Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
160/08.2GAFLG.G2
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: CÚMULO DE PENAS
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – A sentença referente a um concurso de crimes de conhecimento superveniente deve ser elaborada, como qualquer outra sentença, tendo em atenção o disposto no art. 374 do CPP, não se podendo limitar a enunciados genéricos ou fórmulas tabelares. Deve permitir alcançar a gravidade dos factos, numa perspetiva de conjunto, global, evidenciando a personalidade do agente.
II – Não sendo exigida a menção exaustiva dos factos de cada uma das sentenças, é necessário que se proceda a uma explicitação por súmula dos factos das condenações e dos que se provaram na audiência de julgamento do concurso de crimes.
III – A não indicação desses requisitos importa a nulidade da sentença prevista no art. 379 nº 1 al. a) do CPP, por referência ao art. 374 nº 2 do mesmo código.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I – RELATÓRIO
O arguido Pedro M..., identificado nos autos, veio interpor recurso do acórdão do tribunal colectivo, proferido em 18/7/2013 e depositado em 19/7/2013, que, no âmbito do proc. n.º160/08.2GAFLG do 1ºJuízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, procedeu à elaboração do cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos n.º374/09.8GAFLG do 2ºJuizo do Tribunal Judicial de Felgueiras, 474/07.9GAFAF do 3ºJuizo do Tribunal Judicial de Fafe e três penas parcelares do presente processo, aplicando uma pena de 5 anos de prisão e do cúmulo jurídico de duas penas parcelares aplicadas nestes autos n.º160/08.2, aplicando a pena de 4 anos de prisão.
Nas conclusões do recurso, que delimitam o seu âmbito, foram suscitadas as seguintes questões:
-a existência de erros na fundamentação da decisão recorrida, dado que, ao contrário do que na mesma se refere, o trânsito em julgado do processo n.º374/09.8 é anterior ao do processo n.º1050/08 e ao do processo n.º474/07 e a condenação ocorrida no âmbito do presente processo n.º160/08.2 teve lugar em 6/6/2012 e não 18/8/2013, o que, na perspectiva do recorrente, se traduz em vício de contradição insanável na fundamentação – art.410.º n.º1 al.b) do C.P.Penal;
-verificação dos pressupostos para suspensão da execução das penas por verificação de um juízo de prognose favorável.
O Ministério Público junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, defendendo a confirmação da decisão recorrida [fls.1171 a 1178].
Remetidos os autos ao tribunal da relação, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, em que se pronunciou pela improcedência do recurso [fls.1189 a 1193].
Não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos levados à conferência.
Cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Factos que serviram de base à decisão recorrida e respectiva fundamentação:
«-Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo n.º 160/08.2GAFLG do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, em que, entre outros, é arguido Pedro M..., foi o mesmo condenado (cfr. fls. 721 e ss.), por acórdão proferido a 18.01.2012, transitado em julgado a 18.08.2013, na pena única de cúmulo jurídico de 6 anos de prisão efectiva, pela prática:
a) de 1 crime de roubo agravado, na forma consumada, por factos praticados no dia 24.02.2008, com pena parcelar de 3 anos e 6 meses de prisão;
b) de 1 crime de roubo agravado, na forma consumada, por factos praticados no dia 31.03.2008, com pena parcelar de 3 anos e 6 meses de prisão;
c) de 1 crime de resistência e coacção sobre funcionário, por factos praticados no dia 31.03.2008, com pena parcelar de 8 meses de prisão;
d) e e) de 2 crimes de roubo agravado, na forma consumada, por factos praticados no dia 12.08.2009, com penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão cada.
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Da consulta do Certificado de Registo Criminal e das certidões de decisões judiciais juntas aos autos, verifica-se que o arguido sofreu várias condenações por crimes praticados antes da decisão proferida nos presentes autos, que com esta se encontram em concurso:
1) No processo sumário n.º 374/09.8GAFLG do 2º Juízo de Felgueiras (cfr. fls. 911 e ss. e certidão junta):
Sentença proferida em 02/06/2009, transitada em julgado em 02/07/2009;
Data da prática dos factos: 23/04/2009;
Pena: 4 meses de prisão, substituída por 28 períodos de 48 horas cada, de prisão por dias livres;
Crime: condução sem habilitação legal;
Estado: pendente;
2) No processo comum singular n.º 1050/08.4GAFLG do 2º Juízo de Felgueiras (cfr. fls. 912 e ss. e certidão junta):
Sentença proferida em 05/05/2009, transitada em julgado em 30/09/2009;
Data da prática dos factos: 14/10/2008;
Pena: 200 dias de multa, convertidos em 133 dias de prisão subsidiária;
Crime: detenção de arma proibida;
Estado: extinta pelo cumprimento;
3) No processo comum singular n.º 474/07.9GAFAF do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe (cfr. fls. 915 e 971 e ss.):
Sentença proferida em 08/11/2010, transitada em julgado em 05/01/2011;
Data da prática dos factos: 28/04/2007;
Pena: 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
Estado: pendente.
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Factos que, para além dos apurados nas decisões condenatórias a que se reportam as penas em concurso, relevam ao apuramento da medida da pena:
- O arguido está preso no Estabelecimento Prisional de Peniche desde 10.04.2013;
- Não tem tido problemas disciplinares e a sua integração decorreu sem incidentes;
- Inscreveu-se na escola do Estabelecimento Prisional, e manifesta interesse em trabalhar;
- O arguido já tinha cumprido, anteriormente aos factos a que se reportam as condenações em concurso, pena de prisão efectiva.
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Motivação dos factos apurados
A convicção do tribunal no apuramento dos factos supra enunciados fundou-se nas declarações prestadas pelo arguido na audiência destinada à realização do cúmulo jurídico.
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Apreciação
É entendimento pacífico que o âmbito do recurso está delimitado pelo teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, como são as nulidades da sentença [É entendimento generalizado da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que as nulidades da sentença são conhecidas oficiosamente - v., entre outros, Ac STJ de 2.02.2005, CJ STJ I/p. 189, Ac STJ de 16.11.05, CJ STJ T. III/p 210 e de 11.01.06, CJ STJ I/p. 160 -, face à redacção do n.º2 do art.379.º do C.P.Penal, introduzida pela Lei n.º58/98, de 25-8, que dispõe “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (…)”, sendo que esta expressão “ou conhecidas em recurso” permite o seu conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem] e os vícios da sentença previstos no art.410.º n.º2 do C.P.Penal.
Previamente às questões suscitadas, um outra se coloca e que é de conhecimento oficioso: a nulidade do acórdão, por falta de fundamentação – art.379.º n.º1 al.a) por referência ao art.374.º n.º2, ambos do C.P.Penal.
O regime de punição do concurso de crimes previsto no art.77.º do C.Penal – em que há lugar a aplicação de uma pena única quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, considerando-se na medida da pena os factos e a personalidade do agente – é aplicável, segundo o disposto no art.78.º n.º1 do C.Penal, ao caso de conhecimento superveniente do concurso, ou seja, quando posteriormente à condenação se constatar que o agente praticou anteriormente àquela condenação outro ou outros crimes.
Na fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente pelo conjunto dos factos criminosos, enquanto revelador da gravidade global do comportamento delituoso do agente, dado que a lei estabelece que se pondere, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Nas palavras do Prof.Figueiredo Dias – in Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.290 – «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado».
«Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso» –Ac.STJ de 18/6/2009, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, proc.577/06.7PCMTS, www.dgsi.pt/jstj).
Conforme tem sido entendimento maioritário da jurisprudência do STJ, a sentença referente a um concurso de crimes de conhecimento superveniente deve ser elaborada, como qualquer outra sentença, tendo em atenção o disposto no art. 374.º do C. P.Penal. Embora na decisão de cúmulo jurídico não se exija uma fundamentação exaustiva, a mesma também não se pode limitar a enunciados genéricos, como a simples referência à tipologia da condenação, a fórmulas tabelares, ou seja, remissão para os factos comprovados e crimes indicados nas certidões, uma vez que no nosso direito vigora o dever de fundamentação das decisões judiciais, mais exigente em certas situações, menos noutras, mas ainda assim com um conteúdo mínimo que possibilite alcançar a gravidade dos factos, numa perspectiva de conjunto, global, evidenciando a personalidade do agente [v, entre outros, Ac.STJ de 15/5/2013, proc. n.º125/07.1SAGRD.S1, 3ªsecção, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro, e Ac.STJ de 14/3/2013, proc. n.º287/12.6TCLSB.L1.S1, 3ªsecção, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar].
Não se justifica exigir a menção exaustiva dos factos da cada uma das sentenças pertinentes a cada pena, de reportar ao cúmulo, mas é necessário que se proceda a uma explicitação por súmula dos factos das condenações e bem assim dos que se provem na audiência de julgamento do concurso de crimes, de forma a se alcançar «os contornos de cada crime integrante do concurso, a ilicitude concreta dos crimes praticados (que a mera indicação dos dispositivos legais não revela), a homogeneidade da actuação do agente, a eventual interligação entre as diversas condutas, enfim, a forma como a personalidade deste se manifesta nas condutas praticadas» – v.Ac.R.Évora 10/1/2011, proc. n.º 286/05.4GG5TB.El, relatado pelo Desembargador Sénio Alves.
A sentença do concurso constitui uma decisão autónoma, e por isso ela tem de conter todos os elementos da sentença e habilitar quem a lê, a apreender a situação de facto julgada e compreender a decisão proferida, sendo que não cumpre essa função se omite completamente a referência aos factos, incluindo apenas a indicação das datas da prática dos factos, das disposições legais infringidas, das penas aplicadas, das datas das condenações e do respectivo trânsito em julgado
Revertendo ao caso presente, o acórdão recorrido não fornece, ainda que por súmula, os factos por que o arguido foi condenado, limitando-se a indicar a data da prática dos factos, o tipo legal dos crimes em que incorreu [sendo que quanto ao processo n.º474/07.9GAFAF nem sequer houve o cuidado de indicar o crime], as penas respectivas e ainda a enunciar as datas do trânsito em julgado. Do mesmo modo, o acórdão recorrido é totalmente omisso sobre o grau de ilicitude de cada um dos crimes, se existem conexões entre eles, de forma a permitir a ponderação da «imagem global do facto» que pressupõe naturalmente as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso. Tão-pouco faz referências concretas à personalidade do arguido, que permitam formular um juízo sobre o modo como se projectou nos factos ou foi por eles revelada (ocasionalidade, pluriocasionalidade ou tendência).
A decisão recorrida enferma, pois, da nulidade decorrente da falta de fundamentação – art.379.º n.º1 al.a) por referência ao art.374.º n.º2, ambos do C.P.Penal.
Face à anulação do acórdão, fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente.

III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em anular o acórdão recorrido, devendo ser elaborado novo, se possível pelos mesmos juízes, que sane o vício supra apontado.
Sem tributação.
(texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias)

Guimarães, 21/10/2013