Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5006/13.7TBBRG-G.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: CIRE
PLANO DE INSOLVÊNCIA
NÃO APROVAÇÃO
NOVA PROPOSTA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - O devedor, os credores e os demais legitimados, nos termos do artigo 193º do CIRE, podem apresentar, ao longo do processo, mais do que uma proposta de plano de insolvência.
2 – A apresentação de um plano de insolvência pelo devedor, que veio a ser reprovado, não é impeditivo de, posteriormente, o mesmo fazer uma nova proposta.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
Nos autos de insolvência de “F..., Lda.”, após ter sido homologado, por decisão proferida em 1.ª instância, plano de insolvência, veio tal decisão a ser revogada por acórdão proferido neste Tribunal.
Aí se considerou que não consta do plano de insolvência o modo como serão satisfeitos os créditos reclamados, limitando-se a concluir pela venda das instalações industriais da insolvente, o que se traduz em violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, uma vez que, não estando previsto qual a forma de pagamento dos credores e não existindo sentença de verificação e graduação de créditos, o plano viola frontalmente o disposto no artigo 215.º do CIRE, pelo que o mesmo não deve ser homologado.
Na sequência do Acórdão deste Tribunal, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Atento o teor do Acórdão que revogou a sentença homologatória do plano de insolvência, o processo prossegue para liquidação do activo de acordo com o regime supletivo legal. Notifique.»
Veio, então a insolvente requerer a suspensão dos autos de liquidação do activo e a convocação de Assembleia de Credores destinada a apreciar e deliberar plano de insolvência respeitante à liquidação da massa insolvente, plano esse “que a requerente se obriga a apresentar e que, retratando na íntegra as condições já constantes do anterior plano de insolvência, supra as suas deficiências, nomeadamente através da estipulação das condições de pagamento e rateio com credores, sanando-se assim a invocada ilegalidade”.

Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho:
«Foi já proferido despacho, transitado em julgado, a determinar o prosseguimento dos autos para liquidação do activo, pelo que se indefere o requerido pela insolvente e alguns credores da massa insolvente. Notifique.»

É deste despacho que vem interposto recurso pela insolvente, que finaliza a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
- Por Douta Decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, foi indeferido pedido de convocação de assembleia de credores destinada a deliberar novo plano de insolvência destinado à liquidação da massa insolvente que a esse propósito foi apresentado pela ora recorrente.
- De acordo com a decisão sub-judice, indeferiu-se tal pedido, por ter sido já proferido anterior Despacho, transitado em julgado, determinando o prosseguimento dos autos para liquidação do activo.
- Com tal Douto Despacho, não se pode a recorrente conformar, já que o mesmo, salvo o devido respeito, não só não constitui caso julgado material, como também se suporta em errónea interpretação do Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que lhe é anterior.
- Nesse referido Acórdão, foi decidido que “ Não se tendo previsto qual a forma de pagamento dos credores, não existindo Sentença de verificação e graduação de créditos, o plano viola frontalmente o disposto no artº 215º do CIRE, pelo que o mesmo não deve ser homologado”
- Ora, salvo melhor opinião, desde já se diga que do Douto Acórdão em referência não resulta necessariamente a obrigatoriedade dos autos de insolvência prosseguirem com a liquidação do acervo da insolvente nos termos gerais, sendo certo que, nem resulta do seu texto, nem sequer do seu espírito.
- Com efeito, a Douta Decisão em referência apenas determinou a revogação daquela concreta Sentença homologatória da deliberação da assembleia, por entender que a mesma violava o disposto no artº 215º do CIRE, sendo completamente omissa no que concerne aos destinos dos autos de insolvência.
- Na verdade, a única questão que foi colocada à apreciação do Douto Tribunal da Relação foi a de se saber se o Plano de Insolvência, em concreto, violava ou não os ditames daquele normativo.
- Tendo tal Acórdão se pronunciado sobre tal questão, nada disse porém para além disso, limitando-se a sentenciar a ilegalidade da decisão em Primeira Instância, pela circunstância do plano em causa não ter previsto a forma de pagamento dos credores.
- Sendo certo que, que ao Tribunal da Relação só era pedido que se pronunciasse sobre uma questão jurídica em concreto, qual seja a da suposta violação do artº 215 do CIRE, ter-se-á que entender que a Decisão proferida unicamente se debruçou sobre tal questão, e já não sobre qualquer outra, nomeadamente, a de se saber a forma de prosseguimento posterior dos autos.
- Consequentemente, por força da prolação de tal Douto Acórdão, nenhum impedimento existiria, para que se deferisse o pedido de prosseguimento dos autos com a marcação de nova assembleia de credores, e a esta fosse submetido novo plano de insolvência, circunscrito ao modo de liquidação da massa insolvente.
- Como tal, a primeira das Decisões proferidas em Primeira Instância extravasa o âmbito e o teor da parte dispositiva do Douto Acórdão em causa, não sendo estribadas em qualquer decisão imperativa no sentido que lhe foi dado.
- Por outro lado, de acordo com o preceituado no artº 192º do CIRE, que estabelece os princípios gerais respeitantes ao plano de insolvência, o pagamento dos credores sobre a insolvência ou a liquidação da massa insolvente, pode ser objecto de plano de insolvência, que derrogue a lei geral.
- De acordo com tal normativo, ter-se-á de concluir que a liquidação universal do património do devedor dever-se-á manter como o modelo supletivo na lei, para ocorrer aos interesses dos credores, constituindo deste modo, o plano de insolvência, a alternativa para esse efeito.
- Com base neste normativo, que consagra o princípio da primazia dos credores, e da satisfação dos seus créditos, é hoje Doutrina e Jurisprudência pacifica e dominante que, é possível a adopção de um plano de insolvência que não integre qualquer medida destinada a assegurar a continuidade da empresa, mas que outrossim, constitua tão somente um plano de liquidação da massa insolvente por um modo diferente daquele que resultaria da aplicação do regime supletivo previsto na lei.
- De acordo com tal princípio, ter-se também entendido, de acordo aliás com os normativos vazados no artº 156º do CIRE que, não há um momento próprio ou limite para a assembleia de credores poder apreciar um plano de insolvência que lhes seja submetido à apreciação, o que significa que, podem deliberar num determinado sentido numa assembleia, e posteriormente, deliberar em sentido diverso, em momento posterior.
- Ainda de acordo com tal princípio, podem também os mesmos credores, a todo o tempo, no decurso do processo, propor aos seus pares a adopção de um plano de insolvência.
- Se tal faculdade existe, tal qual ela vem na lei, e em concreto, no referido normativo (artº 156º) também será de admitir a mesma, podendo os credores deliberar após a revogação de anterior deliberação.
- Assim, parece claro que competirá sempre à assembleia de credores, a todo o tempo, e durante o decurso do processo de insolvência, e mesmo após a revogação da anterior deliberação, a faculdade de fazer aprovar plano de insolvência que derrogue plano anterior, sendo que, tal faculdade se encontra expressamente consagrada no nº 6 do artº 156º do CIRE, que expressamente estipula que “A assembleia pode, em reunião ulterior, modificar ou revogar as deliberações tomadas.”
- Tal faculdade prevista no invocado artº 156º do CIRE, é aliás, o corolário do princípio da primazia dos credores e da satisfação dos seus direitos e interesses que se encontra plasmado no artº 1 do CIRE.
- A satisfação dos interesses dos credores poderá ser obtida ou através da manutenção e recuperação da própria empresa insolvente, ou então, através da liquidação do seu património, liquidação essa que por seu turno, nos termos do disposto no artº 193º do dito diploma legal, liquidação essa que se poderá obter através das regras supletivas plasmadas na lei, ou então, de acordo com plano de liquidação aprovado pelos credores.
- Tal plano de liquidação, como é óbvio, deverá obedecer a certos imperativos legais que não podem ser violados.
- No entanto, se é certo que não podem os credores aprovar plano que contrarie preceitos imperativos da lei, e certo também que tal plano, de acordo aliás com o preceituado no artº 156º do CRE, pode ser apresentado a todo o tempo, e durante o decurso dos autos, e concretamente durante os autos de liquidação da massa insolvente.
- Se tal plano pode ser apresentado a todo o tempo, o que parece evidente, será certo que, o poderá ser, independentemente de Decisões anteriores, transitadas ou não em julgado, que tiverem ordenado o prosseguimento dos autos de acordo com o regime supletivo.
- Como tal, e consequentemente, quer porque o teor do Douto Acórdão do Tribunal da Relação não determinava necessariamente que os autos prosseguissem para liquidação de acordo com o regime supletivo, o que conduziu a errada aplicação do mesmo por parte do Douto Tribunal de Primeira Instância, quer porque, as decisões proferidas posteriormente não constituem em si decisões transitadas em julgado, já que a faculdade atribuída aos credores, pode ser concretizada a todo o tempo, sempre importará revogar a decisão proferida me Primeira Instância, decisão essa que indeferiu o pedido de marcação de nova assembleia para apreciação de novo plano de insolvência, expurgado dos supostos vícios de que enferma o anterior.
- Consequentemente, tal decisão de que ora se recorre, e que, repita-se, não seria nunca impeditiva de apresentar novo plano de insolvência, incorre em incorrecta interpretação e aplicação do Direito, em errónea interpretação do teor do Douto Acórdão proferido por este Tribunal da Relação, violando concretamente, os artºs 609º, 619º e 621º todos do CPC, bem como os artºs 1º, 156º, nº 6 e 193º, todos do CIRE, entre outros.
- Consequentemente, ainda, deverá a Douta Decisão de que ora se recorre ser revogada, e substituída por outra que defira a marcação de nova assembleia de credores, para que na mesma seja posta à apreciação dos credores novo plano de insolvência para liquidação da massa insolvente, expurgado dos vícios de que o primeiro supostamente padecia, pois que assim se fará inteira, cabal e já costumada JUSTIÇA.

O Ministério Público contra alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A única questão a resolver traduz-se em saber se pode ser designada assembleia de credores para aprovação de novo plano de insolvência depois de ter sido revogada decisão que homologou o plano anteriormente apresentado.

II. FUNDAMENTAÇÃO
A matéria de facto é a que resulta do relatório que antecede.

Averiguemos, então, se pode ser posto à apreciação dos credores um novo plano de insolvência, após o primeiro ter sido recusado (revogada a sentença que o homologou).
Estabelece o artigo 192º, nº 1, do CIRE, que “o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos titulares daqueles créditos e pelo devedor, bem como a responsabilidade do devedor depois de findo o processo de insolvência podem ser regulados num plano de insolvência em derrogação das normas do presente Código”.
A finalidade do processo de insolvência – satisfação dos interesses dos credores – pode ser alcançada por uma de duas alternativas: «a liquidação universal do património do devedor, concretizada de acordo com o modelo supletivo definido na lei, e consequente repartição do produto obtido pelos credores; ou pela forma prevista num plano de insolvência por eles aprovado, o qual, na expressão do preceito indicado, pode, nomeadamente, basear-se na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente» - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume II, pág. 37.
Como se refere no preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de Março, «o objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores (…) Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado”
No caso de que nos ocupamos, foi o plano de insolvência homologado por sentença que, posteriormente, veio a ser revogada em virtude do plano não ter previsto a forma de pagamento dos credores.
Pretende a insolvente apresentar novo plano que supra aquela deficiência, pretensão que lhe foi indeferida em 1.ª instância.
Julgamos que mal e vejamos porquê.

A questão em análise prende-se com saber se, apresentado um plano de insolvência que veio a ser reprovado, pode ser apresentado um novo plano de insolvência.
Ora, respondendo à questão, dir-se-á que o CIRE não consagra qualquer proibição de se apresentar um plano de insolvência, após o trânsito em julgado da decisão de não aprovação de um anterior. Não existe qualquer norma que impeça os credores ou o devedor de, ao longo do processo, apresentar uma proposta de plano de insolvência, desde que de conteúdo e estrutura diferentes daquela que anteriormente não foi aprovada – neste sentido veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 04/11/2013 (processo n.º 835/12.1TBPNF-T.P1, relatado por Augusto Carvalho) e o Acórdão da Relação de Guimarães de 04/06/2013 (processo n.º 1147/11.3TBVCT-O.G1, relatado por Beça Pereira), aceitando-se em ambos a existência de mais do que um plano de insolvência (o 2.º destinado a colmatar as falhas do primeiro que conduziram à sua não homologação).
Tal é o que resulta da análise conjugada dos artigos 156.º, n.º 6, 206.º, n.º 1, 207.º, n.º 1, alínea d) e 209.º do CIRE, prevendo-se que, sempre que no decurso do processo de insolvência seja apresentado um plano de insolvência, se realize uma assembleia de credores para discutir e votar tal plano, devendo o juiz, a requerimento do respetivo proponente, decretar a suspensão da liquidação da massa insolvente e da partilha do produto pelos credores da insolvência se tal for necessário para não por em risco a execução de um plano de insolvência proposto.
E o citado artigo 207º, nº 1, alínea d), dispõe que o juiz não admite a proposta de plano de insolvência, quando, sendo o proponente o devedor, o administrador da insolvência se opuser à admissão, com o acordo da comissão de credores, se existir, contanto que anteriormente tenha já sido apresentada pelo devedor e admitida pelo juiz alguma proposta de plano.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Volume II, pág. 94 «o que parece estar essencialmente em causa é evitar o recurso a propostas que se apresentem revestidas de um carácter eminentemente dilatório, traduzido na repetição de expedientes. São três as condições que devem concorrer, a saber: a iniciativa da proposta deve ter cabido ao próprio devedor (…); antes, há-de ter sido admitida pelo juiz uma outra proposta com a mesma origem, tanto fazendo, no entanto, que esteja ainda em curso o processo tendente à obtenção de uma decisão sobre ela ou que haja já sido rejeitada ou, mesmo, retirada; finalmente, é necessário que o administrador da insolvência, com o acordo da comissão de credores, se existir, se pronuncie contra a admissão».

Ou seja, ao contrário do entendimento que parece ter sido sufragado na decisão recorrida, o devedor, os credores e os demais legitimados, nos termos do artigo 193º, podem apresentar, ao longo do processo, mais do que uma proposta de plano de insolvência.
O facto de o Tribunal da Relação ter revogado a sentença homologatória do plano de insolvência anteriormente apresentado nos autos, ainda que por Acórdão transitado em julgado, não pode constituir fundamento para a não admissão da proposta de um novo plano de insolvência. E o mesmo se diga de ter sido já ordenada a liquidação do ativo de acordo com o regime supletivo legal, face ao que dispõe o artigo 206.º, n.º 1 do CIRE quanto à suspensão da liquidação a requerimento do proponente do plano de insolvência.

É claro que a recorrente não apresentou, ainda, o plano de insolvência. Contudo, requereu a suspensão da liquidação do ativo e a convocação da Assembleia de Credores destinada a apreciar e deliberar plano de insolvência, obrigando-se a apresentar um plano que supra as deficiências que o Tribunal da Relação encontrou no primeiro.
Assim, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a suspensão da liquidação do ativo, para que o recorrente possa apresentar o plano a que se comprometeu, seguindo-se o disposto nos artigos 208.º e seguintes do CIRE, nomeadamente, com a recolha de pareceres e convocação da assembleia de credores.

Sumário:
1 - O devedor, os credores e os demais legitimados, nos termos do artigo 193º do CIRE, podem apresentar, ao longo do processo, mais do que uma proposta de plano de insolvência.
2 – A apresentação de um plano de insolvência pelo devedor, que veio a ser reprovado, não é impeditivo de, posteriormente, o mesmo fazer uma nova proposta.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que defira a requerida suspensão da liquidação do ativo, a fim de que a devedora apresente o plano de insolvência a que se obrigou, seguindo-se o disposto nos artigos 208.º e seguintes do CIRE, nomeadamente, com a recolha de pareceres e a convocação da Assembleia de Credores.
Custas pela massa insolvente.
Guimarães, 23 de abril de 2015
Ana Cristina Duarte
Fernando Freitas
Purificação Carvalho