Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
70/09.6GAGMR.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: DECISÃO INSTRUTÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – A decisão instrutória tem de consistir num despacho de «pronúncia» ou de «não pronúncia».

II – Decidindo-se, na decisão instrutória, que os factos narrados na acusação são insuficientes para a condenação, não pode o juiz de instrução devolver os autos ao Ministério Público para este, se assim o entender, sanar as insuficiências detetadas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
Nos autos 70/09.6GAGMR, distribuídos ao 1º Juízo Criminal de Guimarães, o magistrado do MP deduziu acusação contra os arguidos:
- José S..., por 5 crimes de recetação p. e p. pelo art. 231 nºs 1 e 4 do CPP;
- António A..., por 2 crimes de recetação p. e p. pelo art. 231 nº 1 do Cod. Penal;
- Manuel C..., por 1 crime de recetação p. e p. pelo art. 231 nº 1 do Cod. Penal;
- Paulo R..., por 1 crime de recetação p. e p. pelo art. 231 nº 1 do Cod. Penal; e
- Cristiano R..., por 1 crime de recetação p. e p. pelo art. 231 nº 1 do Cod. Penal;
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Os arguidos Manuel C... e Cristiano R... requereram a abertura de instrução, em resumo, com os seguintes fundamentos
O Manuel C... invocou a violação do princípio ne bis in idem, por os factos da acusação já terem sido objeto de apreciação no Proc. 266/09.0GAPVZ do 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim, em que foi absolvido.
O Cristiano R... suscitou a questão da insuficiência dos factos narrados na acusação, porque da mesma não “decorre que tenha representado a proveniência ilícita do veículo, que alegadamente adquiriu e vendeu, nem tão pouco que tenha agido com a específica intenção de obter, para si ou terceiros, uma qualquer vantagem patrimonial”.
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Realizado o debate instrutório, foi proferido despacho que foi denominado de «decisão instrutória», que é o recorrido, que decidiu:
Quanto ao Manuel C..., considerou improcedente a questão por ele suscitada; e
Quanto ao Cristiano R..., considerou verificada a nulidade prevista na al. b) do nº 3 do art. 283 do CPP, quanto à falta de narração de factos na acusação, o que “determina que os autos sejam remetidos, após o trânsito, aos serviços do Ministério Público para, se assim o entender (o MP), sanar o vício, voltando a correr quanto a este arguido (Cristiano R...) prazo para a abertura de instrução”.
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Os arguidos Manuel C... e Cristiano R... interpuseram recurso deste despacho:
- O Manuel C... visa que a relação declare que “não pode ser acusado dos factos que lhe vêm imputados, por violação do princípio ne bis in idem”;
- O Cristiano R... visa que a relação ordene que despacho recorrido seja substituído por outro de não pronúncia relativamente a ele;
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A magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso do Cristiano R... e a rejeição do recurso do Manuel C..., por ser irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar o arguido; subsidiariamente defendeu a improcedência do recurso deste arguido.
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Nesta instância o sra. procuradora geral adjunta emitiu parecer no sentido de ser irrecorrível a decisão, na parte relativa ao arguido Manuel C... e que, relativamente ao Cristiano R..., a mesma é nula, porque “ao juiz de instrução está vedada a possibilidade legal de dar ordens ou sugestões ao Ministério Público”. Em consequência, deve ser “determinado que o juiz de instrução se pronuncie em concreto sobre apronúncia ou não pronúncia do arguido Cristiano R...”.
Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Como se referiu no relatório deste acórdão, após o o Ministério Público ter deduzido acusação contra cinco arguidos, imputando-lhes crimes de recetação p. e p. pelo art. 231 nº 1 do Cod. Penal, os arguidos Manuel C... e Cristiano R... requereram a instrução.
O Manuel C... invocou a violação do princípio ne bis in idem, por os factos por que foi acusado já terem sido objeto de apreciação no Proc. 266/09.0GAPVZ do 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim, em que foi absolvido.
O Cristiano R... suscitou a questão da insuficiência dos factos narrados na acusação, por da mesma “não constar qualquer referência, ainda que mínima, que defina a sua conduta como dolosa…”. “Da acusação não decorre que tenha representado a proveniência ilícita do veículo, que alegadamente adquiriu e vendeu, nem tão pouco que tenha agido com a específica intenção de obter, para si ou terceiros, uma qualqeur vantagem patrimonial”. Considera que tal omissão integra a nulidade prevista no art. 283 nº 3 al. b) do CPP, devendo, em consequência, a acusação ser “rejeitada” e o arguido não pronunciado.
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Realizado o debate instrutório, foi proferida a despacho (designado decisão instrutória) que, sem «pronunciar» ou «não pronunciar» os arguidos, decidiu:
Quanto ao Manuel C..., considerou improcedente a questão por ele suscitada; e
Quanto ao Cristiano R..., considerou verificada a nulidade invocada, o que “determina que os autos sejam remetidos, após o trânsito, aos serviços do Ministério Público para, se assim o entender (o MP), sanar o vício, voltando a correr quanto a este arguido (Cristiano R...) prazo para a abertura de instrução”.
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Porém:
A decisão instrutória tem de consistir num despacho de «pronúncia» ou de «não pronúncia». As normas dos arts. 307 nº 1 e 308 nº 1 do CPP não deixam outra alternativa.
A «não pronúncia» pode fundamentar-se quer na insuficiência dos indícios, quer na existência de nulidades, irregularidades ou na falta de pressupostos processuais, que obstem ao conhecimento do mérito da causa. No caso destas últimas, mesmo que a decisão das questões prévias conduza à anulação total ou parcial do processo, com a consequente anulação da acusação, não se deve entender que o juiz não deve chegar a proferir despacho de não pronúncia, por não chegar sequer a apreciar a acusação. Nesse caso, “o tribunal recusa a acusação com o fundamento da sua inadmissibilidade em razão daqueles vícios” – Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, tomo II, pag. 173, 2ª ed.
Substancialmente, o despacho recorrido, na parte relativa ao arguido Cristiano R..., mais não é do que um convite ao Ministério Público para aperfeiçoar a acusação, mas, por imposições decorrentes do princípio do acusatório, o atual Código de Processo Penal não prevê em qualquer caso a possibilidade do juiz “salvar” a acusação, convidando o Ministério Público a suprir erros cometidos.
Como bem assinala este recorrente na sua motivação, nenhuma razão existe para se dar ao MP um tratamento mais favorável do que ao assistente, no caso de ser deduzida acusação omissa ou insuficiente quanto à narração de factos. Na realidade, o acórdão do STJ 7/05 de 12-5-2005 fixou jurisprudência no sentido de que “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, DR 212 SÉRIE I-A, de 2005-11-04. Decorre da fundamentação desse acórdão que nele se considerou clara a equivalência entre a acusação do MP e o requerimento do assistente para a abertura da instrução (ambos, afinal, “acusações”). Transcreve-se: “não se prevê o convite à correção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente, quer por carência dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada. Igual proibição de convite à correção do requerimento de instrução, deve, identicamente, ser afastado” (sublinhado d relator).
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Conclusões similares se extraem quanto à parte do despacho recorrido que afetou o recorrente Manuel C.... Não é uma decisão instrutória, apesar da epígrafe que lhe foi dada, porque esta, pelas razões já apontadas, tem de “apreciar a acusação”. “Designa-se pronúncia ou não pronúncia, consoante seja positiva ou negativa…” – Germano Marques da Silva, ob. cit., pag. 166.
Não se trata de mera bizantinice, fruto dum imoderado gosto por questões processuais sem substância. A admitir-se a validade processual do despacho recorrido, na sua singularidade, o mesmo é passível de recurso, porque contém uma decisão proferida «contra» o arguido e a sua irrecorribilidade não está prevista na lei (art. 399 do CPP). Pelo contrário, se fizer parte, enquanto «questão prévia», de um eventual despacho de pronúncia, coloca-se a questão da irrecorribilidade (cfr. art. 310 nº 1 do CPP). Não pode é contornar-se a questão, defendendo-se que se trata de uma espécie de despacho de pronúncia “implícito”, como parece ser o entendimento da magistrada do MP junto do tribunal recorrido. Tal hipótese é incompatível com a economia do nosso processo penal, porque, sob pena de nulidade, o despacho de pronúncia tem de obedecer aos requisitos do art. 283 nº 3 do CPP.
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Deverá, assim, o despacho recorrido ser substituído por outro que pronuncie ou não pronuncie os arguidos, havendo, depois, lugar a recurso do que for decidido, ser for admissível.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães ordenam que, pela mesma juiz, o despacho recorrido seja substituído por outro que pronuncie ou não pronuncie os arguidos.
Sem custas.