Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3118/06.2TBVCT-AM.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO
EXCEPÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I- Tendo transitado em julgado a sentença que declarou a insolvência e nela não tendo sido conhecida a excepção de coligação ilegal, não pode a parte vir posteriormente arguir essa excepção, por colidir com os efeitos do caso julgado.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório
T. declarada insolvente nos autos do processo principal, veio interpor recurso do despacho de 30.06.2011 que indeferiu o por si requerido a fls 164: o conhecimento e a declaração que era ilegal a coligação da insolvente com o insolvente e o pedido de elaboração de uma lista de créditos reconhecidos para a recorrente individualizada.
Apresentou as seguintes conclusões:
.Apesar de ter ocorrido a declaração de insolvência de forma conjunta nos autos, a questão dos credores e do património tem de ser tratada respeitando o direito substantivo e a Constituição da República Portuguesa.
.Tratando-se de pessoas distintas a lista de credores tem de individualizar inequivocamente quais os credores de cada pessoa com respeito pelo direito substantivo.
.O direito processual não pode ser um entrave à afirmação do direito substantivo, funcionando o direito constitucional no limite como válvula de segurança.
.O caso julgado não se impõe aos erros materiais os quais podem ser corrigidos a qualquer momento.
O despacho recorrido violou os artºs 1º, 159º, e 266º do CIRE, os artºs 601º e 1305º do CC e os artºs 20º nº 5, 62º e 18º da CRP e os artºs 493º nº 2 e 494º al f), 495 e 288 nº 1 alínea e) do CPC.

O Ministério Público contra-alegou, invocando, em síntese:
O presente processo de insolvência iniciou-se por impulso do credor J. contra L. e a sua esposa, a ora recorrente.
O crédito reclamado sobre o réu marido foi contraído na constância do matrimónio, não obstante, à data do pedido de insolvência, já se encontrar divorciado.
O Tribunal a quo proferiu sentença, em 5 de Março de 2007, declarando a insolvência do réu marido e absolvendo a ré mulher do pedido por falta de alegação de factos constitutivos da comunicabilidade da dívida.
Incorformado, o credor, requerente da insolvência, J. interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães julgado procedente o recurso e declarado a recorrente insolvente, por acórdão de 12 de Julho de 2007, o qual transitou em julgado.
Só em 15 de Março de 2011, a recorrente reagiu contra o acórdão proferido suscitando a sua nulidade/inexistência jurídica.
O despacho do relator mencionado no recurso, indeferiu a pretensão da recorrente e esclareceu que a que a questão processual colocada está coberta pelo caso julgado material, motivo pelo qual, a excepção invocada não poderá ser conhecida, não tendo a recorrente compreendido o alcance da decisão.
Relativamente à segunda pretensão da recorrente –a elaboração individual de uma lista de credores - verifica-se que o requerido é extemporâneo, não só porque já decorreu o prazo de impugnação da relação de créditos apresentada pelo Sr. AI, mas também porque a sentença de verificação desses mesmos créditos, quanto a si, já transitou em julgado.

Objecto do recurso

Considerando que:

. o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso;

. nos recursos apreciam-se questões e não razões; e,

. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

as questões a decidir são as seguintes:
.se, tendo sido proferida sentença transitada em julgado que decretou a insolvência onde não foi conhecida a excepção da coligação ilegal, pode essa excepção ser conhecida em momento posterior; e,
.se deve ser elaborada uma lista de credores para cada um dos insolventes.

II – Fundamentação
O quadro factual a considerar é o que consta do relatório e ainda os seguintes factos com base nos elementos constantes nos autos de recurso, processo principal e apensos:
.J. requereu a declaração de insolvência de L. e de T., alegando serem casados entre si.
.Foi decretada a insolvência do requerido L. e a requerida foi absolvida do pedido.
.O requerente interpôs recurso da decisão que absolveu a requerida e por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Julho de 2007 foi revogada a sentença e foi declarado que a requerida se encontrava em estado de insolvência.
.A requerida recorreu para o STJ deste acórdão, recurso que não foi admitido.
.A requerida reclamou para o STJ tendo a reclamação sido desatendida por despacho de 18 de Janeiro de 2008.
.Notificada desta decisão veio então a recorrida pedir a reforma do acordão e a sua substituição por outro que declare a sua solvência, o que foi indeferido por acórdão de 6 de Março de 2008.
.A requerida pretendeu então interpor novo recurso deste acórdão, o que foi indeferido, por se ter considerado a decisão irrecorrível, por despacho de 25.06.2008.
.A requerida requereu a aclaração do despacho no terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo, sem pagar a multa, tendo sido notificada nos termos e para os efeitos do nº 6 do artº 145º do CPC
.A requerida veio requerer a dispensa do pagamento da multa, o que foi indeferido.
.A requerida interpôs recurso desse despacho que não foi admitido, por despacho de 20.10.2008.
.No apenso D destes autos, no Tribunal da Relação de Guimarães, o relator veio a proferir despacho em 29.04.2011, sobre a nulidade/inexistência arguida pela ora recorrente do acórdão que declarou a sua insolvência.
.É o seguinte o teor do despacho:
…Sustenta a sua posição no facto de ter ocorrido coligação ilegal, pois à data do início do processo estava já divorciada do requerido e desde 18.10.2005. Refere tratar-se de pressuposto processual insuprível. Não indica norma que fundamente tal conclusão.
A nulidade invocada nesta fase carece de sentido.
O processo iniciou-se a 27.07.2006 indicando-se os requeridos como casados, conquanto fossem já divorciados. Não obstante tal indicação não houve reacção por parte da ora requerente. As normas dos artigos 264º e 86º, 1 do CIRE têm incidência exclusivamente processual. O que ocorreu nos autos foi uma coligação ilegal.
Trata-se de excepção dilatória atípica de conhecimento oficioso que implica a absolvição da instância – artºs 493, 2; 494 al f), 495 e 288,1 ,e) do CPC.
Ora, o processo prosseguiu sem que a excepção fosse invocada tendo sido proferida decisão com trânsito em julgado.
A questão processual fica a coberto do caso julgado. Nos termos do artº 672º do CPC as sentenças que recaiam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
A questão do património pode e deve ser tratada de acordo com a lei e a realidade substantiva, não sendo pelo facto de ter ocorrido a declaração em processo conjunto que poderá ter implicações nessa realidade.
Verifica-se igualmente caso julgado material nos termos do artº 673º do mesmo diploma, pelo que careceria de sentido anular o processado nesta fase.
Indefere-se o requerido.
Custas do incidente pela requerente.”
.À data em que foi requerida a insolvência da recorrente, esta já se encontrava divorciada de L.

Do Direito
Invocando como fundamento o despacho do relator de 29 de Abril de 2011 proferido no apenso D, veio a recorrente requerer que se declarasse a excepção de coligação ilegal e fosse elaborada lista de credores reconhecidos individualizada para a recorrente.
Ora, com o devido respeito, não consideramos que do despacho proferido em 29.04.2011 resulte o que a recorrente alega. Em lugar algum se diz que a recorrente ainda está em tempo para suscitar a apreciação da excepção dilatória de coligação ilegal. O processo que é um encadeado de actos obedece a um especial formalismo; há momentos adequados para suscitar certas questões.
Como se referiu na decisão singular desta Relação proferida no apenso D, de 29.04.2011, “O processo prosseguiu sem que a excepção fosse invocada tendo sido proferida decisão com trânsito em julgado.
A questão processual fica a coberto do caso julgado. Nos termos do artº 672º do CPC as sentenças que recaiam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.
A extensão do caso julgado abrange não só os fundamentos invocados pelo autor, mas também os meios de defesa invocados pelo réu Em anotação ao artº 96º do CPC, José Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil anotado, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, vol. 1º, p. 171 e 172, parecem defender uma posição diferente, embora se aproxime, em determinadas situações., as excepções invocadas e até as que poderia ter invocado e não invocou, pois toda a defesa deve ser deduzida na contestação, contra o pedido deduzido, desde que relativa à relação controvertida, tal como ela existia à data da sentença Conforme se entendeu no Ac. do TRG de 26.05.2011, proferido no proc. nº 236/11, disponível em www.dgsi.pt. e foi por nós defendido no Ac. do TRG de 12.07.2011, proferido no proc. 4959/10, igualmente acessível em www.dgsi.pt. .
No processo de insolvência os devedores, nos termos do nº1 do artº 29º do CIRE Código da Insolvência e Recuperação de Empresa, aprovado pelo DL 53/2004, de 18.03., são citados pessoalmente quando a petição tiver sido apresentada por terceiro, podendo deduzir oposição no prazo de 10 dias (nº 1 do artº 30º) e são advertidos da cominação prevista no nº 5 do artº 30º.
Ora, a recorrente no momento próprio, não invocou que se encontrava divorciada do requerido, podendo tê-lo feito, tendo apenas invocado a sua ilegitimidade, com fundamento em que a dívida invocada pelo requerente da insolvência não foi contraída em proveito comum do casal, mas antes no interesse de uma sociedade irregular entre o requerido, o requerente e outros.
É certo que nos autos era conhecido que o casamento dos requeridos foi dissolvido por divórcio em 18.10.2005, em data anterior à entrada da petição inicial a requerer a insolvência da recorrente e ex-marido, mas não foi extraída qualquer consequência jurídica desse facto, não tendo o Mmo Juiz nem a Relação oficiosamente pronunciado-se sobre a coligação passiva.
Permitir que vários anos após o trânsito em julgado da decisão que declarou a insolvência da recorrente, o Tribunal conhecesse a questão, era atentar contra o caso julgado e pôr em causa a segurança jurídica que este visa salvaguardar. Numa qualquer outra acção, não pode o réu, após o trânsito em julgado de uma decisão condenatória vir reagir alegando que afinal não era parte legítima, nem suscitar, como no caso, no apenso de reclamação e verificação de créditos que constitui um incidente do processo de insolvência, a alegada coligação ilegal.
Quanto ao pedido de listas de credores em separado para cada um dos insolventes:
Alega a recorrente que a circunstância de não existir uma lista de credores individual para cada insolvente é um erro material que pode ser corrigido.
Nos termos do artº 249º do CC o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta. E nos termos do nº 1 do artº 667º do CPC, cujas disposições são aplicáveis aos despachos, nos termos do nº 3 do artº 666º do CPC, se a sentença contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Não se vislumbra a existência de qualquer lapso material ou de qualquer inexactidão, omissão ou lapso manifesto que deva ser corrigido, sendo certo que a lei não obriga à elaboração de duas listas de credores, como pretende a recorrente.
Trata-se de uma dívida contraída numa data em que a recorrente era casada, comum por força do disposto na alínea c) do nº 1 do artº 1691º do CC, respondendo os bens comuns do casal e na sua falta ou insuficiência os bens próprios (nº 1 do artº 1695º do CC). Desconhece-se se neste momento os ex-cônjuges já procederam à partilha do seu património, em consequência da dissolução do casamento. Na liquidação do património não deixará de se atender a tal facto. Uma coisa é a lista de credores, outra diferente é o inventário e liquidação dos bens que deverá obedecer ao disposto no artº 266º do CIRE..
Invoca ainda a recorrente que a decisão recorrida violou os artigos 20º nº 5, 62º e 18º da CRP, não indicando nem qual dos números destes dois preceitos considera terem sido violados, nem de que modo estes artigos foram violados. Limita-se a alegar que foram violados e nada mais, o que só por si se afigura insuficiente.
Sempre se dirá, contudo, que não consideramos que tenha ocorrido qualquer violação dos mencionados preceitos legais.
Dispõe o artº 18º da CRP que:
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
E estatui o nº 5 do artº 20º 5: Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Finalmente, o artº 62º dispõe que :
.1.A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
.2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
Como referimos na liquidação de bens haverá que atender à titularidade dos bens, pelo não é violado o direito à propriedade privada e à sua transmissão previsto no artº 62º. Quanto ao nº 5 do artº 25º não vislumbramos sequer de que modo a decisão recorrida possa ter violado este artigo.
Não assiste, consequentemente, razão à agravante.

Sumário:
.Tendo transitado em julgado a sentença que declarou a insolvência e nela não tendo sido conhecida a excepção de coligação ilegal, não pode a parte vir posteriormente arguir essa excepção, por colidir com os efeitos do caso julgado.

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento aos agravos interpostos, confirmando as decisões recorridas.


Guimarães, 9 de Fevereiro de 2012
Helena Melo
Rita Romeira
Amílcar Andrade