os documentos estão sujeitos ao princípio da livre apreciação pelo tribunal – Artºs 366 do CC.
E não constituem sequer confissão.
Claro que os documentos assinados, nos termos do artigo 374, 1 do CC., logo que estabelecida a sua autenticidade nos termos do nº 1 do artigo 376 do CC fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao subscritor. Nos termos do nº 2 do mesmo artigo os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
O nº 2 do artigo 376 do CC é uma aplicação das regras relativas à confissão –daí apenas valer relativamente à pessoa a quem a confissão é dirigida, nos termos consagrados no artigo 358, 2 do CC -.
Assim, aquela força probatória (por confissão) apenas se verifica em relação ao destinatário da declaração, e assim é porque a mesma decorre do facto de se estar perante uma verdadeira confissão, daí, como já referido, que a mesma apenas se verifica em relação ao declaratário e não relativamente a terceiros, nos termos do artigo 358, 2 do CC. NS. Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, 2ª ed., Almedina, 1984, pág., 55 e 56; Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, Almedina, 2004, pág. 69 em nota; Ac. RL de 29/1/04, Col. Jur., T. I, pág. 93ss.
No presente caso, o recorrente não é destinatário de declaração confessória, pelo que não se verifica qualquer confissão, o destinatário da declaração é o oficial documentador.
Assim e quanto a esta factualidade, carecem de razão os recorrentes.
Vejamos quanto à procuração. Invoca-se desconformidade entre a vontade e o que consta da procuração. Contudo nenhuma prova se logrou nesse sentido. Como é bom de ver, a expressão constante da procuração “ conferem poderes especiais para vender, onerar e/ou hipotecar…” é compreensível para um cidadão Espanhol, dada a semelhança. Na língua de nossos vizinhos será qualquer coisa como; “ otorgar poderes especiales para vender, dar en prenda y / o hipoteca “, ou outra de cariz semelhante.
Os termos da procuração são claros. Consta mesmo da procuração que o mandatário pode hipotecar em garantia de empréstimos por si contraídos e que poderá efetuar negócio consigo mesmo.
A questão colocada prende-se pois com o sentido juridicamente relevante, a atribuir à declaração.
O artigo 236 do CC, consagra um critério objetivo de determinação do sentido juridicamente relevante (teoria da impressão do destinatário), mitigado embora com concessões subjetivistas – parte final do nº 1 e nº 2 do normativo –. Visou-se com a consagração de um critério objetivo proteger a “legitima confiança do declaratório e os interesses gerais do comércio jurídico “ – Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Almedina, 1974, Vol. II, pág. 312 –.
São aliás estes motivações que justificam o valor decisivo atribuído à “vontade real” quando conhecida pelo declaratário, por não intervirem então tais motivos. Assim é que nos termos do nº 2 do citado artigo, a declaração vale com o sentido correspondente à vontade real das partes, se tal vontade for conhecida pelo declaratário, com a ressalva dos nºs 1 e 2 do artigo 238.
Não se verificando tal circunstância (nada vem demonstrado nesse sentido), nos termos do nº 1 do mesmo preceito, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
Tratando-se de negócios formais, como é o caso, nos termos do artigo 238 do CC., o sentido juridicamente relevante que resulte da aplicação das regras do artigo 236 do CC, não pode valer se não tiver um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso, a menos que corresponda à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade.
Pode então dizer-se que por regra prevalecerá a vontade real do declarante, sempre que conhecida do declaratário - Ac. STJ de 14/1/97, Col. Jur., T. I, 47 -. E tal vontade prevalecerá, ainda que não tenha correspondência no texto da declaração – Falsa demonstratio non nocet -, a menos que se trate de negócios formais e as razões determinantes da forma se oponham a tal validade.
Faltando tal requisito deve apurar-se qual a vontade juridicamente decisiva mediante um processo hermenêutico que partindo da letra da declaração, e levando em consideração todo um material de factos circunstanciais, evidencie o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, e é, conhecedor de todos esses factos, deduziria do comportamento do declarante.
No que respeita aos elementos a atender e à sua interpretação, deve o interprete pautar-se pela “capacidade e diligência” de um declaratário normal, de um homem de mediana instrução, sagacidade e diligência, conhecedor dos concretos factos circunstanciais. Deve atender-se aos elementos e circunstâncias que seria de esperar um declaratário normal atendesse, dando-lhes a interpretação que este lhe daria.
Como elementos atendíveis, temos além da letra da lei, o conjunto ou totalidade da declaração, podendo ocorrer que outras cláusulas esclareçam o sentido pretendido; o fim ou objetivo do negócio, que ajuda a esclarece o horizonte em que o declarante se moveu; as negociações prévias; o modo como as partes deram execução ao negócio, entre outras circunstâncias.
Sobre a atendibilidade de todo o circunstancialismo a que um declaratário normal atenderia, negociações prévias, interesses em jogo, finalidade prosseguida pelo declarante, conduta posterior das partes na execução do negócio Vd. RL de 24/6/99, Col. Jur., 1999, 3, 125.
Tais circunstancialismos podem ser provados com recurso a qualquer meio de prova, designadamente testemunhal, conforme resulta do artigo 393, nº 1 a contrário e 3 do CC. O que a lei não admite é a prova por via testemunhal da declaração negocial que deva ser reduzida a escrito ou necessite de ser provada por escrito, não a sua interpretação.
Sobre a admissibilidade de recurso a elementos extrínsecos para interpretação de um contrato formal - Ac. do STJ de 31.10.79, BMJ nº 290, pág. 340.
No caso dos autos, além dos termos claros da procuração, temos alinda como elemento extrínseco e que ajuda a interpretar esta, o contrato promessa celebrado no mesmo dia. Na verdade, quer a escritura de dação, quer a procuração quer o contrato promessa foram celebrados no mesmo dia, o que assume particular relevo para interpretação do sentido da procuração. Neste contrato promessa de compra e venda, declara o autor e esposa prometer vender ao segundo outorgante, o Réu MB, aquele imóvel, e mais declaram que já receberam a totalidade do preço, dando quitação.
Com estes elementos, não pode senão concluir-se pela validade e eficácia da aludida procuração. Aliás que sentido teria a presença da ré (ver o reconhecimento presencial das assinaturas) quando a mesma não interveio na dação em pagamento?
Os autores invocam a sua falta de consciência ao emitirem a declaração, a sua incapacidade de entender o respetivo sentido, a falta de livre exercício da sua vontade, a impossibilidade de a procuração consubstanciar o mandato - artigos 246º, 257º e 1157º do Código Civil.
Ora, os autores nenhuma prova fizeram no sentido de demonstrar que não tinham consciência da declaração que emitiram quando da outorga do instrumento de procuração, competindo-lhes o ónus da prova – artigo 342 do CC.
Improcede a ação na totalidade, sendo de confirmar o decidido.
DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas pelo recorrente.
Guimarães, 26.01.2012
Antero Veiga
Maria Luísa Duarte
Raquel Rego