Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
634/14.6T8VRL.G1
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: LOCAÇÃO DE ESTABELECIMENTO
SUBARRENDAMENTO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A locação de estabelecimento pressupõe que o gozo deste último, enquanto organização produtiva, foi cedido a outrem.

2- Não estando demonstrada essa organização, à data da locação do estabelecimento, este negócio jurídico não pode ser havido como tal.

3- A sanção pecuniária compulsória não pode ser aplicada quando está em causa uma obrigação de entrega de coisa certa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

1- José e esposa, Maria, instauraram a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra D. F., por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de Manuel, e demais herdeiros, V. P., L. P., Nuno e ainda X. Y., alegando, em breve resumo, que são donos do prédio urbano situado na Praça …, em Vila Real, desde o dia 20/01/2014.
Nessa altura, o rés-do-chão de tal prédio estava onerado com um contrato de arrendamento comercial celebrado em 22//05/1986, pelo anterior proprietário com Manuel, marido da 1ª Ré e pai dos 2º a 4.º RR.

No arrendado funcionava, então, um estabelecimento comercial, denominado “ED – Instrumentos Musicais”, no qual era exclusivamente exercida a venda e reparação de instrumentos musicais.

Em Fevereiro de 2014, porém, este estabelecimento foi encerrado. E, depois de lhe ter sido proposta a sua compra, foi o dito estabelecimento cedido à 5ª Ré, pelos demais RR, para aquela ali abrir uma típica “loja dos chineses”, na qual passaram a ser comercializados objectos tão diferentes como artigos orientais, pronto a vestir e acessórios, relógios, artigos para o lar e artigos de higiene pessoal, não mais se encontrando à venda instrumentos musicais ou feita a sua reparação.
Ora, esta cedência, sem a sua autorização, é ilícita.

Por isso, pretendem que se declare a resolução do contrato de arrendamento e se condenem os RR. a entregarem-lhes o locado livre de pessoas e bens, bem como os 2ºs a 4ºs RR a pagarem-lhes a quantia de 75,00€ por cada dia de ocupação do estabelecimento, contados do dia da prolação da decisão até efectiva entrega do locado.
2- Contestaram os RR. refutando estas pretensões, porquanto, em suma, o contrato de arrendamento em causa prevê que se exerça no locado o comércio, o que ainda actualmente se verifica, além de que esse comércio sempre teve e tem por objecto, essencialmente, o mesmo tipo de produtos.
Daí que peçam a sua absolvição dos referenciados pedidos.
3- Os AA. responderam.
4- Terminados os articulados e a instrução da causa, foi proferida sentença que julgou a presente ação improcedente e absolveu os RR. dos pedidos.
5- Inconformados, reagiram os AA. interpondo recurso que finalizam com as seguintes conclusões:

I Os factos provados sob os nºs 15 e 16 não o deveriam ter sido, por virtude de os elementos probatórios existentes nos autos, imporem uma resposta diferente aos mesmos.
II O primeiro dos elementos probatórios a impor uma resposta distinta aos pontos 15 e 16 é o depoimento da testemunha H. M., prestou o seu depoimento na audiência de julgamento de 22 de Junho de 2017 – cfr. acta com a refª CITIUS 3118053, e págs. 93, 94, 99 a 102, 105 e 109 110 da transcrição.
III Ao contrário do que consta da douta fundamentação da decisão aqui em crise, o depoimento da testemunha H. M. foi no sentido de que após um período em que o estabelecimento vendia um pouco de tudo – “misto de loja dos 300 e de instrumentos musicais -, o mesmo sofreu, a partir de 2007, uma adaptação do ramo, passando apenas a vender instrumentos musicais, e produtos ligados à música, e alguma tecnologia, não tendo sequer a dita testemunha ordens para vender os restos de stock dos artigos da loja dos 300.
IV Para além disso, existe também nos autos um depoimento de um outro funcionário do estabelecimento comercial de nome I. G., que foi arrolado como testemunha pelos aqui recorrentes e que depôs por carta precatória, de acordo com o douto despacho de 17-01-2017, notificado àqueles através de notificação com a referência CITIUS 30699483, de 20-01-2017.
V O depoimento da testemunha I. G. foi junto aos autos em 12/04/2017 – refª. CITIUS 1245320 – tendo o mesmo o seguinte teor:

Quesito nº6: Não chegou a conhecer o senhor Manuel, quando entrou para a loja, como funcionário, o comércio designava-se, efetivamente, “ED – Instrumentos Musicais” e era explorado pela senhora D. F..
Quesito nº8 Desde que entrou para a loja, há cerca de oito anos, e até à sua saída em 2011, o ramo de actividade do comércio era o da venda e reparação de instrumentos musicais.
Quesito nº11 Nada sabe, pois já havia saído da loja há bastante tempo.
Sobre os quesitos da contestação e da resposta à contestação aos quais deveria responder, disse o declarante nada saber.
VI Os quesitos 6º. 8º e 11º correspondem aos artºs.6º, 8º e 11º da p.i. – cfr. notificação com a referência CITIUS 30699483, de 20-01-2017, relativa ao douto despacho de 17-01-2017.
VII Apesar de se tratar de uma testemunha importantíssima, por virtude de ter conhecimento directos dos factos e de não ter qualquer interesse no desfecho da causa, o depoimento da testemunha I. G. não foi sequer mencionado na douta sentença, não havendo qualquer justificação para a desconsideração do mesmo, nomeadamente a explicitação das razões porque não foi considerado, o que constitui vício de fundamentação por violação do disposto no nº4 do artº 607º do Cód. Proc. Civil, vicio esse que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
VIII Para além dos depoimentos das duas testemunhas supra referidas, também os documentos juntos com a p.i. sob os nºs.5, 6 e 7, demonstram que a publicitação do estabelecimento denominado “ED – Instrumentos Musicais” apenas referia a venda e reparação de instrumentos musicais, inexistindo qualquer menção à comercialização de outro tipo de artigos.
IX Por fim, também os documentos nºs.5 a 16 junto com a douta contestação demonstram que após 2004 não há qualquer elemento relativo a compra de artigos vendidos no estabelecimento quando o mesmo funcionava como misto de loja dos 300 e de instrumentos musicais, sendo que, quanto esta matéria, os recorrentes requereram a junção aos autos de diversa documentação contabilística para prova daquilo que alegaram, documentação essa que não foi junta e que determinou a inversão do ónus da prova quanto aos pontos 1, 2, 3, 4, 7 e 8 dos temas de prova (cfr. primeiro parágrafo da Motivação da douta sentença).
X Face ao supra exposto verifica-se que os pontos 15 e 16 da matéria de facto dada como provada não o deveriam ter sido, uma vez que os elementos probatórios supra indicados impõem uma conclusão distinta daquela que foi retirada pelo Meritíssimo Tribunal a quo relativamente a tal materialidade.
XI Também os factos considerados como provados sob os ns.17, 19, 20 e 21 não o deveriam ter sido, por virtude de o processo conter elementos probatórios que impunham uma resposta diferente aos mesmos.
XII Em termos de depoimentos, o da ré X. Y., que confirmou que foi o seu marido, X. H. quem tratou de todo o negócio - cfr. Acta com a refª. CITIUS 3118053, de 22/06/2017, e pág.26 da transcrição -.
XIII O depoimento da testemunha X. H. - cfr. acta com a refª CITIUS 31273294, de 13/07/2017, e págs. 217 a 224, e 225 a 227 da transcrição – do qual resulta claramente que o mesmo foi feito com clara reserva mental e falta de seriedade, sendo que quando as perguntas eram incómodas o mesmo refugiava-se num alegado estado de doença, que não existia quando se sentia à vontade para responder a perguntas mais cómodas e previsíveis; para além disso não é sequer crível que um comerciante experimentado como a testemunha disse ser, não saber qual o valor dos bens que comprou – não indicou sequer um valor parcelar correspondente à totalidade das mercadorias – na medida em que, se efectivamente factura a venda dos mesmos, sempre teria de saber qual o valor total que teria de facturar para, pelo menos, cobrir o inerente custo.
XIV Mais, a referida testemunha chegou mesmo a dizer que o estabelecimento foi fechado, que os primeiros quatro réus ainda mantêm no locado um armazém e que o material lhe foi oferecido.
XV O primeiro elemento probatório a demonstrar a inexistência de qualquer cessão de exploração é o depoimento da testemunha H. M., que sobre a sua cessação do contrato de trabalho esclareceu que foi despedido porque lhe disseram que a loja ia encerrar - cfr. acta com a refª. CITIUS 3118053, de 22/06/2017, e págs.103 a 106 da transcrição.
XVI A corroborar o depoimento da testemunha H. M. na parte supra referida, o depoimento supra transcrito, consta também dos autos um ofício da Segurança Social, do qual resulta que em 21-04-2014 a referida testemunha foi despedida pelos autores com fundamento em extinção do posto de trabalho – cfr. notificação com a refª. CITIUS 30995317, de 20-04-2017.
XVII Para além disso, também o documento nº1 junto com a douta contestação, é um documento intitulado Locação Ou Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial, datado de 26 de Março de 2014, em cuja cláusula terceira se refere expressamente que “a locação envolve o estabelecimento no seu todo, abrangendo, o seu equipamento e móveis (…)”, referindo-se na cláusula sexta, alínea a), do mesmo que “(…) a primeira outorgante entrega o estabelecimento sem qualquer trabalhador”.
XVIII Ora, no dia 26 de Março de 2014 a testemunha H. M. ainda era funcionário dos réus, ou seja, ainda era trabalhador do estabelecimento comercial que aqueles exploravam, e cuja exploração declararam ceder, pelo que, a extinção do posto de trabalho é, por si só, demonstrativa que os réus se conluiaram entre si para simular a cessão de exploração.
XIX Isto porque, se o estabelecimento não foi encerrado definitivamente estando desde sempre prevista a sua reabertura pelos primeiros quatro réus, ou pela quinta ré, e considerando o disposto nos artºs 285º e 368º, ambos do Código do Trabalho, nunca haveria lugar à extinção do posto de trabalho da testemunha H. M., uma vez que o mesmo era o único funcionário do próprio estabelecimento.
XX Por outras palavras, a alegada cessão de exploração passaria, em tese, por permitir, alegadamente, que o “cessionário” utilizasse o espaço do estabelecimento na sua totalidade, sem pessoal e sem artigo do estabelecimento alegadamente cedido, não havendo qualquer exploração do negócio existente, mas sim um começar de novo para todos os réus, quer no momento da alegada cessão, quer no momento da entrega do estabelecimento.
XXI Logo por aqui, e tendo como referência as normas da experiência comum e da lógica, que se devem incluir no âmbito do direito probatório, a única conclusão plausível é no sentido de que os primeiros quatro réus encerraram de facto o estabelecimento antes de cederem o espaço à quinta ré, tendo simulado entre todos uma cessão de exploração para poderem contornar o regime legal que impede a mudança de ramo pelo cessionário.
XXII Também o depoimento do réu V. P., foi esclarecedor na intenção simulatória do contrato - cfr. acta com a refª. CITIUS 31273294, de 13/07/2017, e págs. 242 e 243 a 246 da transcrição – pois o mesmo confessou que, para além de não estarem abrangidos pessoal e mercadoria, os cedentes não só conservaram a propriedade da mercadoria que vendiam no estabelecimento como, em caso da sua venda durante o período da “cessão”, o produto obtido com a mesma é sua pertença.
XXIII Por outras palavras, o negócio que os réus fizeram teve de facto como objecto o estabelecimento comercial sito no prédio dos recorrentes, mas não se tratou de qualquer cessão de exploração, na medida em que, para além de não o estabelecimento não ter sido “transmitido” com todos os seus elementos, os cedentes ainda conservaram no mesmo mercadoria própria, cujo produto da venda reverte inteiramente para si, à parte do valor fixado para a “cessão de exploração”.
XXIV Nos termos do disposto nos artºs.352º, 356º, nº2 e 357º, as declarações de parte do co-réu V. P. - cfr. acta com a refª. CITIUS 31273294, de 13/07/2017 – teriam que ser valoradas pelo tribunal como declarações confessórias, uma vez que, pese embora o depoimento tenha sido prestado no âmbito de declarações de parte, das mesmas resulta um facto desfavorável ao depoente, que é parte no processo, não se aplicando por isso a regra de livre apreciação.
XXV Assim sendo, nunca deveriam ter sido dados como provados os pontos 17, 19, 20 e 21 dos factos provados.
XXVI Tendo em conta o supra exposto no ponto II da alínea a), os factos não provados sob as alíneas A) e B) deveriam ter sido provados com a seguinte correcção:

A. O estabelecimento comercial referido em 6. dos factos provados sempre foi denominado “ED – Instrumentos Musicais” e, desde pelo menos 2007, sempre se dedicou exclusivamente à venda e reparação de instrumentos musicais.
B. No referido rés-do-chão nunca outro estabelecimento foi lá explorado por Manuel para além do denominado ““ED – Instrumentos Musicais”, cujo ramo de actuação, desde pelo menos 2007, sempre foi no âmbito dos instrumentos musicais, quer no domínio da venda quer no da reparação dos mesmos.
XXVII Do mesmo modo, considerando o supra ditos nos pontos I e II da alínea A), também a materialidade constante da alínea D) dos factos não provados deveria ter sido considerada provada, uma vez que resultou claro que a loja “ED – Instrumentos Musicais”, pelo menos desde 2007, que se dedicava em exclusivo à venda de artigos e instrumentos e reparação destes últimos.
XXVIII Ora, tendo em conta que a clientela de uma loja de instrumentos musicais não é a mesma de uma loja de produtos orientais e/ou de pronto-a-vestir, facilmente se conclui que mesmo aceitando a tese dos réus, a mudança de clientela era algo que todos pretendiam, pelo que não se entende a posição do Meritíssimo Tribunal a quo, nesta, e nalgumas outras, matérias.
XXIX Sinteticamente, a diferença entre o trespasse e a cessão de exploração de estabelecimento prende-se, neste último instituto, com a desnecessidade de autorização do senhorio e a inexistência do direito de preferência deste, havendo apenas a obrigação de comunicação da celebração do negócio no prazo de um mês.
XXX “Para que haja estabelecimento comercial ele deve ter um conteúdo mínimo necessário para que, em face do ramo de actividade a que se destine, possa prosseguir esse escopo. Deverá, por isso, ter, necessariamente, alguns elementos – bens materiais ou imateriais ou certas posições jurídicas – uma designação e um objectivo, que dêem corpo ao escopo fundamental de qualquer estabelecimento: a realização de uma função produtiva, a que se pode chamar de aviamento, o qual englobará, pela ordem natural das coisas, a clientela” - Acórdão do TRC de 17-04-2012 221/09.0TBCDN.C1, publicado in www.dgsi.pt
XXXI In casu, a clientela que existia anteriormente à alegada cessão de exploração não era a mesma, devido à alteração de ramo do estabelecimento.
XXXII Resulta do contrato de fls.72 e sgs. dos autos, que o estabelecimento foi cedido sem mercadoria e sem pessoal, existindo nos autos documentação que comprova que o único funcionário do estabelecimento foi despedido por extinção do posto de trabalho depois de ter sido assinado o denominado contrato de “Locação ou Cessão de exploração”.
XXXIII Se um estabelecimento comercial, de porta aberta ao público, só tem um funcionário e se o “cedente” despede o mesmo alegando extinção do posto de trabalho antes da reabertura do estabelecimento pelo “cessionário”, é evidente que aquilo que foi transmitido é um estabelecimento que não tem as mínimas condições de abertura ao público, logo aquilo que foi transmitido foi o espaço, mas não o estabelecimento comercial.
XXXIV Para além de ter afastado do negócio dois elementos essenciais da exploração de um estabelecimento comercial – o único trabalhador do estabelecimento e as mercadorias que se vendiam no mesmo até ao seu encerramento, e que lá continuam em armazém -, o acordo entre os réus ainda prevê que os artigos pertencentes aos quatro primeiros réus que ainda se encontram no estabelecimento sejam vendidos revertendo para estes o valor integral das referidas vendas.
XXXV Quer isto dizer que, apesar de terem celebrado um contrato denominado “Locação ou Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial”, todos os réus ainda mantêm o direito conjunto de retirar benefício dos bens vendidos no estabelecimento, recebendo cada uma das partes o produto da venda dos artigos que são proprietários.
XXXVI In casu, verifica-se que nem a fruição do estabelecimento é total por parte da pretensa cessionária, como também a transmissão do estabelecimento não foi feita com dois elementos essenciais estruturantes a saber: o único trabalhador e mercadoria que ainda lá se encontra e é vendida no âmbito da exploração mas cujo produto da venda reverte para os cedentes.
XXXVII Assim sendo, verifica-se que na situação sub judice inexiste qualquer cessão de exploração, pelo que, ao não entender assim, violou o Meritíssimo Tribunal à qua o disposto no artº. 1112º, nº 2, alínea a), ex-vi artº 1109º, nº 1, in fine, ambos do Código Civil.

Subsidiariamente:
XXXVIII Resulta de tudo o supra exposto que os réus actuaram de forma concertada, no sentido de, sob a capa de um alegado contrato de cessão de exploração, poderem retirar em conjunto benefícios indevidos do estabelecimento sito no locado.
XXXIX Todos os recorridos, de forma voluntária e consciente, sob a aparência de uma cessão de exploração inteiramente criada pelos mesmos, têm neste momento a possibilidade de venderem artigos próprios dos mesmos no estabelecimento comercial instalado no imóvel pertença dos recorrentes, auferindo os respectivos proveitos, num negócio paralelo ao da alegada cessão.
XL Daí que, ao invocarem a mesma, incorrem os recorridos num claro e manifesto abuso do direito – cfr. artº.334º, do Cód. Civil -, que desde já aqui se invoca para todos os devidos e legais efeitos, o qual é de conhecimento oficioso”.

Pedem, assim, que se julgue procedente o presente recurso e, por via disso, seja revogada a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra decisão que contemple as conclusões supra aduzidas.
6- Os RR. responderam em apoio do julgado.
7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso

1- Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do presente recurso, delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, do Código de Processo Civil), é constituído, essencialmente, pelas seguintes questões:

a) Em primeiro lugar, saber se deve haver lugar à modificação da matéria de facto, pretendida pelos Apelantes;
b) E, em segundo lugar, decidir qual o tipo de contrato celebrado entre os RR. e quais as consequências jurídicas daí resultantes.
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2- Fundamentação

2.1- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

1- No passado dia 20 de Janeiro de 2014, os AA. adquiriram por escritura pública outorgada nessa mesma data, no Cartório Notarial de M. F., da cidade de Vila Real, um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, primeiro andar e quintal, sito na Praça … e inscrito na matriz urbana da união de freguesias de Vila Real (Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e São Dinis) sob o artigo ….
2- Aquisição que se encontra definitivamente registada a favor dos mesmos na competente Conservatória do Registo Predial sob a Apresentação nº 2371 de 28 de Janeiro de 2014 da Descrição nº 1042 da extinta freguesia de Vila Real (S. Pedro).
3- E a seu favor igualmente averbado junto da competente Repartição de Finanças de Vila Real.
4- O rés-do-chão do descrito prédio é destinado a comércio.
5- E à data da aquisição do mesmo por parte dos AA., aquele encontrava-se onerado por um contrato de arrendamento comercial, celebrado em 22 de Maio de 1986, pelo anterior proprietário com Manuel, marido da 1ª Ré e pai dos restantes 2º a 4º Réus.
6- Por força do aludido contrato de arrendamento, o falecido Manuel explorou no rés-do-chão do prédio do nº 24 da Praça … em Vila Real, actualmente propriedade dos aqui Autores, desde 12 de Junho de 1986 até à data da sua morte, um estabelecimento comercial.
7- À data da aquisição do prédio por parte dos AA. o valor da renda devida pela ocupação do rés-do-chão do prédio supra descrito era de 292,00€ (duzentos e noventa e dois euros).
8- Aos RR. foi comunicada a compra do locado por parte dos aqui AA., a quem aqueles passaram a pagar a renda devida pela utilização do mesmo.
9- No Natal de 2013, os RR. encerraram o estabelecimento comercial em causa.
10- Na mesma altura o seu último funcionário – H. M. – foi despedido.
11- Em 3 de Março de 2014 a 1ª Ré apresentou uma proposta negocial aos aqui AA., no sentido de aferir se estes pretendiam adquirir o estabelecimento comercial propriedade da herança de que aquela é cabeça-de-casal.
12- A 27 de Março de 2014 aquela envia nova comunicação aos AA. dando conta que: “No passado dia 26 de Março de 2014, por contrato de locação ou cessão de exploração do estabelecimento comercial que V. Exªs são proprietários na Praça … em Vila Real, à Sra. D. X. Y., com início a 1 de Maio de 2014”.
13- Em Maio de 2014, abriu no local uma loja denominada “RS” que se dedica ao comércio de artigos orientais, pronto-a-vestir e acessórios, relógios, artigos para o lar e artigos de higiene pessoal.
14- Na loja “RS”, não são vendidos instrumentos musicais, nem é prestado o serviço de reparação de instrumentos musicais, nem laboram quaisquer funcionários da anterior loja.
15- Manuel arrendou o local para “Comércio” e ali sempre “mercou” de tudo, ainda não existiam as “Lojas dos Trezentos” ou actuais “Lojas de Chineses”.
16- Naquela loja sempre se venderam os produtos, ou quase todos os produtos que hoje são vendidos, designadamente: artigos orientais e ocidentais, relógios, roupas, roupas interiores, batons, material escolar, isqueiros, lâmpadas, têxteis para o lar, artigos de papelaria, bijuterias, bebidas, sapatos, material de higiene, etc.
17- No Natal de 2013 o estabelecimento encerrado para balanço/inventário anual.
18- Em 29 de Janeiro de 2014 um dos herdeiros réu, remeteu aos AA. uma carta com o seguinte teor: “Relativamente às infiltrações no estabelecimento comercial, informamos vossa ex.ª que quando chove tanto na montra do lado esquerdo, como na parte central do estabelecimento comercial, há bastantes infiltrações o que origina a degradação dos materiais impedindo que utilizemos essas partes do estabelecimento comercial. Daí solicitarmos a vossas excelências a resolução deste problema com alguma celeridade”.
19- O estabelecimento manteve-se encerrado para que os RR. executassem as obras.
20- Concluídas as obras, os RR. repuseram todo o equipamento (móveis) que lá se encontrava e mudaram o reclamo para “RS”.
21- De seguida, efectuaram a negociação do estabelecimento comercial com a última Ré, procedendo à celebração do acordo referido em 12, junto aos autos a fls. 72 vs, cujo teor se considera totalmente reproduzido.
22- A última Ré aproveitou todos os utensílios, expositores e balcões e colocou a seu gosto mais algumas estantes.
23- Os AA. sempre receberam pontualmente as rendas.
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2.2- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:

A. O estabelecimento comercial referido em 6. dos factos provados sempre foi denominado “ED – Instrumentos Musicais” e sempre se dedicou exclusivamente à venda e reparação de instrumentos musicais.
B. No referido rés-do-chão nunca outro estabelecimento foi lá explorado por Manuel para além do denominado “ED – Instrumentos Musicais”, cujo ramo de actuação sempre foi no âmbito dos instrumentos musicais, quer no domínio da venda quer no da reparação dos mesmos.
C. Quando os RR. encerraram o estabelecimento no Natal de 2013, foram dali retirando todo e qualquer mobiliário e equipamento existente, deixando o estabelecimento devoluto de bens.
D. A loja “RS” está equipada com mobiliário e utensílios de trabalho absolutamente novos e distintos da anterior loja, dotada de mercadorias dispares das anteriormente vendidas e vocacionada para um público alvo diferenciado.
E. Quando os RR. concluíram as obras referidas em 19) repuseram todo o stock.
F. A última Ré aproveitou as mercadorias, acrescentando algumas do mesmo género.
G. A escrituração do estabelecimento comercial referente aos anos de 2009 a 2013 era feita através do computador da loja a que apenas tinham acesso um casal de funcionários que a fez desaparecer na sequência de diversos litígios criminais, laborais e civis que foram tendo com os RR.
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2.3- Da pretendida modificação da matéria de facto

Estão em causa os factos descritos nos pontos 15, 16, 17, 19, 20 e 21 dos Factos Provados e nas alíneas A), B) e D), dos Factos não Provados, que acabamos de transcrever.
Segundo os AA., estes factos encontram-se incorretamente julgados. O primeiro grupo, devia, a seu ver, estar integrado no capítulo dos Factos não Provados, e, o segundo, ao invés, devia fazer parte dos Factos Provados. Tudo porque a prova produzida, e especialmente a por si indicada, assim o determinaria.
Os RR., porém, contrapõem que assim não pode ser; que o julgamento dos ditos factos é fiel à prova produzida e, portanto, não pode ser alterado o seu destino probatório.
Para melhor avaliar a bondade de cada uma destas teses, tivemos o cuidado de analisar toda a (extensa) prova, presencial e documental, produzida. E, dessa análise, a conclusão que retirámos é que há, efetivamente, alguma factualidade impugnada que deve ser modificada.
No essencial, estão em causa duas temáticas: o uso que foi dado ao locado até ao seu encerramento de facto, no Natal de 2013; e, o modo como se processou, na prática, o encerramento e a transferência desse mesmo locado para a disponibilidade da Ré, X. Y..
No que à primeira temática concerne, defrontam-se duas teses: uma, defendida pelos RR., e acolhida na sentença recorrida, segundo a qual no locado sempre se venderam todos, ou quase todos, os produtos que hoje lá se transacionam, mantendo-se, assim, inalterado o objeto concreto do estabelecimento; e a outra, defendida pelos AA., que sustenta, no fundo, o contrário; ou seja, que nesse mesmo locado apenas se venderam e repararam instrumentos musicais, e nada mais.
Ora, depois de analisar a prova produzida, cremos existir entre estas duas posições, uma outra, isto é, uma terceira versão, que reflete melhor essa prova.
Na verdade, a testemunha, Pedro, por exemplo, que é comerciante em Vila Real e disse conhecer quer os AA., quer os quatro primeiros RR., afirmou em julgamento que, sobretudo depois da morte do anterior inquilino, Manuel, no estabelecimento em causa passaram a ser vendidos apenas instrumentos musicais e outros artigos relacionados com a música. Isto, devido à proximidade do Conservatório de Música, que entretanto ali tinha iniciado a sua atividade.

Por sua vez, um dos anteriores empregados desse mesmo estabelecimento, ou seja, a testemunha, I. G., disse também que “desde que entrou na loja, há cerca de oito anos (tendo por referencia a data da sua inquirição – 06/04/2017), e até à sua saída, em 2011, o ramo de atividade do comércio era o da venda e reparação de instrumentos musicais” (fls. 250).
E também o outro empregado do mesmo estabelecimento, H. M., se expressou em sentido semelhante. Disse ele que, enquanto lá trabalhou, entre 2007 e 2014, vendeu quase exclusivamente instrumentos musicais. Isto porque, quando entrou, a atividade da loja estava em transição. Dedicava-se à venda de diversos produtos e passou a vender, quase em exclusivo (num primeiro momento disse “maioritariamente” e, depois, a instâncias da mandatária dos RR., disse “exclusivamente”), instrumentos musicais e artigos relacionados com a música e eletrónica. Ele, por exemplo, disse nunca ter recebido encomendas de outros materiais que não destes tipos. E aqueles que antes se vendiam na loja, (integradores do que apelidou de “loja dos 300”), passaram para trás, ou seja, para o armazém que se situava nas traseiras dessa loja.
Aliás, no sentido da clara predominância da venda de instrumentos musicais nos últimos anos, com particular destaque para o período subsequente à morte do referido inquilino, também se pronunciaram, entre outros, as testemunhas, Paulo, M. G., Miguel, M. M., e o próprio R., V. P..

Relatou, por exemplo, a testemunha Miguel (arrolada pelos RR.), que o R., V. P., lhe tinha dito o seguinte, após a morte do pai (o já referido, Manuel): “Eu vou tentar arriscar neste ramo [dos instrumentos musicais] porque acho que vai ser ainda mais vantajoso para nós, vamos lucrar ainda mais. Vamos continuar um pouco com o material que tem o meu pai, não vamos deitar tudo fora, vamos aproveitar o que ele tem só que vamos direcionar mais para os instrumentos” (…) “Vou tentar aqui porque acho que vamos ter sucesso”.
E a testemunha, M. M., referiu também o seguinte: “No tempo do Sr. V. P. [a loja] estava mais em instrumentos musicais. Desde que o Sr. Manuel faleceu as coisas que lá estavam mantiveram-se algumas mas eles não compraram mais coisas”. E acrescentou, depois de inquirida pelo mandatário dos AA. sobre se o R. V. P. também vendia roupa como o pai: “Não, já vendia só mais instrumentos musicais”.
De resto, o próprio R., V. P., também o confirmou em julgamento, quando referiu que “a loja passou [no tempo da sua gestão (embora não exclusiva)] só a vender, basicamente, só instrumentos musicais” Não quer dizer que ali não se vendessem também camisolas ou casacos, mas das marcas dos instrumentos musicais.
Ora, perante esta nítida predominância não se pode sustentar que o negócio se tivesse mantido inalterado quanto ao seu objeto concreto.

Aliás, a prova documental também vai neste sentido. Assim, se é verdade que as cópias das fotografias do interior do estabelecimento, no tempo de Manuel, refletem a diversidade de objetos que então aí eram vendidos (fls. 78v.º e 79), já, depois de 15/07/2004, não há qualquer documento que ateste a aquisição ou venda desses mesmos objetos (cfr. fls. 79v.º a 84). O que há, sim, é, por exemplo, a cópia de uma fotografia do toldo exterior desse mesmo estabelecimento, no qual é feita a publicidade a instrumentos musicais (fls. 16); ou ainda a divulgação pela internet do negócio no âmbito desses mesmos instrumentos (fls. 16v.º e 17). O que significa que a versão trazida a juízo pelas já referenciadas testemunhas é a correta. Ou seja, o estabelecimento em causa, a partir da morte do primitivo inquilino, Manuel, passou a dedicar-se quase só e exclusivamente à venda e reparação de instrumentos musicais e artigos relacionados com a música.

Por conseguinte, é essa realidade que deve ser refletida na factualidade provada. E o ponto 16 dos Factos Provados, ao dar a ideia de uma continuidade inalterada, não a reflete. Mas também não a refletem as alíneas A) e B) dos Factos não Provados, porquanto apontam para uma exclusividade absoluta, que igualmente não ocorreu.

Nesta conformidade, decide-se o seguinte:

a) Manter inalterado o ponto 15 dos Factos Provados;
b) Alterar a redação do ponto 16 dos Factos Provados, que passará a ser a seguinte: “Depois do óbito desse arrendatário, porém, nesse mesmo local, passaram a ser vendidos, quase só e exclusivamente, instrumentos musicais e artigos relacionados com a música, aí sendo feita também a reparação de alguns desses instrumentos”.
c) O mais constante do atual ponto 16 dos Factos Provados e das alíneas A) e B) dos Factos não Provados, julga-se não provado.
Avancemos, agora, para a análise da outra temática; ou seja, a forma como se processou, na prática, o encerramento e a transferência da exploração do locado para a disponibilidade da Ré, X. Y..
O que resulta provado, a este respeito, dos factos impugnados, é o seguinte:
“No Natal de 2013 o estabelecimento [foi] encerrado para balanço/inventário anual”.
“O estabelecimento manteve-se encerrado para que os RR. executassem as obras”.
“Concluídas as obras, os RR. repuseram todo o equipamento (móveis) que lá se encontrava e mudaram o reclamo para “RS””.
“De seguida, efetuaram a negociação do estabelecimento comercial com a última Ré, procedendo à celebração do acordo referido em 12, junto aos autos a fls. 72 vs, cujo teor se considera totalmente reproduzido” – Pontos 17 e 19 a 21, inclusive, dos Factos Provados.

Por outro lado, não resultou provado que “[a] loja “RS” está equipada com mobiliário e utensílios de trabalho absolutamente novos e distintos da anterior loja, dotada de mercadorias dispares das anteriormente vendidas e vocacionada para um público alvo diferenciado” – al. D) dos Factos não Provados.
O que primeiro nos chama à atenção nesta descrição de factos é a forma indistinta como se alude aos “RR.”, nos pontos 19 e 20 dos Factos Provados. Aí se refere, com efeito, que o estabelecimento se manteve encerrado “para que os RR. executassem as obras”; e que, concluídas estas, “os RR. repuseram todo o equipamento (móveis) que lá se encontrava e mudaram o reclamo para “RS””.

Ora, não há qualquer noticia nos autos de que, quer a obras, quer a reposição do equipamento (móveis) tivessem sido levadas a cabo por todos os RR.. Pelo contrário, não sendo conhecida qualquer afinidade entre os herdeiros de Manuel e a Ré, X. Y., nem qualquer convénio nesse sentido, há necessidade de precisar quem realizou cada uma dessas atividades, se for possível conclui-lo da prova produzida.
E, da análise desta, o que se verifica, antes de mais, é que, quanto às obras, há um aparente consenso entre os RR. e as testemunhas que sobre isso se pronunciaram (designadamente, as testemunhas, Miguel e M. M.), no sentido de que as mesmas (obras) foram executadas apenas pelos quatro primeiros RR.
Por conseguinte, o ponto 19 deve refletir essa realidade.
Já quanto à reposição do equipamento que antes se encontrava no locado, ficámos com sérias dúvidas de que essa reposição tivesse tido lugar, nos termos em que foi julgada provada; ou seja, que essa reposição tivesse sido integral.
Segundo nos informaram o R., V. P., e a testemunha, X. H. (Ré, X. Y.), todo o material que os herdeiros de Manuel tinham no estabelecimento passou para a parte de trás do mesmo, que é, ao que percebemos, uma zona de armazém, e aquela Ré, X. Y., pode vendê-lo se aparecer alguém interessado na sua compra. Porém, esse material não faz parte da organização produtiva instalada por esta Ré. Continua a fazer parte, sim, do património daqueles herdeiros. Tanto assim que, como reconheceram, o R., V. P., e a testemunha, X. H., se algum desse material for vendido, o produto dessas eventuais vendas reverte para tais herdeiros.
É, assim, líquido que este tipo de bens não transitou para o estabelecimento ora explorado pela Ré, X. Y..
E quanto ao outro equipamento, designadamente, móveis ?
Refere-se no ponto 22 dos Factos Provados o seguinte: “A última Ré aproveitou todos os utensílios, expositores e balcões e colocou a seu gosto mais algumas estantes”.
Perante este texto, ser-se-ia tentado a afirmar que os herdeiros do falecido, Manuel, repuseram todos os móveis que, antes das obras, se encontravam no estabelecimento.
No entanto, a prova presencial produzida não consente esta conclusão.
Pelo que ficámos a saber, por exemplo, pelo depoimento do R., V. P., os armários enormes que havia à entrada da loja foram retirados. E, segundo declarou a testemunha, Paulo, os mostruários onde estavam “as coisas da música” também já lá não estão.

Assim, a conclusão de que todos os móveis existentes no estabelecimento foram repostos pelos quatro primeiros RR. é excessiva. Mas, também é excessiva, como acabamos de ver, a afirmação de que a última Ré aproveitou “todos os utensílios, expositores e balcões”. Alguns, certamente, foram. Mas, não todos, como vimos. O que significa que nem a reposição de todo o equipamento (móveis) pode ser julgada provada, nem mesmo a afirmação contida no ponto 22 dos Factos Provados, pode ser integralmente mantida. Há, antes, necessidade de a restringir, o que se fará ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, em razão do nome já associado ao estabelecimento anteriormente explorado pelo falecido, Manuel (o que foi praticamente reconhecido por todas as pessoas de nacionalidade portuguesa ouvidas presencialmente na audiência final), ficaram-nos também sérias reservas sobre de quem partiu a iniciativa para a mudança do nome desse mesmo estabelecimento. É que, como reconheceu o R., V. P., o novo nome (“RS”) passou a ser uma ficção, porque “o nome é sempre Manuel”.
Ora, no exercício do comércio, como é da experiência comum, o nome de um estabelecimento é um dos seus elementos distintivos e identitários, com um valor de mercado próprio. Assim, não faz sentido que o detentor de um estabelecimento se disponha, sem qualquer justificação racionalmente plausível, a mudar o nome desse mesmo estabelecimento, quando, como era o caso, se trata de um nome amplamente reconhecido, designadamente pela respetiva clientela. Mais: reconhecendo, como vimos, que o novo nome não passa de uma ficção, pois que o estabelecimento continuará a ser conhecido pelo nome anterior. É contra as regras da referida experiência.
Assim, o ponto 20 dos Factos Provados deve refletir esta e as demais realidades que acabamos de aflorar.
Já num outro ponto, o 17, refere-se que “[no] Natal de 2013 o estabelecimento [foi] encerrado para balanço/inventário anual”.
Ora, também neste ponto não temos qualquer certeza de que assim tivesse sucedido.
A instância recorrida disse ter-se apoiado, para a prova deste facto, “nas declarações de parte do réu V. P. que foram corroboradas pelo depoimento de M. M.”. Sucede que, o primeiro, é parte interessada no desfecho desta causa e, a última, é empregada da família do mesmo R., num outro negócio (enchidos), sem que tivesse demonstrado qualquer conhecimento específico sobre a concreta finalidade do encerramento, indicada.
Pelo contrário; o que resulta de forma inequívoca do depoimento da testemunha, H. M., é que o estabelecimento foi, sem mais, encerrado. Foi essa a razão, aliás, que lhe foi apresentada para o seu despedimento. Acresce que nenhum inventário então elaborado foi apresentado em juízo para confirmar a sua realização.
Deve dar-se, assim, por indemonstrada esta concreta finalidade.
Prosseguindo na nossa análise, vem também questionado pelos AA. o que consta do ponto 21 dos Factos Provados; ou seja, que, depois de concluídas as obras, se tenham efetuado a negociação do estabelecimento com a última Ré e procedido à celebração do acordo junto aos autos.
Ora, que este último acordo foi celebrado, é inequívoco. Os documentos de fls. 35 a 39 e 72v.º a 74, atestam-no e as partes estão de acordo a esse respeito.
O que já não é inequívoco é que a negociação do estabelecimento assim concluída tenha sido iniciada após a realização das citadas obras. É que a testemunha, Miguel, referiu ter visto a acompanhar essas obras pessoas com traços de origem asiática, que presumiu serem da família do Sr. X. H. (marido na Ré, X. Y.). Além disso, tanto esta testemunha, como o R., V. P., deram a entender que aquele (X. H.) acompanhou essas obras, sendo possível presumir, pelo que disseram em julgamento, que esse acompanhamento foi interessado, tendo daí, senão antes, resultado o negócio que veio a concretizar-se.
Deste modo, não pode, a nosso ver, dar-se por demonstrado que só depois de concluídas as obras, se tenha efetuado a negociação do estabelecimento com a última Ré, como se afirma no ponto em análise (ponto 21).
Por fim, resta por apreciar o teor da alínea D) dos Factos não Provados. Nele, como já vimos, afirma-se o seguinte: “A loja “RS” está equipada com mobiliário e utensílios de trabalho absolutamente novos e distintos da anterior loja, dotada de mercadorias dispares das anteriormente vendidas e vocacionada para um público alvo diferenciado”.
Na instância recorrida, esta afirmação foi tida por indemonstrada.
Todavia, face ao que acabamos de referir, é, para nós, inequívoco que a loja em questão está atualmente equipada com algum mobiliário e utensílios de trabalho novos e distintos da anterior loja, além de que está também dotada de mercadorias que, na sua quase totalidade, são diferentes daquelas que no período imediatamente antecedente aí se transacionavam e que, já vimos, correspondiam a instrumentos musicais e artigos relacionados com a música.
Desde logo, porque este tipo de instrumentos e artigos, está provado (ponto 14), já aí não são vendidos. E depois, porque, como reconheceu a testemunha, X. H., todo o recheio que está atualmente para venda no estabelecimento, lhe pertence a ele (e/ou à esposa, dizemos nós).
Deve, pois, ser aditado à factualidade um novo ponto que reflita esta realidade, nos termos em que acabamos de a caracterizar.

Em resumo, decide-se o seguinte:

a) Alterar a redação dos pontos 17, 19, 20, 21 e 22, do capítulo dos Factos Provados, nestes termos:

“17- No Natal de 2013, o estabelecimento foi encerrado”.
“19- O estabelecimento manteve-se encerrado, tendo os 4 primeiros RR., durante esse encerramento, executado obras no mesmo”.
“20- Concluídas essas obras, o reclamo do estabelecimento passou a conter a denominação de “RS””.
“21- Posteriormente, no dia 26/03/2014, foi celebrado o acordo referido em 12, junto aos autos a fls. 72vº a 74v.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido”.
“22- A última Ré aproveitou alguns utensílios, expositores e balcões e colocou a seu gosto mais algumas estantes”.
b) Aditar à matéria de facto provada um outro ponto, com a seguinte denominação e teor:
“24- A loja “RS” está atualmente equipada com algum mobiliário e utensílios de trabalho novos e distintos da anterior loja, além de que está também dotada de mercadorias que, na sua quase totalidade, são diferentes daquelas que no período imediatamente antecedente aí se transacionavam”.
c) Tudo o mais não incluído nestes pontos de facto, e que antes preenchia o seu teor, julga-se não provado.
*
2.4- Em razão de tudo quanto acaba de ser decidido, é esta a factualidade julgada provada, a considerar:

1- No passado dia 20 de Janeiro de 2014, os AA. adquiriram por escritura pública outorgada nessa mesma data, no Cartório Notarial de M. F., da cidade de Vila Real, um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, primeiro andar e quintal, sito na Praça … e inscrito na matriz urbana da união de freguesias de Vila Real (Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e São Dinis) sob o artigo …º.
2- Aquisição que se encontra definitivamente registada a favor dos mesmos na competente Conservatória do Registo Predial sob a Apresentação nº … de 28 de Janeiro de 2014 da Descrição nº … da extinta freguesia de Vila Real (S. Pedro).
3- E a seu favor igualmente averbado junto da competente Repartição de Finanças.
4- O rés-do-chão do descrito prédio é destinado a comércio.
5- E à data da aquisição do mesmo por parte dos AA., aquele encontrava-se onerado por um contrato de arrendamento comercial, celebrado em 22 de Maio de 1986, pelo anterior proprietário com Manuel, marido da 1ª Ré e pai dos restantes 2º a 4º Réus.
6- Por força do aludido contrato de arrendamento, o falecido Manuel explorou no rés-do-chão do prédio do nº … da Praça … em Vila Real, atualmente propriedade dos aqui AA., desde 12 de Junho de 1986 até à data da sua morte, um estabelecimento comercial.
7- À data da aquisição do prédio por parte dos AA. o valor da renda devida pela ocupação do rés-do-chão do prédio supra descrito era de 292,00€ (duzentos e noventa e dois euros).
8- Aos RR. foi comunicada a compra do locado por parte dos aqui AA., a quem aqueles passaram a pagar a renda devida pela utilização do mesmo.
9- No Natal de 2013, os RR. encerraram o estabelecimento comercial em causa.
10- Na mesma altura o seu último funcionário – H. M. – foi despedido.
11- Em 3 de Março de 2014, a 1ª Ré apresentou uma proposta negocial aos aqui AA., no sentido de aferir se estes pretendiam adquirir o estabelecimento comercial propriedade da herança de que aquela é cabeça-de-casal.
12- A 27 de Março de 2014 aquela envia nova comunicação aos AA. dando conta que: “No passado dia 26 de Março de 2014, por contrato de locação ou cessão de exploração do estabelecimento comercial que V. Exªs são proprietários na Praça … em Vila Real, à Sra. D. X. Y., com início a 1 de Maio de 2014”.
13- Em Maio de 2014, abriu no local uma loja denominada “RS” que se dedica ao comércio de artigos orientais, pronto-a-vestir e acessórios, relógios, artigos para o lar e artigos de higiene pessoal.
14- Na loja “RS”, não são vendidos instrumentos musicais, nem é prestado o serviço de reparação de instrumentos musicais, nem laboram quaisquer funcionários da anterior loja.
15- Manuel arrendou o local para “Comércio” e ali sempre “mercou” de tudo, ainda não existiam as “Lojas dos Trezentos” ou actuais “Lojas de Chineses”.
16- Depois do óbito desse arrendatário, porém, nesse mesmo local, passaram a ser vendidos, quase só e exclusivamente, instrumentos musicais e artigos relacionados com a música, aí sendo feita também a reparação de alguns desses instrumentos.
17- No Natal de 2013, o estabelecimento foi encerrado.
18- Em 29 de Janeiro de 2014 um dos herdeiros réu, remeteu aos AA. uma carta com o seguinte teor: “Relativamente às infiltrações no estabelecimento comercial, informamos vossa ex.ª que quando chove tanto na montra do lado esquerdo, como na parte central do estabelecimento comercial, há bastantes infiltrações o que origina a degradação dos materiais impedindo que utilizemos essas partes do estabelecimento comercial. Daí solicitarmos a vossas excelências a resolução deste problema com alguma celeridade”.
19- O estabelecimento manteve-se encerrado, tendo os 4 primeiros RR., durante esse encerramento, executado obras no mesmo.
20- Concluídas essas obras, o reclamo do estabelecimento passou a conter a denominação de “RS”.
21- Posteriormente, no dia 26/03/2014, foi celebrado o acordo referido em 12, junto aos autos a fls. 72vº a 74v.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
22- A última Ré aproveitou alguns utensílios, expositores e balcões e colocou a seu gosto mais algumas estantes.
23- Os AA. sempre receberam pontualmente as rendas.
24- A loja “RS” está atualmente equipada com algum mobiliário e utensílios de trabalho novos e distintos da anterior loja, além de que está também dotada de mercadorias que, na sua quase totalidade, são diferentes daquelas que no período imediatamente antecedente aí se transacionavam.
*
2.5- Vejamos, agora, que tipo de contrato foi celebrado entre os RR. e quais as consequências jurídicas daí resultantes.

Esse contrato foi pelas partes denominado como sendo de “Locação ou Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial”.
Mas, os AA. alegam que esta qualificação não corresponde ao contrato efetivamente celebrado e querido pelos RR.. Esse contrato foi, antes, do seu ponto de vista, um contrato de subarrendamento e, por isso, não tendo sido obtida a sua autorização para o efeito, deve considerar-se resolvido o contrato de arrendamento que mantêm com os quatro primeiros RR.
Os RR. é que não se conformam com esta tese e contrapõem que o contrato entre eles celebrado corresponde à denominação que lhe foi dada, não havendo, assim, qualquer motivo para a referida resolução, posto que a locação do estabelecimento foi oportunamente transmitida aos AA.
E, na instância recorrida, obtiveram o reconhecimento desta tese.
Resta saber se esse reconhecimento se deve manter.
É importante começar por ter presente que, como já sustentámos noutra sede(1), a locação de um estabelecimento não é um contrato de arrendamento.
Este tem sido o entendimento largamente maioritário na jurisprudência e na doutrina (2). E, também na lei (3). Efetivamente, se excetuarmos o Decreto n.º 43525, de 7 de Março de 1961, que entendia a locação do estabelecimento como arrendamento (4), toda a legislação subsequente adotou a orientação contrária (5).

Assim, dispunha o artigo 1085.º, n.º 1, do Código Civil, na sua primitiva redação, o seguinte: “Não é havido como arrendamento de prédio urbano ou rústico o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com a fruição de prédio, a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado”.
E, igual regra foi consagrada no artigo 111.º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.

O artigo 1109.º, n.º 1, do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006, de 17 de fevereiro, por sua vez, mudou a terminologia, mas nada mais (6). Passou a adotar, na epígrafe, a denominação correta deste contrato, enquanto “locação de estabelecimento”, e não “cessão de exploração do estabelecimento comercial”, como antes era incorretamente designado (7), e tipificou o seu regime (8). Nestes termos: “A transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas regras da presente subsecção, com as necessárias adaptações”.

Ou seja, a locação do estabelecimento partilha, nalguma medida, e, ainda assim, com “as necessárias adaptações” do regime previsto para o contrato de arrendamento para fins não habitacionais, mas não é um contrato de arrendamento.
E, não é um contrato de arrendamento porque, desde logo, tem por objeto, não um imóvel, como é característico do arrendamento (artigo 1023.º do Código Civil), mas uma realidade jurídica diversa e autónoma, que é o estabelecimento (comercial ou industrial).
Ora, o estabelecimento é constituído pelo conjunto organizado dos elementos corpóreos, incorpóreos, aviamento e clientela que integram o seu ativo, mas dele fazem também partes as obrigações contraídas pelo seu titular. Tudo, tendo em vista a obtenção do lucro (9)
A organização constitui, assim, no estabelecimento “um valor novo pelas virtualidades lucrativas que encerra, pela reputação e clientela que pode granjear, pela experiência acumulada, pelos processos de trabalho que utiliza. O estabelecimento não está nas próprias coisas, está na organização delas para os fins da produção: é uma unidade de fim” (10). Unidade que é económica, mas também jurídica (11).
Por isso mesmo, “o que há de característico nos contratos de locação de estabelecimento, não é a cedência de fruição do imóvel, nem a do gozo do mobiliário ou recheio que nele se encontre, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, como uma universalidade, como uma unidade económica mais ou menos complexa” (12).
“Na transmissão efetuada pelo cedente vai, portanto, incluído todo o somatório de elementos materiais e imateriais que integram a organização da empresa (desde os móveis e imóveis até à clientela, às patentes e segredos de fabrico, aos contratos com o pessoal e as entidades financiadoras, aos angariadores, intermediários, agentes e auxiliares, às licenças, alvarás, assinatura de telefones, etc.)” (13).
E, é justamente por essa razão que “a chamada concessão de exploração comercial ou industrial (rectius: locação de estabelecimento) não é redutível a tantos contratos distintos e autónomos quantos os singulares elementos componentes da universalidade. Designadamente, o negócio jurídico não poderá ser qualificado como arrendamento, sem embargo de envolver a transferência para o locatário, por todo o tempo do contrato, do uso do prédio onde o estabelecimento está instalado” (14).
Impõe-se, assim, perante este quadro, averiguar se, no caso em apreço, foi transferida para a 5ª Ré algum estabelecimento, no sentido apontado.
E, do nosso ponto de vista, não foi. Foi transferido um espaço, e até alguns móveis, mas não qualquer organização produtiva que, à data da locação, fosse detida pelos demais RR.

Senão vejamos:

No dito espaço, o seu primitivo inquilino, Manuel, sempre vendeu de tudo. Isto, quando ainda não existiam as denominadas “Lojas dos Trezentos” ou as atuais “Lojas dos Chineses”.
No entanto, esta realidade alterou-se profundamente com a sua morte. Impulsionados pela abertura do Conservatório Regional de Música (15), os seus herdeiros, ou seja, os RR., D. F., V. P., L. P. e Nuno, passaram a dedicar-se naquele espaço, quase só e exclusivamente, à venda e reparação de instrumentos musicais e de outros artigos ligados à música. Assim sucedeu, por exemplo, enquanto a testemunha, H. M., lá trabalhou.
Este novo ciclo, no entanto, também terminou. Chegado o Natal do ano de 2013, os referidos RR. resolveram encerrar o dito espaço comercial e despediram o único empregado que, então, lá trabalhava.
Por sua vez, os AA., no dia 20/01/2014, formalizaram a aquisição do locado e disso deram conhecimento aos mencionados RR.
Sabedores dessa aquisição, os mesmos RR., deram-lhe conhecimento de algumas infiltrações que havia no locado e, através da 1ª Ré, tentaram, no dia 03/03/2014, negociar, formalmente, a sua posição contratual com os AA.. Só que sem qualquer êxito.
Entretanto, embora não se saiba ao certo a data do seu inicio, certo é que os detentores do mesmo espaço, ou seja, os quatro primeiros RR. nele decidiram fazer obras.
Concluídas estas, o reclamo do estabelecimento passou a conter uma nova denominação: “RS”.
E, no dia 26/03/2014, a herança de que são titulares os mesmos RR. realizou com a Ré, X. Y., um convénio mediante o qual declarou locar-lhe o estabelecimento situado no prédio que ora pertence aos AA.

Sucede que, como vimos, esse estabelecimento, nessa altura, já não existia como organização produtiva. Os RR. tinham decidido encerrá-lo, como encerraram. Mas, não encerraram apenas no sentido físico. Terminaram mesmo a atividade comercial que, até aí, nele tinha sido desenvolvida. Por conseguinte, não podiam transmitir a terceiros o gozo da mesma, enquanto unidade jurídica e económica.
Note-se que, como já vimos, a locação de estabelecimento não se cinge à cedência do gozo de um espaço; nem mesmo de móveis. Para isso, serve a locação em geral. O que há de característico na locação do estabelecimento é o valor que este encerra, enquanto organização produtiva. Ora, esta organização, no caso em apreço, foi desmantelada pelos quatro primeiros RR. antes de a transmitirem. Por isso, como se provou, o que foi transmitido à Ré, X. Y., foi apenas o espaço e alguns móveis. Nada mais. Nem empregados, nem mesmo qualquer outro tipo de elemento (corpóreo ou incorpóreo) integrador do anterior estabelecimento, cujo nome foi também alterado.
Daí que não haja qualquer razão para considerar que esse estabelecimento foi locado àquela Ré. Esta, aliás, aproveitou para iniciar uma nova atividade, dedicando-se “ao comércio de artigos orientais, pronto-a-vestir e acessórios, relógios, artigos para o lar e artigos de higiene pessoal”, que, se alguma vez foi exercido no locado a título principal, só o pode ter sido aquando da vida do primitivo inquilino. Os descendentes deste último, como se provou, deixaram de ter essa atividade, a tal título, no tempo da sua gestão. O que significa que não a podiam ceder a terceiros.
É certo que o contrato de arrendamento referente a este local permite o exercício do comércio, sem qualquer restrição. Mas esse direito, naturalmente, pertence aos inquilinos. E a Ré, X. Y., não é inquilina dos AA.

Deste modo, apenas podia exercer o comércio que agora exerce no locado se os herdeiros do anterior inquilino lhe tivessem transmitido o estabelecimento, enquanto organização produtiva, que agora explora, ainda em funcionamento ou com potencialidades para tal. Ora, não foi isso que sucedeu. O que lhe foi transmitido, repetimos, foi só o espaço físico e alguns móveis. Portanto, não se pode considerar que houve qualquer locação de estabelecimento. O que houve, sim, no que a esse espaço concerne, foi um subarrendamento, mediante uma contrapartida de 1.000,00€ mensais (cfr. Clª 4ª). O que a lei não consente. O locatário, na verdade, não pode “proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, exceto se a lei ou o locador o autorizar” – artigo 1038.º, al. f), do Código Civil (16).
Ora, no caso presente, nem a lei o autoriza (posto que não estamos no âmbito da previsão do artigo 1109.º, n.º 2, do mesmo Código), nem os AA. o consentiram.
Assim, estes últimos têm não só o direito à resolução do contrato de arrendamento, como o direito ao despejo do locado.
A lei é clara a esse propósito: o arrendatário não pode, como vimos, ceder o gozo do arrendado a terceiros, se para tal não tiver cobertura legal ou autorização do senhorio. Se o fizer em contravenção desta regra, o senhorio tem o direito à resolução do contrato de arrendamento, nos termos previstos no artigo 1083.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do Código Civil.
E que se trata de uma conduta suficientemente grave para decretar essa resolução, é para nós inequívoco. Quanto mais não seja porque os inquilinos deste arrendado estavam, no dia 20/01/2014, a pagar aos AA. uma renda mensal de 292,00€ (ponto 7 dos Factos Provados) e ficaram a receber da 5ª Ré uma contrapartida mensal, como já vimos, de 1.000,00€. Além disso, a disposição do arrendado nestes termos, não pode também deixar de ser tida como gravemente atentatória da boa-fé e equilíbrio contratuais. O que, sem qualquer dúvida, nos leva a decretar a referida resolução e o despejo do arrendado.
Resta por analisar a questão da sanção pecuniária compulsória, pedida pelos AA.

Neste domínio, prescreve o artigo 829.º-A, n.º 1, do Código Civil, que, quando o credor lho pedir, o tribunal deve condenar o devedor no pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme ao caso for mais conveniente, sempre que esse mesmo devedor esteja adstrito ao cumprimento de obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exijam especiais qualidades cientificas ou artísticas do obrigado.

A vinculação ao cumprimento deste tipo de obrigações (de prestação de facto), pois, é condição essencial para a referida condenação.
Sucede que, no caso presente, os AA. não pedem que os RR. cumpram qualquer obrigação de prestação de facto. Pedem, sim, a entrega de uma coisa certa, correspondente ao locado. Para isso, no entanto, dispõem de procedimentos executivos próprios, designadamente o previsto nos artigos 859.º e segts. do Código de Processo Civil.
Não há, assim, fundamento para a condenação dos RR. na pretendida sanção pecuniária compulsória (17). Ou seja, este pedido é de julgar improcedente.
Em resumo, procede este recurso quanto ao pedido de resolução do contrato de arrendamento e ao despejo do locado, mas improcede no mais. O que implica, ainda assim, a revogação da sentença recorrida.
*
III – Decisão

Pelo exposto, acorda-se em:

a) Conceder parcial provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, decreta-se a resolução do contrato de arrendamento supra referido, celebrado no dia 22/05/1986, que tem por objeto o rés do chão do prédio sito na Praça …, em Vila Real, inscrito na matriz urbana da união de freguesias de Vila Real (Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e São Dinis) sob o artigo …º e na Conservatória do Registo Predial sob a descrição n.º …, e condenam-se os RR. a devolver este local totalmente livre de pessoas e bens, aos AA.
b) Quanto ao mais, nega-se provimento ao presente recurso e, nessa medida, absolvem-se os RR. do restante pedido.
*
Tendo presentes as implicações desta decisão para cada uma das partes, condenam-se os AA. e os RR. nas custas deste recurso, na proporção de 1/5 e 4/5, respetivamente- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.


1. Acórdão proferido no Processo n.º 1559/13.8TBBRG.G1, em 26/10/2017, que pode ser consultado em www.dgsi.pt.
2. Até porque, como refere António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4ª edição revista, Almedina, págs. 347 e 348, o “arrendamento, por força da conhecida problemática social que envolve, foi concitando, da parte do legislador, a inclusão, no seu regime típico, de normas injuntivas, isto é subtraídas à livre disponibilidade das partes. De entre elas, avultam as que se prendem com o regime do termo da situação locaticia, bastante limitativo e com a sua prorrogação automática no termo, às quais, por influência italiana, se tem chamado regime vinculistico. Ora o estabelecimento comercial implica, muitas vezes, o gozo de bens imóveis o qual, sendo transferido temporariamente, cai de modo automático, nas normas injuntivas do arrendamento”. Daí a necessidade de subtrair o contrato de cessão de exploração de estabelecimento ao regime impositivo do arrendamento.
3. Neste sentido, se pronunciou o Ac. STJ de 06/05/1998, Processo n.º 98B059, consultável em www.dgsi.pt; e Pires de Lima e Antunes Varela, ob cit., pág. 530, que aqui seguimos de perto.
4. Dispunha o seu artigo 3.º n.º 1, o seguinte: “Será havido exclusivamente como arrendamento o contrato pelo qual o locador, que no prédio, ou em parte dele, explore indústria, comércio ou outra actividade lucrativa, transfere temporária e onerosamente para o locatário, juntamente com a fruição do imóvel, ou daquela sua parte, a dos móveis, utensílios e alfaias, aparelhos ou maquinismos nele existentes com vista a esta exploração e que para tal efeito constituam com o prédio, ou com a dita parte dele, uma unidade económica”.
5. Isto, embora o artigo 1080.º do Projeto do Código Civil (1.ª Revisão Ministerial) consagrasse doutrina semelhante ao citado Decreto n.º 43525.
6. Neste sentido, António Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 349.
7. Pois que a cessão da exploração podia ser feita a outros títulos, por exemplo, comodato.
8. No sentido de que a locação de estabelecimento é um contrato típico e nominado, pronuncia-se Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 9ª ed. Almedina, pág.312. Isto, ao contrário da maioria da jurisprudência e doutrina anteriores – Neste sentido, por exemplo, Acs STJ de 18/03/2003, Processo n.º 03B3093, de 14/05/2002, Processo n.º 02A1154 e de 08/05/2008, Processo n.º 08B1182, todos consultáveis em www.dgsi.pt, bem como a doutrina neles referida.
9. António Menezes Cordeiro, Direito Comercial, 4ª edição revista, Almedina, págs. 332 a 338.
10. Ferrer Correia, Reivindicação do Estabelecimento comercial como unidade jurídica, RLJ, Ano 89, pág.262.
11. Neste sentido, Ac. STJ de 20/03/2014, Processo n.º 278/09.4TVPRT.P1.S1, consultável em www. dgsi.pt.
12. Antunes Varela, em anotação ao Acórdão do STJ, de 16/02/1967, RLJ, ano 100.º, pág. 270.
13. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 3ª ed., Coimbra Editora, págs. 530 e 531.
14. Ferrer Correia, loc. cit., pág. 264.
15. E, ao que parece, em razão da prova testemunhal produzida, também pela ligação de alguns dos seus descendentes ao ensino e prática da música.
16. Que é aqui aplicável por se tratar de factos já ocorridos no domínio da lei atual (artigo 9.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil) – Neste sentido, Ac. RC de 17/04/2012, Processo n.º 221/09.0TBCDN.C1, consultável em www.dgsi.pt.
17. Neste sentido, por exemplo, Ac. STJ de 30/06/2004, Processo n.º 04B1849, Ac RE de 12/07/2016, Processo n.º 3066/13.0TBFAR-A.E1, bem como a doutrina e jurisprudência neles citadas, sendo aqueles Arestos consultáveis em www.dgsi.pt