Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
114/12.4TBPTL.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I.O inquérito judicial é o meio processual especial a que o sócio deve recorrer para conseguir que a informação seja prestada em caso de recusa expressa ou presumida, ou ainda em caso de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta, ou não elucidativa, por parte do conselho de administração ou da direção da sociedade.

II. Se a informação que o sócio pretende obter tem a ver apenas com a falta de apresentação do relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, o processo de inquérito deverá seguir os termos do artº 67º do CSC ex vi do artº 1479 nº 3 do CPC.

III. Se o sócio pretender outras informações que não apenas aquelas, o inquérito deverá seguir a tramitação do artº 1479º nº 1 e 2 e 1480º a 1482º do CPC.

IV. A norma do artº 67º é especial relativamente à do artº 216º do CSC. Em ambos os casos aplica-se o disposto nos artºs 302º a 304º do CPC por força do disposto no nº1 do artº 1409º do CPC.

V. Quando os requerentes do inquérito judicial desencadeiam o mecanismo processual previsto no artº 1479º do CPC, e têm por fim apenas a realização de inquérito por falta do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, sem seguir a tramitação regulada no artº 67º do CSC, para o qual o nº 3 do artº 1479º do CPC expressamente remete, ocorre erro na forma do processo, que o tribunal deverá conhecer oficiosamente.

VI. E se o requerente cumular no mesmo processo pedidos que correspondem a formas de processo diferentes, ocorre cumulação ilegal de pedidos, que é uma exceção dilatória atípica, de conhecimento oficioso, que deverá ser conhecida no saneador (se a forma do processo a comportar).

VII. Poderá contudo ser autorizada a cumulação caso se verifiquem os pressupostos do nº 2 do artº 31º do CPC, ex vi do nº 1 do artº 470º do CPC.

VIII. Por razões de economia processual (interesse relevante), pode ser autorizada a cumulação do pedido de junção das demonstrações financeiras e respetivos anexos (relativos aos anos 2007 a 2010) com o pedido de informações relativa à identificação das contas bancárias e ao contrato de cessão de exploração de pedreira celebrado entre a sociedade requerida e a Junta de …, obviando à realização de dois inquéritos e à nomeação eventual de dois averiguadores, devendo a ação prosseguir com a adaptação do processado, depois de ouvidas as partes.

XIX. Cumpre o ónus de indicação dos pontos de facto que interessa averiguar, exigido pelo nº 1 do artº 1479º do CC, o requerente que requer que sejam prestadas informações/documentos sobre as demonstrações financeiras e respectivos anexos, o contrato de exploração de pedreira celebrado entre a sociedade e a Junta de… e as contas bancárias através das quais são movimentados dinheiros das sociedades.

X. A ampliação do objeto do inquérito é determinada pelo juiz e não pelo requerente, sem embargo de este a poder sugerir. E a ampliação há-de resultar do resultado das diligências que entretanto foram feitas e que, no caso, se resumem à junção de documentos.

XI. Não deve ser ordenada a ampliação quando a ampliação sugerida nada tem a ver com as questões de facto inicialmente suscitadas e não decorrem da junção de documentos que entretanto foi feita.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Relatório
P… veio instaurar processo especial de inquérito judicial contra J… & Filhos, Lda., J… e M….
Alegou, em síntese, que é sócio da 1ª requerida conjuntamente com o 2º e 3º requeridos, sendo estes também seus gerentes.
Desde o ano de 2007 que sociedade não apresenta à Assembleia Geral os relatórios de gestão relativos aos sucessivos exercícios anuais, não tendo as contas sido aprovadas nem pela gerência, nem pela Assembleia Geral.
Dirigiu à sociedade requerida em 21.06.2011 um pedido de informação por escrito, requerendo as informações que visa obter com o presente inquérito judicial, mas não obteve qualquer resposta e não logrou obter junto dos Bancos informação sobre a situação contabilística da sociedade, nomeadamente movimentos bancários e respectivos saldos.
Reiterou o pedido de informações, de novo sem sucesso.
O 3º requerido tem gerido a sociedade de forma prepotente, autoritária e centralizadora, comprando equipamentos, contratando pessoal, cedendo e celebrando contratos sem prestar contas desses actos.
Pediu a realização de um inquérito judicial à sociedade requerida, destinado a apurar os seguintes elementos:
. demonstrações financeiras e respectivos anexos, relativos aos exercícios anuais de 2007, 2008, 2009 e 2010;
. identificação das contas bancárias, em nome da sociedade ou de sócios, através das quais sejam movimentados dinheiros da sociedade;
. contrato de exploração da pedreira celebrado com a Junta de…, concelho de Ponte de Lima.
Apenas o 3º requerido veio responder (fls 31), referindo que o requerente é seu irmão e também irmão do 2º requerido, e alegando que o requerente apenas se limitou a formular um pedido de apresentação de documentos, não indicando qualquer ponto de facto que queira esclarecer com essa apresentação, nem precisou qual foi a informação que lhe foi negada, pelo que deveria ter-se socorrido do disposto no artº 67º do CSC ex vi do nº 3 do artº 1479º do CPC.
Mais invocou que o requerente sempre teve acesso a todos os documentos relativos à actividade da sociedade, nada lhe tendo sido negado.
Concluiu pelo indeferimento do requerido inquérito.
A fls 51 veio o 3º requerido, em requerimento autónomo, informar ter entregue ao requerente todos os documentos por este solicitados, requerendo que se notifique o mesmo para o confirmar, para que após confirmação, a instância possa ser declarada extinta.
Em resposta veio o requerente informar que qualquer entrega de documentos que tenha havido, ocorreu no âmbito de negociações malogradas, e não no âmbito do presente processo, mantendo os autos todo o interesse.
Foi designada tentativa de conciliação, na qual as partes requereram a suspensão da instância com vista a uma resolução extra-judicial do litígio.
Por as partes não terem alcançado acordo, foi designada nova data para a continuação da tentativa de conciliação.
Antes da data designada para a continuação veio o requerente requerer a ampliação do objecto do inquérito, com vista a obter resposta às seguintes questões:
. quanto dinheiro e demais recursos e bens da sociedade foram gastos ou afectos à implementação e desenvolvimento da nova actividade de indústria de reciclagem de resíduos sólidos?
. que contrato rege os termos da cedência pela Junta de Freguesia de…, do terreno onde se desenvolverá tal actividade?
. foi transferida a titularidade de tal contrato a favor do requerido M…? Em caso afirmativo, em que termos e por que preço?
Requereu ainda a suspensão das funções de gerente do 3º requerido.
Na tentativa de conciliação foi o requerente convidado pelo tribunal a esclarecer se estava a requerer a realização do inquérito judicial ao abrigo do nº 1 ou do nº 3 do artº 1479º do CPC, tendo esclarecido que o requereu ao abrigo do nº 1 do citado preceito legal .
Na diligência o 3º requerido requereu a junção aos autos dos seguintes documentos:
. demonstrações e anexos dos ano de 2007, 2008, 2009, 2010 e 2011;
. junção do contrato de exploração de pedreiras, denominado “rectificação ao contrato de concessão de terreno para exploração de massas minerais – pedreira”, realizado por escritura pública e outorgado em entre a sociedade requerida e a Junta de Freguesia de…, em 29 de Janeiro de 2008;
. extractos com identificação das contas bancárias da sociedade.
O requerido pronunciou-se contra a ampliação, alegando que o requerente, que apenas tinha pedido a obtenção de documentos, não pode pretender ampliar uma averiguação de factos que não requereu inicialmente. Mais informou que o 2º requerido lhe instaurou procedimento cautelar visando a sua destituição da gerência (proc. com o nº 243/13 que corre seus termos no 1º juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima), pelo que sempre ocorreria litispendência, dado que tanto o aqui requerente como o requerente no procedimento cautelar, actuam na qualidade de sócios.
Foi, então, proferido despacho onde, além do mais, se concedeu prazo ao requerente para consulta da informação pretendida, podendo fazê-lo também na sede da sociedade requerida e acompanhar-se de técnico habilitado.
A fls 176 veio o requerente pronunciar-se sobre os documentos juntos, insistindo pela realização de um inquérito judicial à sociedade porque os documentos apresentados não afastam todas as dúvidas sobre o alegado na petição inicial pois as demonstrações financeiras só estão assinadas por um gerente e não foram submetidas à apreciação da Assembleia Geral e referindo as dúvidas que tem sobre os valores relativos ao exercício de 2011, nas contas caixa, depósitos à ordem, depósitos bancários, outras contas a pagar/outros credores e inventários/mercadorias, concluindo pela realização de um inquérito com vista a averiguar os pontos de facto já indicados na petição inicial e no requerimento de ampliação.

Pronunciou-se também o requerido M…, insistindo pela inexistência de motivo ou objecto para o mesmo, pois o processo de inquérito judicial destina-se a averiguar factos concretos, sendo que o requerente se limita a tecer comentários acerca da informação disponibilizada. Quanto ao contrato inicial da pedreira, não o tem em seu poder, sendo certo que o requente tem conhecimento que foi celebrado pelo seu pai, não se destinando o processo de inquérito judicial à averiguação de contratos.

Por decisão de fls 187 a 197 foi decidido indeferir a realização de inquérito judicial à sociedade requerida.
O requerente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, no qual formulou as seguintes conclusões:
(…)

II – Objecto do recurso
Considerando que:
. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, as questões a decidir são apenas as seguintes:
. se deve ser ordenado a realização de inquérito à sociedade requerida; e,
. em caso afirmativo, se deve ser admitida a ampliação do inquérito requerida pelo requerente.

II – Fundamentação
A situação factual é a supra descrita.

Como referimos supra são as conclusões que delimitam o objecto do recurso. Se bem que no corpo alegatório do seu recurso, o apelante tenha invocado a nulidade da sentença por omissão de pronúncia e por contradição entre os factos e a decisão, o certo é que não transpôs tais questões para as conclusões, pelo que está vedado a este tribunal conhecê-las (artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil).
E não se diga que o alegado na conclusão 5ª pode configurar a alegação de contradição entre os fundamentos e a decisão, pois o que é referido nessa conclusão não é qualquer contradição entre a decisão e os fundamentos, mas sim entre os próprios fundamentos da decisão. Ainda que assim não se entendesse, sempre se concluiria pela não ocorrência de qualquer contradição. O que se verifica são interpretações divergentes – a do Tribunal e a do apelante – sobre o que se deve entender por “indicação dos pontos de facto que interesse averiguar”, pressuposto exigido pelo nº 1 do artº 1479º do CPC, o que não configura, de modo algum, o vício da alínea c) do nº 1 do artº 668º do CPC.

Vejamos a 1ª questão:
. se deve ser ordenada realização de um inquérito judicial
O n.º 1 do artigo 21.º do Código das Sociedades Comerciais consagra o princípio de que "todo o sócio tem direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato". O direito à informação é depois objecto de tratamento específico relativamente a cada um dos tipos de sociedades, regendo para as sociedades por quotas, como é o caso da sociedade requerida, o disposto nos artigos 214º a 216º do CSC, acrescentando o n.º 1 do artigo 214.º que "os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade (…)". Se este direito à informação não for respeitado, pode recorrer-se ao processo de inquérito judicial (artº 216º do CSC).
O "direito à informação é um elemento estrutural do status do sócio." (1) E "pode ter por objecto qualquer assunto referente à gestão da sociedade, abrangendo aquela gestão os eventos que compõem a vida social. Esta é composta não só pelos actos dos gerentes, mas também por factos materiais, actos de pessoas ligadas à sociedade por laços contratuais, actos de terceiros com efeitos na sociedade"(2).
O direito à informação é um direito essencial para garantir o exercício de outros direitos sociais, nomeadamente o direito aos lucros, de voto, de impugnação de deliberações sociais, de acção de responsabilidade contra os administradores, etc.
“O direito à informação, como direito do sócio, desdobra-se, na perspectiva do Código das Sociedades Comerciais, em quatro direcções diferentes, podendo nele considerar-se compreendidos: um direito a obter informações, um direito de consulta dos livros e documentos da sociedade, um direito de inspecção de bens sociais e, embora noutro plano, um direito de requerer inquérito judicial” (3).
O inquérito judicial é o meio processual especial, a que o sócio deve recorrer para conseguir que a informação seja prestada em caso de recusa expressa ou presumida, ou ainda em caso de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta, ou não elucidativa, por parte do conselho de administração ou da direcção da sociedade (art.º 292º, nºs 1, 2 e 6 do CSC e art.º 1479º e seg.s do CPC).
Nas sociedades por quotas, o sócio está limitado no seu direito de pedir informações fora da assembleia geral à gestão da sociedade, nos temos do nº1 do artigo 214º.
A lei não exige a apresentação de qualquer justificação ou motivação para a consulta de documentos e pedidos de informação, desde que sejam relativas a actos de gestão.
A informação deve ser verdadeira, completa e elucidativa (nº1 do 214º do CSC), isto é, deve remover e esclarecer as dúvidas ou o desconhecimento acerca de factos ou razões ou justificações para a sua prática.
Existe recusa de informação, no sentido de recusa ilícita de informação, sempre que o órgão competente para a sua prestação, face a uma solicitação feita por um ou mais sócios, nas condições de legitimidade estabelecidas na lei, ou no contrato, quando admissíveis, e nos limites fixados, denegue essa mesma prestação ou forneça informação falsa, incompleta ou não elucidativa (nº 1 do artº 216º do CSC).
Há casos, no entanto, em que a recusa da prestação de informação é admitida, (artº 215/1 do CSC).
O processo de inquérito judicial tem duas fases:
- a primeira, em que nos situamos, destina-se à apreciação pelo juiz dos fundamentos invocados pelo requerente e, após o contraditório, haja ou não resposta dos requeridos, decide se há motivos para proceder ao inquérito (art.º 1480º, nº 1 do CPC);
- na segunda fase, se for ordenada a realização do inquérito, o juiz fixa os pontos que a diligência deve abranger, nomeando, caso seja necessário, perito ou peritos que deverão realizar a investigação, aplicando-se o disposto quanto à prova pericial e, depois de concluído, fixa a matéria de facto e decide sobre as providências requeridas (art.ºs 1480º, nº 2, e 1482º, nº 1 do CPC).
Cabe ao sócio requerente do inquérito judicial a prova da sua qualidade de sócio, da recusa da prestação da informação pedida ou da prestação de informação falsa, incompleta ou não elucidativa, enquanto a sociedade recusante deve provar a factualidade de que se possa retirar a licitude da recusa, enquanto facto impeditivo do direito do autor.
Na petição deve distinguir-se o que são os “fundamentos do pedido de inquérito” (v.g. a identificação da sociedade, a qualidade de sócio, a justificação do pedido de inquérito) e “os pontos de facto que interesse averiguar” (v.g. os aspectos de gestão a averiguar ou os documentos a analisar), bem como, facultativamente, as “providências que repute convenientes”. Sem o autor ter cumprido o disposto no citado artigo 1479°/1 do CPC, evidentemente o juiz não pode “fixar os pontos que a diligência deve abranger”, como manda o artigo 1480º/2 do CPC(4).
No nº 3 do artº 1479º do CPC está previsto a realização de inquérito com fundamento na não apresentação pontual do relatório de gestão, das contas de exercício e demais documentação de prestação de contas, os quais devem ser apresentados nos dois meses seguintes ao termo do prazo fixado no nº 5 do artº 65º do CSC (nº 1 do artº 67º do CSC), para que o tribunal determine a sua apresentação. O inquérito nestes casos segue a tramitação prevista no artº 67º do CSC ou seja o juiz, ouvido os gerentes ou os administradores e considerando procedente as razões invocadas para a falta de apresentação das contas, fixa um prazo adequado, segundo as circunstâncias, para que eles as apresentem, nomeando no caso contrário um gerente ou administrador para elaborar o relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas e de os submeter ao órgão competente da sociedade, podendo a pessoa judicialmente nomeada convocar a assembleia geral, se este for o orgão em causa.
A norma do artº 67º é especial relativamente à do artº 216º do CSC. A 1ª é relativa ao inquérito judicial no caso de falta de apresentação do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de contas. A segunda tem a ver com o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do direito a obter e a ser inteirado de quaisquer outras informações(5). Em ambos os casos aplica-se o disposto nos artºs 302º a 304º do CPC por força do disposto no nº1 do artº 1409º do CPC.
Se o requerente só pretender a consulta da documentação a que alude o nº 3 do artº 1479º do CPC terá que indicar os documentos cuja consulta pretende, alegando que não lhe foi facultada no prazo legal.
Se além disso o requerente pretender que sejam tomadas outras providências, nomeando-se peritos, terá que dar cumprimento ao disposto no nº 1 do artº 1479º do CPC.
Por vezes os requerentes do inquérito judicial desencadeiam o mecanismo processual previsto no artº 1479º do CPC, quando têm por fim apenas a realização de inquérito por falta do relatório de gestão, das contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, sem seguir a tramitação regulada no artº 67º do CSC, para o qual o nº 3 do artº 1479º do CPC expressamente remete. Nestes casos ocorre erro na forma do processo, que o tribunal deverá conhecer oficiosamente e mandar seguir o processo que ao caso caiba(6).
O inquérito judicial assenta essencialmente numa investigação (cf. nº 1 do art. 1479º e nºs 2 e 3 do art. 1480º do CPC).
Concluído o inquérito, o relatório do investigador é notificado às partes e realizadas as demais diligências probatórias necessárias, o juiz profere decisão, apreciando os pontos de facto que constituíram fundamento do inquérito (nº 1 do 1482º do CPC). Ao apreciar finalmente os “pontos de facto que constituíram os fundamentos do inquérito” (v.g. prestação de informações falsas, falta de apresentação das contas, etc), pode o juiz tomar alguma ou algumas das providências previstas nos nº 2 e segs do artigo 292º, ex vi do nº 2 do artigo 216º do CSC. A tais providências se refere o n°1 do artigo 1479° do CPC(7).
No caso em apreço, o Mmo Juiz a quo indeferiu o pedido de realização de inquérito por considerar que o requerente lançou mão deste processo, ao abrigo do nº 1 do artº 1479º do CPC, não tendo indicado no requerimento inicial um único facto a averiguar. Mais consignou na decisão recorrida “Com efeito, em termos sintéticos, limitou-se a afirmar que desde 2007 que a gerência não apresenta à Assembleia-Geral os relatórios de gestão relativos aos sucessivos exercícios anuais e que formulou, por escrito, um pedido de informação à sociedade requerida “J…& Filhos, Lda.”, que até à presente data não mereceu resposta, onde solicitou: [i] as demonstrações financeiras que deveriam constar dos relatórios de gestão relativos aos anos de 2007, 2008, 2009 e 2010; [ii] as actas de aprovação de contas; [iii] a identificação das contas bancárias; e [iv] o contrato de exploração da pedreira celebrado com a Junta de Freguesia de….
Termina pedindo que se realize inquérito tendo em vista apurar estes elementos.
Assim recebido o requerimento inicial verificou-se que em causa estava o direito do sócio à informação sobre a vida da sociedade.
(…)
Do que vem de expor-se resulta que o requerente P… fundou este processo especial de inquérito judicial na violação do direito à obtenção de informação verdadeira, completa e elucidativa.
No caso, como se afirma no requerimento inicial, esta foi-lhe recusada.
Sem prejuízo da posição assumida pelo requerido M… na sua oposição, entendemos designar data para realização de uma tentativa de conciliação.
Nessa diligência obteve-se acordo das partes no sentido de ser facultada a informação (alegadamente) recusada.
Na ocasião, este requerido fez juntar os documentos identificados no requerimento inicial - com excepção do contrato de exploração da pedreira, pelos motivos que aí indicou -, concedendo-se prazo ao requerente para analisá-los.
Uma vez analisada a documentação, o identificado P… tomou posição.
No entanto, salvaguardando sempre o devido respeito por opinião distinta, uma vez suprida a invocada falta de informação, não enunciou quaisquer pontos de facto que considerasse dever ser abrangida pela diligência de inquérito judicial.
Ora, como referimos supra, o pedido de inquérito tem de assentar em factos concretos cuja prova cabe a quem o suscita.”
O apelante entende que deu cumprimento ao disposto no artº 1479/1 do CPC, preceito ao abrigo do qual, depois de ter sido convidado a esclarecer, referiu ter requerido o inquérito judicial.
No caso o autor veio cumular pedidos relativos ao inquérito previsto no artº 67º do CSC – pedido de informação das demonstrações financeiras (relatório de contas) e respectivos anexos relativas aos anos de 2007 – e ao inquérito regulado pelo artº 1479 e ss do CPC ao requerer a identificação das contas bancárias em nome da sociedade e a junção do contrato de exploração celebrado entre a sociedade requerida e a Junta de….
Cumulou assim pedidos que correspondem a formas de processo diferentes. Nos termos do artº 470º nº 1 do CPC pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação, sendo que a coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes (nº 1 do artº 31ºCPC).
O autor expressamente referiu ter lançado mão do processado previsto no nº 1 do artº 1479º do CPC e não do artº 67º do CSC.
Esta questão (da impropriedade do meio) foi suscitada na contestação, tendo estado na origem ou contribuído, certamente, para o esclarecimento requerido pelo Mmo Juiz a quo na tentativa de conciliação, sobre qual o concreto procedimento instaurado pelo requerente.
A cumulação ilegal de pedidos é uma excepção dilatória atípica, de conhecimento oficioso, conduzindo à absolvição da instância no despacho saneador (caso a forma do processo a comporte) circunscrita ao pedido que não possa ser deduzido na forma utilizada pelo autor. No entanto, o juiz poderá autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apresentação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio e desde que não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, incumbindo ao juiz adaptar o processado à cumulação autorizada (nºs 2 e 3 do artº 31º do CPC, ex vi do artº 470º do CPC) (8).
Será caso de cumulação?
Como referimos a cumulação é possível desde que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio. O nº 2 do artº 31º representa uma das concretizações do princípio geral da adequação formal da tramitação do processo, formulado no art.265º-A. O que releva é que haja um efectivo interesse na apreciação conjunta das pretensões, nomeadamente, por razões de economia processual ou por a respectiva apreciação conjunta se revelar indispensável a um correcto entendimento e julgamento do litígio.
No caso, porque a acção também foi proposta contra os gerentes da sociedade requerida, procedeu-se à sua audição, o que satisfaz tanto o exigido pelo nº 2 do artº 1479º do CSC, como simultaneamente, o exigido pelo nº 2 do artº 67º do CSC. Por outro lado, tendo em conta que as contas acabaram por ser apresentadas, não será necessário nomear um gerente exclusivamente encarregado de as apresentar (nº 2 do artº 67º do CSC). Nada obsta, em nosso entender, que por razões de economia processual, se autorize a cumulação dos pedidos nestes autos, obviando à realização de dois inquéritos e à nomeação eventual de dois averiguadores, devendo o Mmo Juiz proceder à adequação formal do processado, depois de ouvidas as partes.
E terá o requerente indicado os concretos pontos de facto que interessa averiguar?
Da leitura que fazemos da petição, afigura-se-nos que o requerente não pretende apenas que a requerida seja notificada para apresentar determinados documentos: o que ele pretende é que lhe seja prestada informação sobre determinados pontos, o que passa pela apresentação de documentos.

Para que possa ter lugar a investigação, é necessário que o autor tenha concretizado com um mínimo de clareza os elementos informativos que pretende e com base neles o juiz possa fixar os pontos que a diligência deve abranger.

Ora, o autor delimita o que pretende através do inquérito judicial, embora pudesse tê-lo concretizado de modo mais pormenorizado: pretende obter informações sobre as demonstrações financeiras e respectivos anexos, o contrato de exploração de pedreira celebrado entre a sociedade e a Junta de… e as contas bancárias através das quais são movimentados dinheiros das sociedades.

O Mmo Juiz não estava impedido de convidar o requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial, melhor delimitando os pontos concretos que pretendia ver esclarecidos, nomeadamente, para que esclarecesse a que período temporal se reportava o pedido de identificação das contas bancárias. Aliás, o Mmo Juiz pretendeu fazê-lo na tentativa de conciliação, no sentido de “antes de mais suprir a falta de informação afirmada pelo requerente, definindo-se em que termos deveria ser prestada e quando deveria ser prestada”, convite que acabou por não ter seguimento, porque, entretanto, pelos ilustres mandatários foi dito que pretendiam começar pela prestação da requerida informação.(p.162).

Diferente seria o nosso entendimento, se o requerente se tivesse limitado a requerer que fosse feita uma verificação às contas da requerida, sem referir qual era a finalidade dessa verificação, ou seja, sem indicar o que é que pretendia que em concreto fosse alvo de inquérito.

Assim, não deveria a realização do inquérito ter sido rejeitada com o fundamento invocado.

No âmbito da investigação o investigador não se limita a inspeccionar documentos. Poderá praticar outros actos, nomeadamente, os referidos no nº 3 do artº 1480º do CPC, recolhendo por escrito informações junto de outras pessoas ou entidades com o fim de obter a necessária informação e requerer ao tribunal que requisite documentos em poder de terceiros. Por exemplo, no âmbito da investigação para obtenção da informação relativa ao contrato de exploração de pedreira celebrado entre a sociedade requerida e a Junta de…, caso a documentação que venha a ser junta não seja elucidativa, o investigador poderá recolher informações por escrito junto da entidade administrativa que outorgou o contrato e ainda solicitar que o tribunal requisite outros documentos em seu poder.

Quanto à requerida ampliação:

Nos termos do nº 4 do artº 1480/4 do CPC se no decurso do processo houver conhecimento de factos alegados que justifiquem ampliação do objecto do objecto do inquérito, pode o juiz determinar que a investigação em curso os abranja, salvo se da ampliação resultarem inconvenientes graves.

Como ensina Lopes do Rego(9) a definição do objecto do processo é meramente provisória, “sendo mutável consoante a evolução do processo e o resultado de diligências realizadas, assistindo ao juiz (nº 4) a possibilidade de ampliar os pontos a investigar, completando deste modo, em função de dados supervenientes, o despacho que inicialmente proferiu”.

A ampliação do objecto do inquérito é determinada pelo juiz e não pelo requerente, sem embargo de este a poder sugerir. E a ampliação há-de resultar do resultado das diligências que entretanto foram feitas e que, no caso, se resumem à junção de documentos. Ora o que o requerente pretende com a ampliação sugerida nada tem a ver com as questões de facto inicialmente suscitadas e não decorrem da junção de documentos que entretanto foi feita, pelo que, embora por razões diversas das expressas no despacho recorrido, não há que ordenar a ampliação do objecto do inquérito nos termos sugeridos pelo requerente.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar procedente a apelação, e em revogar o despacho recorrido, autorizando a cumulação de pedidos, devendo a acção prosseguir com adaptação do processado à cumulação, ouvidas as partes e, abrindo inquérito, determina-se que os R.R., em 15 dias, facultem ao A. os elementos documentais de informação por ele pretendidos, ainda em falta. Mais acordam em rejeitar o pedido de ampliação do objecto do processo nos termos requeridos.

Custas pelos requeridos.

Notifique.

Guimarães, 23 de Janeiro de 2014

Helena Melo

Heitor Gonçalves

Amílcar Andrade

(1) Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª Edição, pág. 144.
(2) Cfr. Ac. Rel. Lisboa 2-10-2008 no Proc. 4451/2008-2, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que vierem a ser citados, sem outra indicação.
(3) Carlos Maria Pinheiro Torres, O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais, 1998, página 121, apud Ac. TRG de 25.11.2013, proferido no proc. 287/12.
(4) Cfr se defende no Ac do TRC de 5.07.2011, proferido no proc. nº 299/09 que seguimos de perto.
(5) Conforme defende Remédio Marques, Código das Sociedades Comerciais Comentário, coordenação de Coutinho de Abreu, Coimbra: Almedina, 2011, p.323.
(6) Remédio Marques, obra citada, p.320 e 321.
(7) Cfr ainda o defendido no Ac. citado na nota de rodapé antecedente.
(8) Ver a propósito, o decidido no Ac. do TRL de 7.11.2006, proferido no processo 4080/2006-7, onde foi autorizada a cumulação de pedidos.
(9) Comentários ao Código de Processo Civil, volume II, 2ª edição, Almedina, 2004, p.331.