Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1178/09.1TAGMR
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
DESPACHO
CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/16/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUÍDA A COMPETÊNCIA AO 3.º JUÍZO CRIMINAL DE GUIMARÃES
Sumário: Sem prejuízo dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 358.º do CPP, não pode o tribunal, no intervalo das sessões de audiência de julgamento, por mero despacho, sem sequer ouvir previamente os demais sujeitos processuais, alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia, se a houver, e, em consequência, apreciar em concreto a sua competência.
Decisão Texto Integral: I- Relatório

No âmbito do Proc.º n.º 1178/09.1TAGMR em que é arguida Balbina F..., com os demais sinais dos autos, por despacho de 25 de Novembro de 2010, o M.º juiz do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães julgou este tribunal incompetente para o julgamento do processo em causa, por virtude de os factos imputados à arguida integrarem a prática de dois, e não um, crimes de violência doméstica (art. 152.º, n.º1, al. a) e n.º2, do Código Penal) puníveis abstractamente com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, e julgou competente para o efeito as Varas de Competência Mista de Guimarães, para onde ordenou a remessa dos autos.

Distribuído o processo à 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães, por despacho de 14 de Janeiro de 2011º M.ª juiz declarou este Tribunal incompetente por não se verificar qualquer das situações previstas no artigo 14.º do Código de Processo Penal (CPP).

Ambos os despachos transitaram em julgado.

O Ministério Público junto desta Relação suscitou o presente conflito negativo de competência.

Observado o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, apenas a Srª Procuradora-Geral Adjunta junto deste tribunal se pronunciou, no sentido de ser atribuída competência ao 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães.

Foram solicitadas, oficiosamente, diversas certidões de peças processuais que não instruíram o pedido inicial.

Tudo visto, cumpre decidir.

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II- Fundamentação

1. Factos relevantes
a) Em processo comum, com intervenção de tribunal singular, os arguidos João F... e Balbina F..., ambos com os demais sinais dos autos foram acusados pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal.
b) Após a realização da instrução, requerida por ambos os arguidos, foi proferida decisão instrutória a qual apenas pronunciou a arguida Balbina pela prática do aludido crime de violência doméstica.
c) Distribuídos os autos no Tribunal Judicial de Guimarães, por despacho de 17 de Setembro de 2010 foi designado o dia 22 de Novembro do mesmo ano para a realização da audiência de julgamento.
d) No dia 22 de Novembro de 2010 realizou-se a audiência de julgamento a qual veio a ser declarada suspensa para continuação no dia 13 de Dezembro de 2010, “com a audição das restantes testemunhas.”
d) Entretanto, em 25 de Novembro de 2010, o M.º juiz daquele 3ª Juízo Criminal ordenou que os autos lhe fossem conclusos e proferiu, na mesma data o seguinte despacho:
«Foi a arguida Balbina F... pronunciada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d) e n.º 2 do Código Penal, pelos factos constantes da acusação pública de fls. 62 e ss., pata a qual a decisão instrutória remete, ao abrigo do art.º 307.°, n.º 1 do Código de Processo Penal.
Só já no decurso da audiência de julgamento se constatou que os factos imputados à arguida integram a prática de dois dos referidos crimes, e não um, pois que da factualidade descrita na acusação resulta evidente a prática de maus-tratos e duas suas filhas, então menores e com ela vivendo.
Assim, estando em presença de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. ° 152.°, n.º 1, al. d) e n.º 2 do Código Penal, resulta que a pena abstractamente aplicável à arguida é superior a 5 anos.
Estatui o art.º 14.°, n.º 2, al. b) Código de Processo Penal que "compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a cinco anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, for inferior o limite máximo correspondente a cada crime."
O Ministério Público não fez uso da faculdade que lhe é concedida pelo art.º 16.°, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Em face do exposto, e nos termos das disposições legais supra-citadas, declaro este tribunal funcionalmente incompetente para proceder ao julgamento dos presentes autos e competente para o efeito as Varas Mistas do Tribunal Judicial de Guimarães.
Notifique e, oportunamente, dando a competente baixa, remeta os autos às Varas Mistas do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, dando-se sem efeito a audiência de julgamento.”
e) Remetidos os autos às Varas de Competência Mista de Guimarães onde foram distribuídos à 1ª Vara, por despacho de 14-1-2011 o M.º Juiz declarou este tribunal incompetente para proceder ao julgamento da arguida pelos factos por que vem pronunciada por “nos presentes autos não se verificar qualquer das situações previstas no artigo 14º do CPP. “
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2. Antes do mais importa deixar bem claro que não é este o lugar adequado para cuidar de saber se na situação aludida pelo M.º Juiz do 3ª Juízo Criminal de Guimarães ocorreu uma mera alteração da qualificação jurídica ou antes, como pretende o Ministério Público junto da 1ª Vara de Competência Mista, uma alteração substancial.

Não é este também o local adequado para saber se em caso da alteração da qualificação jurídica em que a nova moldura excede a competência do tribunal o processo deve ser remetido ao tribunal competente (como decidiu, v.g., o Ac. da Rel. do Porto de 16-1-2008, rel, José Piedade ou como parece estar implícito no Ac. da mesma Relação de 6-7-2005, rel. Fernando Monterroso, ambos in www.dgsi.pt) ou se, pelo contrário, como pretendem, embora com diferente fundamentação, Damião da Cunha (O Caso Julgado Parcial, Porto 2002, pág. 237, nota 247 e pág. 438) e Pinto de Albuquerque (Comentário ao Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, pág. pág. 890), o tribunal deve continuar a julgar o facto, mas não pode aplicar pena superior à estabelecida para a sua competência.
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3. Afastadas estas questões que extravasam o âmbito do conflito de competência, é claro qual dos tribunais é o competente para o julgamento.

§1. Como o Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de salientar, os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os pode­res de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (cfr., v.g., Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98, in www.tribunalconstitucional.pt).

Segundo Figueiredo Dias é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal (Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145; sobre o quadro constitucional justificante do princípio da vinculação temática do processo penal, vejam-se, também, os Acs. do Tribunal Constitucional n.º 173/92, 674/99 e 463/2004, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).

Um processo penal como o nosso, de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética (cfr. art. 283º do Código de Processo Penal), nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.

Como é sabido, esta matéria encontra-se regulada nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal (CPP), que distinguem entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo, assim, apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial dos factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis."

O artigo 359.º rege para a alteração substancial, determinando que uma tal alteração da factualidade descrita na acusação não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância (n.º1). Tratando-se de novos factos autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a comunicação da alteração ao Ministério Público vale como denúncia (n.º2). Ressalva-se a possibilidade de acordo entre o Ministério Público, arguido e o assistente na continuação do julgamento se o conhecimento dos factos novos não acarretar a incompetência do tribunal (n.º3), concedendo-se então ao arguido, sob reque­rimento, um prazo para preparação da defesa não superior a dez dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário (n.º 4).

Ao invés, se a alteração dos factos for simples ou não substancial, isto é, tal que não deter­mine uma alteração do objecto do processo, então o tribunal pode investigar e integrar no processo factos que não constem da acusação e que tenham relevo para a decisão do pro­cesso. A lei exige apenas, como condição de admissibilidade, que ao arguido seja comunicada, oficiosamente ou a requerimento, a alteração e que se lhe conceda, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (artigo 358.º, n.º 1), ressalvando, porém, o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa (n.º2).

Após uma conturbada evolução doutrinal e jurisprudencial o n.º3 do artigo 358º do CPP, aditado pela Lei n.º 59/98, veio tornar aplicável o mecanismo previsto para a alteração não substancial dos factos “quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

Quer isto dizer que fora do circunstancialismo previsto nos aludidos artigos 358º e 359.º do CPP não podem alterar-se os factos ou a qualificação jurídica descrita na acusação ou na pronúncia, se a houver.
Por outro lado, esta alteração do objecto do processo não pode ser decretada por simples despacho proferido nos autos e muito menos sem audição dos demais sujeitos processuais.

Ela está sujeita a prévia comunicação e deve ocorrer em audiência de julgamento (veja-se a situação descrita no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 518/98 que levou à prolação do Assento n.º 3/2000)
Aliás, não é por acaso que os artigos 358.º e 359.º, ambos do CPP se encontram integrados na fase do julgamento.

Como de forma emblemática se salientou no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 445/97:
“Naquelas garantias [refere-se às garantias de defesa], indubitavelmente, compreende-se um direito do arguido a poder pronunciar-se sobre as questões que, directa ou indirectamente, se repercutem na pretensão punitiva do Estado e da qual ele é alvo; e, em consequência, para que se efective adequadamente um tal direito, mister é que a lei adjectiva criminal preveja os adequados mecanismos possibilitadores, quer para alertar o arguido de que o tribunal do julgamento entende que não foi correcta a subsunção jurídico-penal levada a efeito na acusação ou na pronúncia - subsunção essa que implicaria uma condenação criminal menos grave do que aquela intentada pelo juiz do julgamento - quer para lhe facultar a oportunidade de quanto à nova qualificação exercer cabalmente os seus direitos de defesa.”

Retornando ao caso dos autos, se o Sr. Juiz do 3º juízo Criminal entendia que os factos constantes da acusação integravam não um mas dois crimes de violência doméstica e que tal alteração constituía uma mera alteração da qualificação jurídica, o que deveria ter feito era, antes do mais, quando da prevista reabertura da audiência, em 13-12-2010, comunicar tal alteração à arguida concedendo-lhe se ela o requeresse, tempo necessário à preparação da defesa, o que tudo deveria ocorrer em sede de audiência de julgamento.
Em síntese, sem prejuízo dos poderes do tribunal durante a audiência que lhe são conferidos pelo artigo 358º do CPP, não pode o mesmo tribunal, no intervalo das sessões de audiência de julgamento, por mero despacho, sem sequer ouvir previamente os demais sujeitos processuais, alterar a qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação ou na pronúncia, se a houver, e, em consequência, apreciar em concreto a sua competência.

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O 3º Juízo Criminal de Guimarães é, por conseguinte, o competente para o julgamento.
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III- Decisão
Pelo exposto e sem necessidade de maiores considerações, decido o presente conflito atribuindo a competência para o julgamento ao 3º Juízo Criminal de Guimarães.
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Sem tributação.
Comunique e notifique (n.º 3 do art. 36.º do CPP).
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Guimarães, 16 de Maio de 2011