Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4404/06.7TBBCL-E.G1
Relator: MANSO RAÍNHO
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
IVA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Sendo o título executivo uma sentença homologatória de transacção, não pode discutir-se em sede de oposição à execução assuntos fixados (bem ou mal, não importa) por essa sentença.
II – Assim, tendo uma das partes ficado obrigada a pagar certa quantia a certa entidade, não pode a devedora vir argumentar, com vista a eximir-se ao pagamento, com uma suposta natureza de sociedade irregular dessa entidade credora.
III - A circunstância da entidade credora ter a sua actividade em sede de IVA cessada, o que já acontecia aquando da transacção, e a circunstância do recibo que se propôs emitir não fazer alusão ao IVA, não eximem o devedor de cumprir a obrigação fixada pela sentença homologatória da transacção.
IV - Não contemplando a sentença homologatória a condenação em juros de mora, não podem estes ser objecto de execução, ainda que, face ao direito substantivo, sejam devidos.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães:

Foi oportunamente intentada acção declarativa por V… , que correu perante o 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos, contra V… , Lda. O processo terminou por transacção feita em 23 de Janeiro de 2008, que foi julgada válida quer quanto ao objecto quer quanto à qualidade das partes por sentença entretanto transitada em julgada.
Nos termos dessa transacção, a referida V… , Lda. obrigou-se a pagar a V… e P… , entidades estas a quem estava atribuído o NIF 901300390, a quantia de €30.000,00, IVA incluído. O pagamento era para ser feito no prazo de 30 dias, contra recibo a emitir pela “pessoa colectiva” (sic) credora.
Alegando não lhe ter sido entregue a referida quantia, instauraram os ditos V… e P… a correspondente execução contra a devedora V… , Lda., onde também reclamaram o pagamento de juros de mora.
A executada deduziu então oposição à execução (e à penhora).
Disse, em síntese, e no que interessa agora ao caso (oposição à execução), que não pagou a quantia reclamada porque a entidade credora tinha cessado (desde 28 de Fevereiro de 2005) a sua actividade para efeitos de IVA, razão pela qual se verificava uma “condição suspensiva” do pagamento, não podendo por isso ser realizado qualquer acto jurídico em sede de IVA, como seja a emissão de recibo, que teria que mencionar o IVA, e isto não foi feito. Deste modo, a entidade exequente age com abuso de direito. Acresce, de outro lado, que não são devidos os reclamados juros de mora, que à entidade exequente não caberia senão a condição de sociedade irregular, figura porém já desaparecida do panorama jurídico português, e daqui que careça de personalidade judiciária activa. Disse ainda que a quantia cujo pagamento é devido não é a de €30.000,00, mas a quantia resultante da subtracção do valor do IVA.
Mais reclamou a condenação da Exequente e seu mandatário por litigância de má fé, bem como na sanção a que alude o art. 819º do CPC.
Os exequentes contestaram, concluindo pela improcedência da oposição à execução.
Seguindo o processo seus termos, veio-se a constatar (v. fls. 155 e162) terem os Exequentes entretanto procedido ao reinício da actividade em sede de IVA, e entregue à Executada recibo relativo ao projectado recebimento de €30.000,00, mas sem indicação da parte imputada ao IVA.
Mostra-se também do processo que a Repartição de Finanças de Barcelos determinou entretanto a penhora do crédito que a entidade exequente pudesse deter sobre a Executada (v. fls. 179, 180 e 195).
A final foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição.

Inconformada com o assim decidido, apela a Executada.

Da sua alegação extrai conclusões, que encerram as seguintes questões:

a) - A sentença recorrida padece de nulidade, na medida em que não se pronunciou acerca da capacidade da Exequente para a prática de actos tributários em sede de IVA, nem sobre a falta da sua personalidade judiciária por ser uma sociedade que se revela como irregular, nem sobre o invocado abuso de direito, nem ainda “sobre toda a matéria de facto constante e subjacente nos autos” (sic).
b) - Não estando a Exequente activa em sede de IVA, verificou-se uma “condição suspensiva” do pagamento devido pela Executada, sendo que o recibo emitido não fazia sequer alusão à parte relativa ao IVA. A obrigação da Executada só se torna exigível quando a Exequente puder legal e fiscalmente praticar actos que incluam o recebimento do IVA devido.
c) - Não são devidos juros de mora, tanto porque a Executada não se encontra em mora, como porque o título executivo os não compreende.
d) - O crédito da Exequente sobre a Executada foi objecto de penhora pela Repartição de Finanças de Barcelos, pelo que não podia ter-se decidido como se decidiu, antes dever-se-ia ter determinado o pagamento da quantia ora em questão à dita Entidade Fiscal.
e) - Não foi ouvida a prova testemunhal oferecida, o que constitui nulidade processual.
f) – Deverá a entidade exequente ser condenada como litigante de má fé, e ainda na sanção a que alude o art. 819º do CPC.

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A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência da apelação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir, tendo-se sempre presentes as seguintes coordenadas:
- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;
- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.


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Dos factos:

Estão provados nos autos, com relevo para a decisão da oposição à execução, os seguintes factos:

I - Nos autos de acção ordinária a que estes se encontram apensos foi obtido, em 23 de Janeiro de 2008, um acordo entre as partes (V… e V… , Lda.), julgado válido e homologado por sentença transitada em julgado, onde, no que interessa ao caso, se estabeleceu o seguinte (sic)
1.O autor reduz o seu pedido à quantia de trinta mil euros, na qual está incluído o IVA devido.
2. A ré compromete-se a pagar a quantia supra referida a (V… e P… a que havia sido atribuído o número de contribuinte 901300390) no prazo de trinta dias contra recibo a emitir pela pessoa colectiva atrás identificada”.
II - a referida entidade credora tinha cessado, desde 28 de Fevereiro de 2005, a sua actividade para efeitos de IVA.
III - O recibo emitido pela mesma entidade em vista do pagamento a fazer pela V… Lda. não mencionava o IVA.
IV - Tal entidade procedeu, na pendência do presente processo, ao reinício da actividade em sede de IVA.
V - E emitiu, na sequência, recibo relativo ao pretendido recebimento de €30.000,00, mas sem indicação da parte imputada ao IVA.
VI – A ora Opoente foi entretanto notificada de que tinha sido ordenada a penhora no crédito que possua sobre a entidade ora exequente, até ao montante de €36.150,76; desse facto foi também dado conhecimento ao tribunal recorrido.

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Do Direito:

Quanto às questões supra identificadas sob a) b) e e), bem como quanto à questão identificada em f):

É certo que o tribunal recorrido não se pronunciou especificadamente acerca das diversas questões que a Apelante indica, identificadas em a), nem fez produzir a prova testemunhal oferecida (e)).
Ora, no que tange à pronúncia pretensamente omitida sobre matéria de facto, importa porém dizer que nenhuma matéria de facto relevante havia a escrutinar (aliás, nem sequer a Apelante indica que matéria concreta seria essa, mostrando até confundir entre matéria de facto e matéria de direito). Donde, sendo a questão apenas de direito, nenhuma omissão se registou a tal nível. O que significa que improcede totalmente a questão identificada em e), bem como a questão identificada na parte final de a).
No que tange ao abuso de direito, capacidade da Exequente para a prática de actos com alcance tributário em sede de IVA e personalidade judiciária da Exequente, nada decide efectivamente a sentença recorrida, pelo que se verifica a apontada nulidade de decisão.
Nos termos do art. 715º do CPC, compete a esta Relação incidir sobre a omissão, pronunciando-se acerca das questões cujo conhecimento não foi feito.
Isto posto:
O título executivo em causa é uma sentença condenatória, pelo que só podem servir de base à oposição os fundamentos indicados no art. 814º do CPC. Não pode, designadamente, discutir-se em sede de oposição assuntos que estão já consolidados (bem ou mal, não importa) pela decisão sentencial exequenda.
Deste modo, carece de qualquer pertinência a oposição aí onde se vem enxertar nela a temática da sociedade irregular, extrapolando-se depois para a falta de personalidade judiciária da mesma. É que dos termos da sentença exequenda decorre que credores da obrigação ora exequenda são as pessoas (ou a entidade, o que vai dar ao mesmo) que se apresentam como exequentes, e isto, bem ou mal, impõe-se-nos agora. Portanto, a discussão que a Executada pretende travar acerca de uma suposta natureza de sociedade irregular da entidade credora é completamente espúria e inadmissível à luz do art. 814º do CPC. Improcede assim esta questão.
No que respeita à recusa do pagamento, pelas razões que a Opoente invoca, dos 30.000 euros fixados na transacção, temos a dizer que não sufragamos o entendimento da Opoente.
Desde logo, os fundamentos invocados – a circunstância da entidade credora ter a sua actividade em sede de IVA cessada e a circunstância do recibo não fazer alusão ao IVA, circunstâncias estas que a opoente qualifica de suspensivas da obrigação de pagamento – não se ajustam a nenhum dos fundamentos elencados no art. 814º do CPC. Observe-se, a propósito, que não estamos aqui perante factos supervenientes extintivos ou modificativos da obrigação (e apenas estes valeriam), sendo ademais certo que quando a transacção foi celebrada e homologada já tal cessação de actividade ocorria.
Mas, seja como for, contrariamente ao que a Oponente quer fazer crer (leia-se, em definitivo, a carta de fls. 60: a ora Opoente chega ao ponto de exigir dos Exequentes a prova de regularização da sua situação fiscal, como condição de pagamento do que lhes deve!), não é ao devedor que paga bens ou serviços sujeitos a IVA que compete vigiar e controlar, como condição do cumprimento da sua prestação, se o Estado recebe, e em que termos, o imposto. Quanto muito, admite-se que, no exercício do direito de cidadania, qualquer pessoa possa denunciar ao Estado o recebimento indevido ou o desvio ilícito do imposto. Acrescente-se, sem embargo, que na pendência do processo os ora Apelados reactivaram a sua actividade em sede de IVA, pelo que deixou de haver razão legítima para a ora Opoente recusar a sua prestação. De outro lado, em sítio algum exige a lei (nem sequer a Opoente identifica qualquer norma nesse sentido) que da quitação emergente de actos de pagamento do preço de bens ou serviços sujeitos a IVA deva constar obrigatoriamente a menção à quota-parte do IVA. Na realidade, a lei, designadamente o Código do IVA, reserva tal obrigação para os documentos constitutivos ou declarativos das transacções sujeitas ao imposto, como sejam facturas, talões de venda e documentos semelhantes, não para os recibos. É que a quitação é a prova do cumprimento (art. 787º do CCivil), e o seu fim precípuo é produzir um efeito que apenas interessa imediatamente às partes, não às instâncias fiscais. É bem certo que o recibo releva para efeitos da contabilidade da ora Opoente, mas a quitação oferecida pelos ora Apelados, conjugada obviamente com os termos da transacção, salvaguardava devidamente esse interesse em termos de provar o que é pago a título da obrigação substantiva e a título do IVA.
Entendemos assim, tal como entendeu a sentença recorrida, que a ora Apelante carecia do direito a recusar o pagamento daquilo em que está judicialmente condenada, na certeza de que a entidade credora cumpriu a sua obrigação, a de emitir o recibo correspondente. E em sítio algum está demonstrado, pelo menos com a devida consistência, que se quisesse efectivamente desviar do Estado e fazer coisa sua a parcela de IVA compreendida no pagamento que lhe competia receber da ora Apelante.
E dizer isto, é o mesmo que dizer que inexiste o abuso de direito a que alude a Apelante, bem como que não se pode concluir pela preconizada litigância de má fé e pela sujeição à sanção a que alude o art. 819º do CPC.
Improcedem assim as questões em destaque.

Quanto à questão identificada em c):

Não tem razão a Apelante quanto afirma que não está em mora. Efectivamente, estamos perante uma obrigação com prazo estabelecido para o cumprimento. Não tendo o pagamento sido feito dentro do prazo (30 dias após a sentença homologatória), incorreu a devedora em mora (art. 805º do CCivil). Improcede assim, embora afinal irrelevante para o caso vertente, esta questão.
Mas já tem razão a Apelante quando diz que os efeitos da mora não podiam ser reclamados na execução (assunto este a que a sentença recorrida também não dedica qualquer atenção). Isto é assim porque o título executivo, que vale exclusivamente pelos seus termos (v. art. 45º do CPC), não prevê o pagamento de juros pela mora. Daqui que, mesmo sendo estes efectivamente devidos face ao direito substantivo, terão que ser reclamados em acção autónoma e não na presente execução. Procede pois esta questão.

Finalmente, quanto à questão identificada supra em d):

É certo que o crédito que os Exequentes detêm sobre a Apelante foi entretanto objecto de penhora. Isto significa que a devedora (a Executada) está agora inibida de entregar aos exequentes aquilo de que é devedora perante eles. Mas isto reporta-se ao contexto da execução, nada tem a ver com o objecto da presente oposição. Esta visa aferir se o não pagamento da quantia exequenda foi justificado, e a isto é indiferente a questão subsequente (embora conexa) da penhora. Daqui que ao tribunal recorrido apenas será exigível que, no âmbito da execução, cumpra a penhora (cativando qualquer quantia resultante de pagamento alcançado na execução), e não que proceda autonomamente a qualquer pagamento directo à Fazenda Pública como preconiza a Apelante.
Improcede pois a questão em destaque.

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Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes, a sentença recorrida.

Regime de custas:

A Apelante é condenada nas custas da apelação.

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Guimarães, 20 de Outubro de 2011
José Rainho
Carlos Guerra
Conceição Bucho