Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3134/14.0TBBRG.G1
Relator: PEDRO DAMIÃO E CUNHA
Descritores: ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR
REGRESSO DOS BENS À MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pelo relator):

“Se o executado foi declarado insolvente na pendência de acção de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente responderem perante os credores da insolvência”.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.
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A X., S. A., Credora Reclamante nos presentes Autos de Insolvência de pessoa singular em que é Insolvente F. P., veio interpor recurso de apelação da seguinte decisão proferida pelo Tribunal Recorrido naqueles autos:

“Porque a procedência da acção de impugnação pauliana não importa um regresso dos bens à propriedade dos insolventes, outrossim, nos termos do artº 616 do CC a possibilidade do credor/A atingir esses bens, atenta a ineficácia em relação a si do acto praticado, entendemos não ser de reabrir a liquidação, note-se que com a decisão proferida e sem necessidade de outras formalidades pode o A/credor executar ou exigir do terceiro aquele bem na estrita medida do seu crédito, atenta a ineficácia do acto em relação a si.”
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A Recorrente termina as suas alegações, apresentando as seguintes conclusões:

“CONCLUSÕES

1.O presente recurso vem interposto do Douto Despacho que indeferiu o pedido de reabertura da liquidação com fundamento de que a procedência da acção de impugnação pauliana não importa um regresso dos bens à propriedade dos insolventes atenta a ineficácia em relação ao Credor/Autor do acto praticado.
2.A 24 de agosto de 2011, a Credora X., S.a. instaurou uma acção executiva contra a Insolvente F. P. e outros para a cobrança de uma livrança preenchida pelo valor de € 164.101,93, tendo a mesma sido distribuída com o número de processo 268/11.7TBVRM que correu os seus termos na Secção única do Tribunal Judicial de Vieira do Minho.
No âmbito do referido processo executivo, a Credora X., S.A. teve conhecimento de duas escrituras de doação de vários bens realizadas nos dias 20 de janeiro e 1 de abril, ambas do ano de 2010 entre a Insolvente F. P. e marido Joaquim, na qualidade de doadores, e o seu filho T. A., na qualidade de donatário.
3.A 18 de outubro de 2012, a Credora X., S.A. instaurou uma acção declarativa de impugnação pauliana contra a Insolvente F. P. e marido Joaquim e ainda contra o filho de ambos, T. A., tendo a mesma sido distribuída com o número de processo 497/12.6TBPCV, que correu os seus termos na Secção Única do Tribunal Judicial de Penacova.
4.Na referida acção foram impugnadas as escrituras de doação outorgadas a 20 de janeiro e a 1 de abril de 2010 que tiveram por objecto dos seguintes bens: 1) Prédio urbano situado no Lugar …, da freguesia e concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º …; 2) Prédio urbano situado na Rua …, antigo Lugar …, da freguesia e concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo ...º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º …; 3) Prédio rústico situado no Lugar …, da freguesia de …, concelho de Pena…cova, inscrito na matriz sob o artigo ....º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ….; 4) Quota nominal no valor de € 12.469,95 titulada em nome de Joaquim da sociedade comercial “Y, Lda.” com o NIPC ...; 5) Prédio urbano composto por parcela de terreno destinado a construção, da freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo 684.º e descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ….
5.Através das escrituras de doação outorgadas a 20 de janeiro e a 1 de abril do ano de 2010, a Insolvente F. P. e o marido Joaquim doaram os seus bens ao seu filho único, T. A..
6.A 17 de dezembro de 2015, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a referida acção e, em consequência, foi declarada a ineficácia, em relação à Autora X., S.A., das escrituras de doação realizadas nos dias 20 de janeiro e 1 de abril de 2010. Acontece que o Douto Tribunal ordenou “a restituição dos imóveis ao património dos Réus Joaquim e F. P., para aí serem executados na medida do interesse da Autora e até onde for necessário para a cobrança dos seus créditos”.
7.A Devedora F. P. foi declarada insolvente a 9 de junho de 2014 no âmbito dos presentes autos de insolvência, na pendência da referida acção de impugnação pauliana.
8.Na assembleia de credores, realizada a 1 de agosto de 2014, o processo foi encerrado por insuficiência da massa insolvente nos termos dos artigos 230.º, n.º 1, al. d) e 232.º, n.º 2, ambos do CIRE, uma vez que não foram localizados bens susceptíveis de apreensão para a massa insolvente. A 20 de fevereiro de 2015, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante, encontrando-se a decorrer o prazo de cinco anos.
9.Perante o teor da sentença proferida a 17 de dezembro de 2015, no âmbito do processo n.º 497/12.6TBPCV, nomeadamente com a ordem de restituição dos bens ao património dos ali Réus, aqui Insolvente F. P. e marido, a Credora X. requereu a reabertura do presente processo de insolvência com a liquidação dos referidos bens objecto da ação n.º 497/12.6TBPCV.
10.Por despacho proferido a 11 de janeiro de 2018, o Douto Tribunal a quo indeferiu o pedido de reabertura do processo de insolvência uma vez que a procedência da acção de impugnação pauliana não importa um regresso dos bens ao património dos insolventes, atenta a ineficácia em relação a si do acto praticado.
11.Salvo o devido respeito e melhor entendimento, a aqui Recorrente X., S.A. não pode deixar de manifestar a sua discordância com a decisão proferida pelo Douto Tribunal a quo, porquanto vai ao desencontro com as disposições legalmente consagradas, bem assim como o entendimento jurisprudencial sufragado.
12.Perante a factualidade supra descrita, verificamos que numa decisão judicial posterior ao encerramento do presente processo de insolvência, foi declarada a ineficácia de duas escrituras de doação que a Insolvente F. P. e marido tinham feito de vários bens imóveis de que eram titulares, ainda antes da respectiva declaração de insolvência. Em consequência, no dispositivo da respectiva decisão judicial foi expressamente ordenada “a restituição dos imóveis ao património dos Réus Joaquim e F. P. (…)”.
13.O artigo 601.º do Código Civil dispõe que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações, podendo o credor salvaguardar os seus direitos através de garantias reais ou pessoais.
14.A acção de impugnação pauliana é um meio de conservação da garantia patrimonial do devedor que consiste na possibilidade de o credor atacar os actos praticados pelo devedor tendentes a dificultar ou impossibilitar o ressarcimento do respectivo crédito.
15.Nos termos do disposto no artigo 610.º do Código Civil, os actos que envolvam uma diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se, por um lado, o crédito foi anterior ao ato e, por outro, resultar do mesmo a impossibilidade de satisfação integral do crédito do credor.
16.O n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil dispõe que, julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.

Deste modo, o credor impugnante tem o direito à restituição do que for necessário à satisfação do seu crédito, podendo directamente executar o património de quem estiver obrigado à restituição.

17.Não se está aqui perante uma declaração de nulidade cuja consequência é a repristinação do estado anterior das coisas, ou seja, a restituição de tudo aquilo que foi prestado, permitindo a todos os credores do devedor executar o património deste.
18.A acção de impugnação pauliana tem, com efeito, um carácter pessoal ou obrigacional, uma vez que os respectivos efeitos apenas aproveitam ao credor que a tenha requerido nos termos do n.º 4 do artigo 616.º do CC. Deste modo, a lei concede ao credor impugnante o direito de restituição dos bens ao património do devedor na medida do respectivo interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição.
19.De acordo com o teor do n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil, a lei concede três direitos ao credor impugnante, nomeadamente, o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse; o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; e o direito de execução no património do obrigado à restituição (assim, cfr., Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, Vol. I, pp. 633-634). De acordo com os referidos Autores, a restituição efectiva dos bens ao alienante, neste caso, à Insolvente F. P., não tem interesse na generalidade dos casos.“ Mas pode tê-lo, se a execução ainda não foi possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida (cfr. Código de Processo Civil, art. 1203.º)”.
20.Nos termos do n.º 4 do artigo 616.º do CC, verificamos que os efeitos da procedência da acção de impugnação pauliana aproveitam-se apenas ao credor que a tenha requerido, pelo que não ocorre necessariamente um retorno dos bens ao património do devedor. No entanto, julgada procedente a impugnação, o credor impugnante pode optar por exigir a restituição dos bens; por executá-los no património do obrigado à restituição ou ainda por praticar os actos de conservação de garantia patrimonial.
21.A Insolvente F. P. doou vários bens imóveis ao seu filho, tendo sido este ato gratuito objecto de uma acção de impugnação pauliana instaurada pela Credor X., S.A. Na pendência da referida acção de impugnação pauliana, a Insolvente F. P. foi declarada insolvente nos presentes autos de insolvência. Ainda na pendência da acção de impugnação pauliana, o presente processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, porquanto não foram localizados bens pertencentes à Insolvente F. P. susceptíveis de apreensão para a massa insolvente.
22.Após o encerramento do presente processo de insolvência, foi proferida sentença na acção de impugnação pauliana, tendo sido declarada a ineficácia das escrituras de doação e, em consequência, ordenada a restituição dos bens imóveis ao património dos ali Réus F. P. e marido para aí serem executados na medida do interesse da ali Autora.
23.A Credora/impugnante X., S.A. entende que, face ao teor da referida sentença judicial, os bens objecto das escrituras de doação impugnadas devem ser restituídos ao património da ali Ré F. P., a qual, estando insolvente, devem ser apreendidos na respectiva massa insolvente.
24.O Douto Tribunal a quo entende que os bens objecto da acção de impugnação pauliana não podem ser apreendidos nos presentes autos de insolvência porquanto a decisão de ineficácia apenas produz efeitos relativamente à Credora/Autora, e já não quanto aos demais credores. Acontece que, ao determinar a ineficácia do acto translativo, a lei não determinou apenas como consequência a execução do terceiro obrigado à restituição.
25.De acordo com o n.º 1 do artigo 616.º do CC., a lei permite também a restituição dos bens ao património do devedor ainda que na estrita medida do interesse do credor impugnante.
26.A restituição dos bens alienados ao património do devedor significa que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor: “Afigura-se que a melhor interpretação do disposto na lei civil (arts. 616º e 818º do Código Civil) é a de Antunes Varela. De facto, a ideia de ineficácia da transmissão relativamente ao credor impugnante – ainda que esporadicamente posta em causa na doutrina e jurisprudência nacionais – e a utilização da expressão “restituição dos bens na medida do seu interesse” apontam para que o Código Civil pretendeu tutelar a posição do credor impugnante “na medida do seu interesse”, ou seja, permitindo-lhe a penhora dos bens alienados como se, hipoteticamente, não tivessem saído do património do devedor”, em Exercício da Impugnação Pauliana e a Concorrência entre Credores, “Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço”, Vol. II, Lisboa, Almedina, p. 443.
27.Na acção executiva n.º 268/11.7TBVRM, a Credora Impugnante X., S.A. podia penhorar os bens objecto da acção de impugnação pauliana como se estes não tivessem saído do património da devedora F. P..
28.Acontece, porém, que a devedora F. P. foi declarada insolvente, pelo que, ao invés de uma execução singular cujos intervenientes são o exequente e os credores reclamantes, passamos a ter uma execução universal onde são admitidos todos os credores.
29.Quer a doutrina quer a jurisprudência tem entendido que os bens alienados e objecto de uma acção de impugnação pauliana procedente devem regressar ao património dos devedores, integrando a massa insolvente e responderem perante os credores da insolvência.
30.O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão datado de 11 de julho de 2013, no âmbito do processo n.º 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, já se pronunciou sobre a questão em discussão nos presentes autos, tendo entendido que: “Nos casos em que os executados são declarados insolventes na pendencia de acção de impugnação pauliana, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados e objecto de acção de impugnação pauliana devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a Massa Insolvente, responderem perante os credores da insolvência (…)”.
31.Para o efeito, o referido Tribunal superior entendeu que esta é a solução mais justa uma vez que os devedores não seriam afectados pela insolvência considerando que os bens objecto da acção de impugnação pauliana apenas responderiam pelo crédito do credor impugnante.
32.No referido Aresto é feita referência ao entendimento de Paula da Costa e Silva, em Cadernos de Direito Privado, n.º 7, Jul-Set de 2004, em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 4 de fevereiro de 2003, p. 54, segundo o qual, em caso de falência do devedor, “a única pretensão que pode ser actuada é a de restituição do bem ao património do devedor. Isto porque permitir a respectiva execução ao património do terceiro suporia conferir uma posição de vantagem ao credor que está munido de uma decisão proferida na acção de impugnação: só ele tem título que lhe permite atingir o património de terceiro. Os demais credores deveriam satisfazer os respectivos créditos através dos bens que estivessem integrados no património do devedor ao tempo da declaração da falência; o credor impugnante, que pudesse executar determinado bem especifico no património do terceiro, evitaria o concurso dos restantes credores do seu devedor. A impugnação deixa de ser pessoal para ter uma eficácia universal: o bem reentra no património do devedor, servindo à satisfação de todos os créditos que contra esse património são invocados”.
33.Tendo a executada F. P. sido declarada insolvente nos presentes autos, a execução n.º 268/11.7TBVRM não pode prosseguir nos termos do disposto no artigo 88.º do CIRE, estabelecendo o artigo 90.º do mesmo diploma que os credores da insolvência apenas podem exercer os seus direitos nos termos do Código de Insolvência. Como tal, a Credora X., S.A. não podia requerer a penhora dos bens imóveis objecto da acção de impugnação pauliana no âmbito da referida acção executiva.
34.A Credora X. não podia executar o obrigado à restituição uma vez que, por um lado, foi decidido na acção de impugnação pauliana a restituição dos bens imóveis ao património dos devedores e, por outro, tal solução atentaria ao princípio da igualdade dos credores no processo de insolvência.
35. “Se os executados são declarados insolventes na pendencia da acção de impugnação pauliana movida pelo exequente, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados, objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a massa insolvente, responderem perante os credores da insolvência.” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2013.
36.Nos presentes autos, na pendência da acção de impugnação pauliana, a devedora F. P. foi declarada insolvente e o respectivo processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente, uma vez que não foram localizados bens susceptíveis de apreensão.
37.Após o encerramento do processo de insolvência, foi proferida decisão na acção de impugnação pauliana, a qual foi julgada procedente e determinada a restituição dos bens ao património dos ali Réus.
38.Por todo o exposto, atento o teor da decisão proferida na acção de impugnação pauliana, os bens alienados devem ser restituídos à Insolvente F. P., passando a integrar a massa insolvente e ser objecto de liquidação, não obstante o presente processo de insolvência já tivesse sido encerrado:

“Decidido num processo a anulação da venda de um imóvel e que mesmo deve ser restituído aos insolventes, passando a integrar a massa insolvente, esse imóvel deve ser apreendido e vendido como tal, mesmo que o processo de insolvência já tivesse sido encerrado nos termos do artigo 230/1-e do CIRE, estando ainda a decorrer o período de cessão de rendimentos inerentes ao pedido de exoneração do passivo restante.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de janeiro de 2017.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o Douto Despacho e, em consequência, determinada a reabertura do processo de insolvência com a apreensão e liquidação dos bens objecto da acção de impugnação pauliana, com todas as consequências...”.
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A Insolvente/Apelada veio apresentar contra-alegações, onde pugna pela improcedência do Recurso.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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No seguimento desta orientação, a Recorrente coloca a seguinte questão que importa apreciar:

- saber se, na sequência da procedência da acção de impugnação pauliana interposta pela Recorrente, deve ser determinada a reabertura do processo de insolvência com a apreensão e liquidação dos bens que foram objecto daquela acção.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Como factualidade relevante interessa aqui ponderar apenas os trâmites processuais já atrás consignados no relatório do presente Acórdão, o teor da sentença proferida nos autos de Impugnação Pauliana, que se mostra junta a fls. 152 e ss., e o teor da decisão proferida que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
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B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Já se referiu em cima a questão que importa apreciar e decidir.
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Como se pode constatar, o que aqui se discute contende com o apuramento dos eventuais efeitos da procedência da acção de impugnação pauliana na presente acção de Insolvência, nomeadamente, pretendendo-se saber se tal procedência determinará a reabertura do presente processo para apreensão e liquidação dos bens que constituíram o objecto da impugnação pauliana.
Para um correcto enquadramento do “thema decidendum”, importa expor, sucintamente, algumas considerações jurídicas sobre o instituto da impugnação pauliana.
É regra consabida que o património do devedor é responsável pelo cumprimento das suas obrigações (art. 601º do CC).
Razão por que é dada ao credor a possibilidade de se precaver, com garantias reais ou pessoais, ou ambas, que exige do devedor, para assegurar a satisfação do seu crédito.
A lei prevê meios de conservação da garantia patrimonial.
Um desses meios é, precisamente, a impugnação pauliana.

Com efeito, a impugnação pauliana, configurada como um meio de conservação da garantia patrimonial, poderá ser definida como a faculdade que a lei confere ao credor de atacar judicialmente certos actos válidos – ou mesmo nulos (nº 1 do art. 615º do CC) – celebrados pelo devedor em seu prejuízo (1).

A este respeito, escreve Vaz Serra (2):

“A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado.
Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional.
O Autor na acção exerce o direito de crédito de eliminação daquele prejuízo (…). O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito”.

Deste modo, concorrendo determinadas circunstâncias, os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, tanto por via de acção como por via de excepção.

Como é sabido, o recurso à Impugnação Pauliana pressupõe, qualquer que seja a natureza do acto a atacar – onerosa ou gratuita –, a verificação cumulativa de determinadas circunstâncias:

a) a existência de determinado crédito;
b) que esse crédito seja anterior ao acto a impugnar ou, sendo posterior, que o acto tenha sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;
c) que resulte do acto a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade da satisfação integral do crédito.

No caso concreto, estando em causa actos jurídicos gratuitos, não se exigia o requisito da má-fé - uma vez que este só é exigível enquanto requisito no caso do acto a impugnar ser oneroso.

Efectivamente, o acto oneroso só está sujeito a impugnação pauliana, de acordo com o artigo 612º do CC, se o devedor e o terceiro tiveram agido de má fé, entendida esta, enquanto requisito subjectivo, como “ a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”. A lei exige, pois, a má fé bilateral (3).
Já no caso de se pretender impugnar actos jurídicos gratuitos - como sucedia no caso concreto -, o legislador não impõe a verificação desse requisito.
Na verdade, quando os actos a impugnar sejam gratuitos, o êxito da pretensão do credor/impugnante depende, apenas, da verificação dos pressupostos gerais precedentemente enunciados.

Vejamos, agora, os efeitos da impugnação pauliana (4).

“Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição “, aproveitando os efeitos da impugnação “apenas ao credor que a tenha requerido” (art. 616º, nºs 1 e 4 do CC).

Reafirma-se, assim, o carácter vincadamente pessoal da pauliana, o que equivale a dizer que os seus efeitos se medem pelo interesse do credor que a promove.
Não se trata de uma acção de nulidade que, uma vez procedente, destrua totalmente, o acto impugnado.

O direito atribuído ao credor impugnante à restituição dos bens alienados ao património do devedor, “para colmatar a brecha aberta na sua garantia patrimonial” significa, em primeiro lugar, “que o credor impugnante pode executar os bens alienados como se eles não tivessem saído do património do devedor, mas sem a concorrência dos demais credores deste, uma vez que a procedência da pauliana só ao impugnante aproveita”.

Mas, significa também que, “executando os bens alienados, como se eles tivessem retornado ao património do devedor e não se mantivessem na titularidade do adquirente, o impugnante pode executá-los, na medida do necessário para satisfação do seu crédito, sem sofrer a competição dos credores do adquirente(5).

Como tal, ao contrário do que acontecia no Código de Seabra (cfr. art. 1044º), os bens não têm que reverter ao “cúmulo dos bens do devedor em benefício dos seus credores”, permanecendo, antes, no património do obrigado à restituição, “onde responderão pela obrigação”, pelo que o adquirente deve ser demandado para a execução (6).

Por outro lado, “desde que mantém a garantia patrimonial do crédito do impugnante (...), a lei permite logicamente ao credor a prática de todos os actos em princípio autorizados para conservação dessa garantia”.

Finalmente, não estando o acto impugnado afectado por qualquer vício intrínseco, capaz de gerar a sua nulidade, “a procedência da pauliana não envolve a sua destruição”. De facto, na medida em que a pauliana visa apenas eliminar o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor impugnante, compreende-se que, “reparado esse prejuízo, nenhuma razão subsiste para não manter a validade da parte restante do acto, não atingida pela impugnação pauliana”.

Logo, o acto impugnado mantém-se de pé, como acto válido, “em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor” (7).
Como se viu, o nº 1 do art. 616º do CC confere ao credor impugnante não só o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, mas também o direito de os executar no património do obrigado à restituição.

A restituição efectiva dos bens ao alienante não tem, pois, interesse, na generalidade dos casos, a menos que a execução ainda não seja possível ou haja falência (8).

Não é necessário, assim, o retorno dos bens ao património do alienante para aí serem executados. De acordo, portanto, com a doutrina do nº 1 do art. 616º do CC, confirmada pelo art. 818º do CC, “pode mover-se logo a execução contra o adquirente dos mesmos bens”, uma vez julgada procedente a impugnação.

Expostos os precedentes princípios jurídicos, debrucemo-nos sobre o caso concreto.

O Tribunal Recorrido, pronunciando-se sobre o requerimento apresentado pela aqui Recorrente no sentido de pedir a reabertura do processo de insolvência com vista à apreensão e liquidação de novos bens (requerimento de fls. 128 e ss.), veio indeferir essa pretensão da Credora reclamante, considerando que “a procedência da acção de impugnação pauliana não importa um regresso dos bens à propriedade dos insolventes” e “com a decisão proferida e sem necessidade de outras formalidades pode o A/credor executar ou exigir do terceiro aquele bem na estrita medida do seu crédito, atenta a ineficácia do acto em relação a si”.

Ora, conforme decorre do exposto, em princípio, seria esse o entendimento que decorreria da aplicação do instituto da Impugnação Pauliana.

Com efeito, como se referiu, no caso da procedência da acção pauliana, não é necessário o retorno dos bens ao património do alienante para aí serem executados.
Os bens alienados mantêm-se, assim, no património do terceiro adquirente.

O que sucede é que o credor impugnante pode executar os bens alienados em execução dirigida contra o terceiro adquirente - embora apenas na medida do necessário para satisfação do seu crédito e só podendo “atingir” esses bens que constituíam o objecto da impugnação pauliana.
Esta seria, pois, a solução legal imposta pela procedência da acção de Impugnação Pauliana.
O problema que surge, no caso concreto, decorre do facto de, entretanto, a devedora/alienante (doadora) ter sido declarada insolvente e, nessa medida, ter-se tornado impossível instaurar (ou prosseguir) execução contra ela (cfr. arts. 85º e 88º do CIRE).
Já atrás avançamos a posição do Profs. Pires de Lima / Antunes Varela.

Segundo estes autores, “a restituição efectiva dos bens ao alienante não tem interesse, na generalidade dos casos, a menos que a execução ainda não seja possível ou haja falência…”.

Sucede que, como bem refere a Recorrida, esta posição foi assumida num quadro legal diferente do actual (citavam aqueles autores a propósito o disposto no art. 1203º do CPC- preceito legal revogado que dispunha que “Resolvido o negócio ou julgada procedente a impugnação, os valores respectivos revertem para a massa falida”).

Importa, pois, verificar se aquelas duas situações, no quadro legal actual, poderão justificar a restituição efectiva dos bens ao património do alienante/devedor/insolvente - como defende a Recorrente.
A solução que aqui tem que ser encontrada não pode deixar de ter em atenção o que ficou referido quanto aos efeitos que a procedência da Impugnação pauliana produz nos actos jurídicos impugnados.

Assim, conforme já se referiu em cima, a Impugnação pauliana não se confunde com uma acção de nulidade que, uma vez procedente, destrói, totalmente, o acto impugnado- e daí que não seja aqui aplicável o que ficou decidido no ac. da RL citado pela Recorrente, já que neste determinou-se a anulação da venda com a consequente restituição do bem ao património do alienante/insolvente, o que não sucede no caso concreto, uma vez que os bens objecto da impugnação se manteriam no património do terceiro adquirente- se aqui se considerasse o efeito jurídico geral da procedência da Impugnação Pauliana.

Ora, no fundo, isto significa que, actuando a Impugnação Pauliana sobre bens que continuam a pertencer a terceiros, pois que os actos jurídicos praticados são válidos, em princípio, aqueles bens não regressariam à massa insolvente.

Com efeito, com a celebração das escrituras de doação, o direito de propriedade sobre os bens imóveis (e sobre a quota) transferiu-se para o terceiro de uma forma válida (cfr. art. 940º do CC), e aí se mantém, apesar da procedência da Impugnação pauliana.

Sendo estas considerações pacíficas em termos gerais, a verdade é que, conforme decorre do teor do ac. do STJ citado pela Recorrente (9), existem aqui razões (bem) fundadas para considerar, em termos excepcionais, o regresso dos aludidos bens, objecto da impugnação pauliana, à massa insolvente.

É que, tendo na pendência da execução e da acção de impugnação pauliana, a devedora/alienante/doadora sido declarada insolvente, a execução passou a ser “… uma execução universal – art. 1º do CIRE – onde são, em regra, admitidos todos os credores (a regra par conditio creditorum) pese embora o diverso tratamento que têm os créditos comuns e os créditos privilegiados.

Será que a decisão da acção pauliana, ainda neste quadro, deve justificar a consequência do não reenvio dos bens ao património do executado, causador do negócio impugnado?

Agora que, por via da sua insolvência, devem os seus bens ser apreendidos para a massa insolvente, face à validade do negócio impugnado e tendo o credor direito apenas à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los “no património do obrigado à restituição”, como se fossem seus, esse bem, no caso o imóvel penhorado e hipotecado, não seria apreendido para a massa insolvente, devendo prosseguir a execução como se entendeu no Acórdão recorrido.

A ser assim, a solução pode não ser a mais justa, uma vez que os executados RR. na acção pauliana onde sucumbiram, não seriam afectados pela insolvência do ponto em que o bem objecto da impugnação apenas e tão só continuaria a responder pelo crédito do exequente, que é também o Autor/impugnante na pauliana, sendo afastados dessa execução os credores da insolvência, já que a pauliana apenas contempla o crédito do credor impugnante (acção pessoal), ou seja, apesar da insolvência os bens em execução não seriam apreendidos para a massa insolvente e escapariam à execução universal insolvencial.

Paula da Costa e Silva, no Estudo publicado nos “Cadernos de Direito Privado”, nº 7, – Julho/Setembro 2004, em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4.2.2003, na página 56, depois de indagar “se não haverá alguma circunstância em que o credor seja encabeçado numa pretensão de restituição” e de responder afirmativamente, aborda uma hipótese de contornos semelhantes ao caso sub judice, afirmando:

“E como se explicam as situações em que o bem deve ser restituído ao património do devedor em virtude de determinação legal, como ocorre, v.g., quando na pendência da acção de impugnação o devedor é declarado falido?

Tais situações explicam-se através da necessidade de ponderação de valores que impõem desvios significativos à estrutura típica da acção pauliana.

Repare-se que, em tais hipóteses, a única pretensão que pode ser actuada é a de restituição do bem ao património do devedor. Isto porque permitir a respectiva execução no património do terceiro suporia conferir uma posição de vantagem ao credor que está munido de uma decisão proferida na acção de impugnação: só ele tem título que lhe permite atingir o património de terceiro.

Os demais credores deveriam satisfazer os respectivos créditos através dos bens que estivessem integrados no património do devedor ao tempo da declaração de falência; o credor impugnante, que pudesse executar determinado bem específico no património do terceiro, evitaria o concurso dos restantes credores do seu devedor.
A impugnação deixa de ser pessoal para ter uma eficácia universal: o bem reentra no património do devedor, servindo à satisfação de todos os créditos que contra esse património são invocados.

Estamos já para além da previsão do art. 616°, n.º 4, do Código Civil.

Com isto nos estamos aproximando de uma posição que supõe introduzir uma distinção muito clara no art. 616°, n° 1, do Código Civil. Se há casos em que ao credor é conferida uma pretensão à restituição, outros há em que ele apenas é encabeçado numa pretensão à execução do bem no património do terceiro adquirente.

Em face do que antecede, pode concluir-se que, em caso de impugnação, não se verifica um concurso real de pretensões, que venha a corporizar-se numa cumulação de objectos processuais. Apesar de as pretensões do credor nos surgirem como efeitos da impugnação, não poderá dizer-se que a decisão de procedência titula um concurso, podendo o credor escolher, indiscriminadamente, qual das duas pretensões actua. O credor não poderá requerer, em simultâneo, a execução da pretensão à restituição do bem ao património do devedor com a execução da pretensão de satisfação do seu crédito à custa do bem integrado no património do terceiro.”
Sufragamos, esta interpretação, que é a que mais se compagina com a execução universal que a insolvência é, sendo compaginável com a consideração do princípio par conditio creditorum, evitando que, mal grado a declaração de insolvência dos executados, estes, indirectamente, sejam beneficiados tal como o seu credor/exequente na execução singular, acobertados sob os ortodoxos efeitos da procedência da acção pauliana, o que vale por dizer, que não obstante a insolvência dos executados e Réus vencidos na acção pauliana, a execução prosseguiria, em relação ao bem penhorado e objecto da acção pauliana, apenas entre o credor exequente e os executados, ficando a salvo da execução universal com evidente tratamento discriminatório.

Nos casos em que os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados e objecto de acção de impugnação pauliana, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a Massa Insolvente responderem perante os credores da insolvência, sendo o crédito do exequente e Autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade [com a ressalva do estatuído no art. 127º, nº3º, do CIRE] com os demais credores dos inicialmente executados, ora insolventes, assim acolhendo a lição de Pires de Lima e Antunes Varela quando afirmam que “o credor pode ter interesse na restituição dos bens ao património do devedor, se a execução ainda não é possível ou se há falência ou insolvência, caso em que os bens revertem para a massa falida”.

Na vigência do revogado CPEREF este diploma previa uma acção de impugnação pauliana colectiva – art. 159º, nº 1 – que, em caso de procedência, faria com que os bens revertessem para a massa falida, assim atenuando as consequências discriminatórias que a declaração de insolvência na pendência da pauliana encerrava, a admitir-se que, apesar dela, o exequente sairia incólume executando os bens no património de terceiro adquirente.

Cura Mariano, obra citada, pág. 269, afirma – “Com a entrada em vigor do C.I.R.E., deixou de existir qualquer distinção nos efeitos da impugnação pauliana relativa a actos do devedor que veio a ser judicialmente declarado insolvente, pelo que os credores do adquirente concorrerão em qualquer caso com o credor impugnante.”
Tendo os executados sido declarados insolventes, a execução não pode prosseguir, nos termos do art. 88º do CIRE, estabelecendo o art. 90º que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos nos termos deste Código.

O CIRE, no art. 127º, nº 3º, estatui – “Julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.° do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos”.
Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, escrevem em anotação, pág. 450:

“Na aferição do interesse do credor, o preceito em anotação atende ao disposto no art. 616º do Código Civil, nomeadamente ao seu n.°4, quando estabelece que a impugnação só aproveita ao impugnante. A nova lei afasta-se assim da anterior, a qual, no seguimento da nossa tradição, determinava que a procedência da impugnação aproveitaria à comunidade dos credores (vd. art. 159.°, n.°1, do CPEREF). Nesta base, o interesse do credor impugnante é aferido, segundo a estatuição do n.°3… sem atender às modificações introduzidas no seu crédito por um plano de insolvência ou de pagamentos que tenha sido aprovado e homologado; isto significa que o seu crédito é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.°1 do referido art. 616°, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência” (10).

Mais recentemente, e ponderando todas as posições conhecidas, Marisa Vaz Cunha (11), depois de colocar a questão de saber se a doutrina defendida por Pires de Lima/A. Varela (entre outros) se deve manter em face do CIRE, veio também acolher esta interpretação, considerando que a mesma “é possível mesmo à luz do CIRE, tal como decidido no ac. do STJ de 11.7.2013…”.

Para tanto, apresenta os seguintes argumentos:

- “O primeiro fundamento que nos parece relevante está relacionado com a teleologia do Direito da insolvência e com a alteração que a insolvência provoca no ordenamento jurídico no seu todo, não apenas no âmbito do processo de execução universal em si.

A declaração de insolvência marca profundamente e de forma significativa a relação entre o devedor e o seu património, entre o devedor e os respectivos credores e entre os credores na relação com os seus pares. E fá-lo, não apenas em termos processuais, mas sobretudo em termos substantivos, afectando todas as relações preexistentes e forma de exercício dos direitos em causa (…).

Nessa medida, o meio de conservação de garantia patrimonial que é a Impugnação pauliana tem, inevitavelmente, de se adequar às vicissitudes do objecto que visa conservar, não podendo ficar alheio ao facto de a garantia patrimonial do credor ter sido convertida, por força da insolvência, numa garantia patrimonial universal: a massa insolvente. A apresentação de acção impugnação pauliana individual justifica-se, como meio de conservação, pela capacidade de o devedor ainda solver as suas dívidas. Não é isso que acontece com a declaração de insolvência. (…) Nessa altura, qualquer acção devia ser exercida no interesse indiscriminado de todos os credores prejudicados por determinado acto. A exigência de tutela do credor singular é absorvida pela massa que integra o interesse individual do credor.

Se assim não for, apenas se poderá concluir que o regime constante do art. 127º é flagrantemente contrário à lógica do sistema jurídico, admitindo uma excepção ao princípio da universalidade e permitindo a constituição de um direito equivalente a um direito de preferência depois da declaração de insolvência, sem qualquer fundamento”.

-“O segundo fundamento que sustenta a posição apresentada… está, inevitavelmente, relacionado com o princípio da par conditio creditorum. (…)

… refira-se que admitir a impugnação pauliana individual a benefício desse credor significaria promover um expediente para se obter o pagamento do crédito, em resultado de um conluio entre o administrador de insolvência e um determinado credor (normalmente um credor com mais poder). O Administrador de insolvência não resolveria o acto para beneficiar o direito do credor que já tenha iniciado a impugnação pauliana ou que tenha a intenção de a exercer, com a finalidade de obter um benefício em detrimento dos restantes credores.(…).

Assim, entendendo que a interpretação proposta é possível nos termos do nº 2 do art. 9º do CC, conforme acima explanado, e é a mais consentânea com os valores e princípios em causa, apenas será de concluir pela falta de sentido e de utilidade do disposto no art. 127º quando confrontado com o art. 88º. O credor que individualmente tivesse exercido a impugnação pauliana (acção de natureza declarativa) não conseguiria efectivar o seu direito pela via da acção executiva, uma vez que os princípios da concursalidade e universalidade vedariam a afectação individual dos bens integrantes da massa insolvente, e uma vez que a execução universal absorve a execução singular, através da reclamação de créditos prevista nos arts. 128º e seguintes.

Veja-se que, embora se pudesse defender a possibilidade de o credor, de forma individual, atacar o património de terceiro, no caso de o bem já se encontrar na titularidade de um subadquirente de boa-fé, essa conclusão já não seria possível. O direito do credor passaria por chamar o terceiro e o devedor para responderem pela saída do património. Aqui, sim, valeria o art. 88º.

Em conclusão, parece-nos que o nº 3 do art. 127º deve ser objecto de uma interpretação restritiva, defendendo que este apenas se refere ao nº 1 do art. 666º do CC. O credor ficará sempre com o seu crédito incólume face aos restantes credores, como benefício pelo exercício da acção de impugnação pauliana (…). Prevalecendo a lei especial sobre a lei geral, a impugnação pauliana será exercida em benefício da colectividade dos credores, mesmo que seja iniciada por um deles. No que respeita a esse credor, o seu interesse particular será determinado, dentro do concurso, sem considerar as alterações introduzidas por um plano de insolvência ou de pagamentos, como benefício pela prossecução da acção de impugnação pauliana”.
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Aqui chegados, julga-se que, por força de toda esta argumentação, se tem que concluir, efectivamente, que a melhor interpretação dos preceitos legais aqui em aplicação é aquela que tem em conta a necessidade de impedir que um credor, só porque foi mais expedito em deduzir a impugnação pauliana, possa escapar ao concurso universal, contrariando todos os valores subjacentes ao processo de insolvência.

Nesse sentido, e apesar do efeito jurídico geral da Impugnação pauliana não impor a restituição dos bens ao património do alienante, não se pode deixar de reconhecer, nestas situações, uma circunstância excepcional que exige um outro efeito jurídico à Impugnação pauliana – a restituição dos bens à massa insolvente - tendo em conta os interesses subjacentes aos princípios e valores inerentes ao Processo de Insolvência.

Nesta conformidade, e porque concordamos inteiramente com esta fundamentação que atrás se explicitou, resta-nos, pois, concluir no sentido da procedência da pretensão da Recorrente, já que se considera que, no caso concreto, estamos justamente perante uma circunstância excepcional que impõe que os efeitos normais da procedência da acção de impugnação pauliana não sejam aqui aplicáveis.

Na verdade, tendo a devedora/alienante sido declarada insolvente, na pendência da acção executiva e da acção de impugnação pauliana, justifica-se que, tendo em conta as razões explanadas, os bens alienados, objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devam, excepcionalmente, regressar ao património do devedor/insolvente, para, integrando a massa insolvente, responderem, nas condições descritas, perante os credores da insolvente.

Pelo exposto, julga-se procedente o Recurso, com a consequência de a decisão proferida dever ser substituída por outra que ordene a reabertura do processo de Insolvência, com a subsequente apreensão e liquidação dos bens imóveis e quota nominal que constituíram o objecto da acção de impugnação pauliana.
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III- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar:

-o Recurso interposto pela Recorrente procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida e determinar a sua substituição por outra que ordene a reabertura da Insolvência, com a subsequente apreensão e liquidação dos bens que constituíram o objecto da acção de impugnação pauliana.
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Custas pela Massa Insolvente (artigo 527º, nº 1 do CPC).
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Guimarães, 30 de Maio de 2018

Pedro Alexandre Damião e Cunha
Maria João Marques Pinto de Matos
José Alberto Moreira Dias

1. Cfr. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, págs. 445/446, e Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, págs. 855/856.
2. In BMJ, 75, pág. 287
3. Cfr. o Ac. do STJ de 21/02/2006 ( Relator: Custódio Montes), in dgsi.pt.
4. V., entre outros, Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, págs. 444 e ss., e Pires de Lima / Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 633/634, Almeida Costa, in “Direito das obrigações”, págs. 868 e ss.; Menezes Leitão, in “Garantias das obrigações”, págs. 71 e ss..
5. Antunes Varela, “Das obrigações em geral”, págs. 445.
6. Cfr. Anselmo de Castro, in “Acção Executiva Singular, Comum e Especial “, págs. 77/78.
7. Cfr. Antunes Varela, op. e vol. cits., págs. 444 e ss., e Pires de Lima / Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 633/634.
8. Cfr. Pires de Lima / Antunes Varela, op. e vol. cits., pág. 634
9. Ac. do STJ de 11.7.2013 (relator: Azevedo Ramos), in Dgsi.pt que aqui seguiremos de perto.
10. Fim da citação do ac. do STJ atrás identificado.
11. In “Garantia patrimonial e prejudicialidade” (2017), págs. 302 e ss.