Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1588/07.0TBFAF.G1
Relator: ISABEL ROCHA
Descritores: GRAVAÇÃO DEFICIENTE
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A omissão ou a imperceptibilidade das gravações da prova produzida em audiência, constituem nulidade atípica regulada pelos art.ºs 201.º e ss do CPC, caso as partes pretendam impugnar, por meio de recurso, a decisão da primeira instância que incidiu sobre a matéria de facto, uma vez que tal omissão influi no exame e decisão da causa, por impedir a parte de requerer a reapreciação da prova e o tribunal de fazer tal reapreciação.
II - Tal nulidade pode ser arguida, designadamente, na alegação do recurso.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
José… intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra Eugénio… , Maria… e Maria… pedindo que:
a) Se declare resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre o Autor e Réus em 6 de Julho de 2004, por incumprimento definitivo destes;
b) Se condenem os Réus a restituírem ao Autor, em dobro, o montante de € 10.000,00 que receberam deste a título de sinal;
Para tanto, alegou que celebrou com o Réu marido, no dia 06.07.2004, um contrato-promessa de compra e venda tendo por objecto o prédio rústico identificado na p.i., pelo preço de € 30.000,00, dos quais pagou imediatamente, a título de sinal e princípio de pagamento, o valor de € 10.000,00, tendo ficado acordado que a parte restante o preço seria paga no dia da celebração da escritura pública de compra e venda, a marcar pelos Réus até ao dia 30 de Setembro de 2004. Decorrido o prazo limite previsto, após vários contactos em que o Autor procurou obter dos Réus a marcação da escritura, este marcou a escritura, avisando os Réus desse facto. Os Réus não compareceram na data designada para celebrarem a escritura pública. Face ao comportamento contratual dos Réus e ao lapso de tempo decorrido desde a data inicialmente prevista para a celebração do contrato, o Autor perdeu o interesse na sua celebração.

O Réu Eugénio contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Excepcionou que o Autor não cumpriu a cláusula contratual 4ª que o obrigava a mudar, até à celebração da escritura, a servidão que onera o prédio prometido vender, pelo que não lhe assiste o direito a resolver o contrato. Acresce que, na sequência desta omissão do Autor, o Réu resolveu validamente o contrato-promessa, por carta registada com aviso de recepção de 13.02.2007.
Arguiu ainda a ilegitimidade das Rés Maria… , mulher do Autor, e Maria… , comproprietária do bem prometido, por não terem outorgado o contrato-promessa a que se reporta a presente acção e, consequentemente, não estarem vinculadas ao seu clausulado.
O Autor replicou, sustentando que a concretização da previsão da cláusula 4ª do contrato está dependente da existência de uma servidão a céu aberto de águas para rega de outro prédio dos Autores e que a cláusula em apreço foi colocada no contrato exclusivamente a favor e no interesse do Autor. Mais alegou que o Réu interveio no contrato-promessa por si e na qualidade de gestor de negócios das rés, suas mãe e esposa.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a arguida excepção de ilegitimidade das rés. Fixou-se a matéria assente e organizou-se a base instrutória.
Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância do legal formalismo.
Após decisão que incidiu sobre a matéria de facto controvertida, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
a) Declarou resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre Autor e o Réu Eugénio, por si a na qualidade de gestor de negócios das Rés, em 6 de Julho de 2004, por incumprimento definitivo do mesmo Réu ;
b) Condenou o Réu Eugénio a pagar ao Autor a quantia de e 20.000,00 (vinte mil euros) correspondente ao dobro do montante que aquele recebeu de sinal;
c) Absolveu as Rés Maria… e Maria… do pedido de condenação formulado pelo Autor.

O Réu Eugénio… veio arguir nulidade decorrente da imperceptibilidade de parte das gravações da prova produzida em audiência perante o tribunal de primeira instância, tendo sido proferido despacho que não conheceu da nulidade com o fundamento de que, estando proferida sentença, se esgotou o poder jurisdicional daquele tribunal.

Concomitantemente, o mesmo Réu apelou da sentença proferida, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1. Deve conhecer-se da questão prévia invocada sob o ponto I supra destas alegações, declarar-se a nulidade do acto de gravação lá referido, pela sua imperceptibilidade e por impedir mais cuidada e ampla impugnação da matéria de facto, ex vi, artigos 201, 203 e 205º do CPC, por o Tribunal não ter conseguido cumprir tecnicamente com a disciplina do artigo 685º B do CPC em ordem ao previsto no artigo 655º, nº 7 do mesmo código.
2. O facto levado aos provados sob o nº 12º, correspondente ao 6º da base instrutória, encontra-se erradamente julgado pois merecia resposta explicativa, em face do depoimento da testemunha José… , parcialmente transcrita supra e na totalidade no anexo, visto que nenhuma outra testemunha se pronuncia sobre esse facto, e também porque como se refere em III, o facto dado como provado sob o ponto 6, correspondente ao teor integral de carta remetida pelo recorrente ao A. na véspera da data para a qual aquele marcou a escritura, nos termos do artigo 376º do CC, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao recorrente, pelo que, só se compreende um facto quando explicado com o outro, e o Tribunal estava vinculado a tal resposta explicativa, nos termos que se expuseram em II.
3. Pelo menos o referido depoimento de José… (transcrito e não melhor referenciado pelas razões expostas em I e II), e o documento correspondente ao facto dado como provado sob o ponto 6, impunham decisão diversa quanto àquele facto 12, no sentido da explicação que tal carta comporta.
4. Os argumentos utilizados pelo Tribunal para a fundamentação da sentença “no que respeita à mora dos RR”; “no que respeita à resolução”; “no que concerne ao incumprimento definitivo pelo R”; e “no que respeita às circunstâncias do incumprimento”, padecem de errada interpretação do direito e da sua aplicação aos factos provados.
5. Com efeito, encontra-se provado o teor dos pontos 6 (carta de 13/02/2007 do R. ao A), 9, 15, 16 e 17, supra reproduzidos, que têm de ser entendidos de forma conjugada e crítica.
6. O teor do documento dado como provado sob o ponto 6 (carta dirigida na véspera da escritura pelo recorrente ao A), não mereceu qualquer impugnação e por isso se encontra assente nos seus precisos termos, fazendo prova plena nos termos do artigo 376º do CC quanto às declarações que o R. lá verteu, donde consta que o R. sempre aguardou que o A. realizasse as obras para proceder à marcação de escritura; que o pressionou para a realização das obras e marcação da escritura; que tal lhe causou problemas financeiros conhecidos, que foi o A. a pedir sucessivos adiamentos da escritura, e que em face de todo este comportamento, resolvia o contrato fazendo seu o sinal.
7. Nesta parte, o Tribunal não pode desconsiderar também o que venha a resultar da decisão do supra alegado sob o ponto II e sob a precedente conclusão segunda.
8. A matéria do sexto facto provado, é prova plena, por isso vinculada quanto à integralidade do texto, que impedia o Tribunal não só de interpretar como acessória a clausula 4ª do contrato-promessa, da mesma maneira que o circunstancialismo demonstrado e posterior ao negocio, à luz do direito vigente não permitia ao Tribunal concluir como se referiu supra em III, A), B), C) e D).
9. A conduta demonstrada do A., sempre implicaria venire contra factum proprium e abuso de direito previsto no artigo 334º do CC.
10. O atraso na marcação da escritura, é apenas imputável ao A., sempre em prejuízo do recorrente que se viu privado do restante do sinal não obstante o ter exigido.
11. Não resta senão concluir pela licitude da resolução do contrato operada pelo recorrente, e pela licitude da pretendida pelo A. e determinada pelo Tribunal.

O apelado contra alegou, pugnando pela manutenção do decidido na primeira instância.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Questão Prévia
Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, cumpre, em primeiro lugar, que nos pronunciemos sobre a nulidade, arguida em sede de recurso, decorrente da alegada imperceptibilidade de parte da gravação da prova pessoal produzida em audiência.

Com interesse para a decisão importa considerar o seguinte circunstancialismo:
O ora recorrente requereu a gravação da prova produzida em audiência;
Procedeu-se à gravação da prova pessoal produzida em audiência, como está exarado nas actas das duas sessões da audiência, ficando registada, na primeira sessão, em suporte informático disponível no tribunal e, na segunda, através de sistema de gravação portátil (cassete) dado que, por não estar disponível qualquer sala de audiência, o julgamento decorreu no gabinete do Mm.º Juiz a quo.
Constatámos, depois de ouvir as ditas gravações que aquelas que estão registadas em suporte informático e que se referem à primeira sessão da audiência que teve lugar a 21/06/2010, designadamente as que se referem aos depoimentos de parte do réu Eugénio e do Autor Alberto e bem assim a do depoimento da testemunha Alberto… , são em grande parte imperceptíveis (apenas as gravações registadas na segunda sessão em “cassetes” são perfeitamente audíveis). Já quanto à testemunha Hélder… , verificámos que, na dita sessão de 21/06, a mesma apenas foi identificada e ajuramentada nos termos dos art.ºs 559.º e 635.º do CPC, tal como ficou exarado em acta. O depoimento desta testemunha teve lugar na segunda sessão da audiência de julgamento, sendo a respectiva gravação (em cassete) perfeitamente audível.
As gravações da audiência foram entregues ao ora apelante que, em requerimento, alegou que o CD contendo o registo áudio dos depoimentos de parte e dos depoimentos das testemunhas Alberto… e Hélder… não era perceptível, requerendo a gravação de novo CD, o que foi deferido por despacho de 15/11/2010.
Alegando que o novo CD mantinha as deficiências anteriormente apontadas, arguiu o apelante, em 22 de Novembro de 2010, na primeira instância, a nulidade decorrente da imperceptibilidade das referidas gravações, decidindo-se não conhecer de tal nulidade, com o fundamento de que o poder jurisdicional do tribunal estava esgotado por já ter sido proferida sentença.
A mesma nulidade foi igualmente deduzida em sede de alegações de recurso, onde foi impugnada a matéria de facto, sustentando o apelante que deve ser ordenada a repetição dos depoimentos de parte e testemunhais cuja gravação é inaudível.

O DIREITO
Dispõe o art. 522º-B, do CPC, que as audiências finais e os depoimentos nele prestados são gravados sempre que alguma das partes o requeira por não prescindir da documentação da prova nela produzida.
A gravação deve ser efectuada por sistema sonoro, nos termos que constam do art. 522º-C do CPC.
O DL 39/95 de 15 de Fevereiro, veio estabelecer a possibilidade da gravação das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, regulamentando a documentação da prova por via de gravação áudio e vídeo, com a finalidade de garantir a efectiva possibilidade de um 2º grau de jurisdição em sede de reapreciação da matéria de facto, aditando ao Código de Processo Civil os arts. 522º-A, 522º-B, 522º-C, 684º-A e 690º-A, referentes ao registo dos depoimentos, à forma de gravação e ao modo processualmente previsto para se proceder à impugnação da matéria de facto em sede de recurso.
De tais normas decorre que, quer a omissão de gravação quer a gravação inaudível ou imperceptível, que equivalem à falta de gravação, constituem nulidades prevista no art. 201º do CPC, uma vez que influem no exame e decisão da causa: pretendendo a parte requerer, em sede de recurso, a reapreciação da matéria de facto, a falta ou a deficiência de gravação impedem-na de dar cumprimento às disposições legais aplicáveis, designadamente aos ónus que a lei impõe, actualmente, no art.º 685-B do CPC, assim como fica o tribunal impedido, em qualquer caso, de proceder à reapreciação de tal matéria.
Revertendo ao caso concreto, verificamos que as gravações dos depoimentos das partes e da identificada testemunha Alberto… , que depuseram na primeira sessão de julgamento, são parcialmente imperceptíveis.
Tal deficiência influi no exame e decisão da causa uma vez que, pretendendo o apelante impugnar a matéria de facto fixada na primeira instância, está este tribunal impedido de reapreciar tal matéria.
Por outro lado, entendemos que a nulidade em causa foi atempadamente arguida.
Quanto ao prazo em que deve ser arguida a nulidade, a jurisprudência tem-se dividido em três orientações distintas:
A nulidade deve ser arguida no prazo de dez dias a partir da notificação da sentença;
O prazo de arguição, de dez dias, decorre a partir da entrega da cópia da gravação;
Tal prazo só se preclude após decurso do prazo para interposição de recurso (e de apresentação de alegações de recurso para impugnação da matéria de facto).
Não sufragamos a primeira orientação.
Nos termos do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15.2, a gravação é feita, em regra, com equipamento existente no Tribunal e executada por funcionários de justiça – arts. 3º, nº1 e 4º do citado Decreto-Lei.
Se ocorrerem anomalias na gravação, dispõe-se no referido DL que “ se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade” (art. 9º).
Não é pois às partes que incumbe o ónus de controlar a qualidade das gravações realizadas, nem tal lhes é possível verificar, pois a falta de gravação ou a sua deficiência não são imediatamente perceptíveis.
Considerando-se que à nulidade decorrente de anomalias que venham a ocorrer na gravação, se aplicam o regime das nulidades atípicas, sobre o prazo de arguição rege no artº 205º - nº1, 2ª parte, do Código de Processo Civil, que dispõe que “ (…) o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”, pois que no próprio acto de realização da “aparente” gravação à parte não é possível percepcionar a falha técnica no registo.
No caso em apreço, adoptando-se qualquer das duas últimas correntes jurisprudenciais referidas, temos de concluir pela tempestividade da arguição da nulidade: depois de constatar que o registo áudio da prova produzida na primeira sessão de julgamento apresentava deficiências, sendo em parte inaudível, solicitou o apelante a gravação de novo CD, o que foi deferido por despacho de 15/11/2010. Logo em 23/11/2010, o apelante, para o caso de não ser possível obter novo CD com gravação perceptível, arguiu a nulidade em causa, fazendo-o também nas alegações de recurso.
Termos em que deve julgar-se verificada a arguida nulidade decorrente da imperceptibilidade parcial dos depoimentos de parte do Réu Eugénio… e do Autor José… e bem assim da testemunha Alberto… , uma vez que tal deficiência determina a impossibilidade de reapreciação da matéria de facto por este tribunal que, assim, não dispõe de todos os elementos probatórios que permitem tal reapreciação, uma vez que o apelante pretende impugnar tal julgamento, nos termos dos art.º 712º do Código de Processo Civil.
Em consequência, deve ser anulado o acto viciado, e os actos posteriores que dele dependam, repetindo-se os depoimentos de parte e da identificada testemunha, anulando-se todos os termos posteriores do processo, designadamente a decisão que incidiu sobre a matéria de facto e a sentença recorrida.
Fica assim prejudicado o conhecimento das demais questões objecto do recurso.

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do TRG, em julgar procedente a apelação no que concerne à questão prévia suscitada, anulando-se parcialmente o julgamento e os termos posteriores do processo, designadamente a decisão que incidiu sobre a matéria de facto e a sentença recorrida, determinando-se, em conformidade, a repetição da inquirição das partes e da identificada testemunha Alberto… .

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 7 de Julho de 2011
Isabel Rocha
Manuel Bargado
Helena Melo