Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
211/10.0IDBRG-D.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: NULIDADE SANÁVEL
DEFICIÊNCIA DE GRAVAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/21/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – A existência de deficiências na gravação da prova, que afetem a possibilidade de recurso em matéria de facto, constitui nulidade sanável, a suscitar em requerimento autónomo perante o tribunal de primeira instância.
II – O prazo para essa arguição, que em princípio se deve contar a partir da deteção do vício, decorre até ao termo do prazo da apresentação do recurso.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nos autos com o n.º 211/10.0IDBRG- a Exmª juíza do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, por despacho de 14 de Fevereiro de 2013, indeferiu o requerimento de arguição de nulidade das declarações prestadas na audiência e de repetição da prova produzida na sessão da audiência de 11-12-2012, formulado pelo arguido Marco C....

2. Inconformado, o arguido apresentou recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição) :

1. A 18 de Dezembro de 2012 foi proferida sentença nos presentes autos, sentença essa depositada na mesma data na secretaria do respectivo juízo criminal.
2 A 21 de Janeiro de 2013, o Rec.te requereu aos autos cópia da gravação do prova gravada em sede de julgamento com vista a minutar recurso reapreciando a mesma.
3. A 22 de Janeiro 2013, o Rec.te levantou o suporte digital da prova gravada das sessões de julgamento.
4. Ao ouvir a mencionada gravação. o Reate constatou que a sessão de julgamento realizada a 11 de Dezembro de 2012 não se encontrava gravada, sendo que a 29 de Janeiro de 2013, sete dias após a entrega pelo Tribunal do suporte digital o Rec.tc apresentou um requerimento aos autos, arguindo a nulidade da documentação da prova produzida nos termos do disposto no cri, 363°, 364°, n° 1, conjugado com o disposto nos art.° 120.º e 105.º, n.°1 todos do C.P.P.
5. Sucede porém que, o Tribunal A quo considerou que o requerimento apresentado linha sido Intempestivo,
6. Ora, só com a entrega dos suportes digitais ao Rec.tc, é que efectivamente este pode verificar a existência, ou Inexistência da mencionada gravação e não em qualquer outro momento, equacionado ou hipotético,
7. Pelo que o prazo de dez dias para arguição da nulidade só começará a corra a partir dessa entrega, de onde a tempestividade da arguição.
8. À decisão recorrida violou os art°s 363°, 364°. 120° e 105° n°1 todos do Código de Processo Penal.”
O magistrado do Ministério Público no juízo criminal de Guimarães apresentou resposta concluindo que (transcrição parcial) “(…) 3 - Certificada pela secção de processos a original inaudibilidade da gravação em causa reportada àquela concreta sessão de julgamento e aos depoimentos em causa, deve ser configurada como irregularidade a mera deficiência de documentação traduzida na imperceptibilidade do depoimento em causa como assim o decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão de 31 de Janeiro de 2011 (processo n.° 165/09.6PABCL in dgsi.pt)”
4- Pelo que, seja configurada como irregularidade (como defendemos) atenta a data em que ocorreu tal inaudibilidade e a data da respectiva arguição, tal arguição é manifestamente extemporânea;
5 - E a considera-se como nulidade, é de defender que o prazo para a sua arguição deverá ser desde a data da concreta sessão em causa ou, assim, se não entendendo, da leitura da sentença.

6 - A douta decisão não violou qualquer preceito lega! e nela se decidiu conforme a lei e o direito.

3. Neste Tribunal da Relação de Guimarães onde o processo deu entrada em 12.09.2013, o Ministério Público, por intermédio da Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer, escrevendo (transcrição parcial) “Sobre este assunto existe diversa Jurisprudência para todas as sensibilidades, no entanto, e salvo o devido respeito por opinião contrária, aquela que se nos afigura mais correcta e razoável é a que está de acordo com a posição defendida pelo arguido/recorrente.

Com efeito, só após o interessado estar ciente da decisão contra ele proferida e decidir interpor recurso e pedir que lhe seja entregue a prova produzida em audiência devidamente gravada nos CDs que entrega para o efeito e efectuada a respectiva entrega e procede à sua audição, é que tem a possibilidade de se aperceber da deficiência e que essa deficiência afecta o seu direito de interpor recurso.
Daí que só nessa data esteja em condições de suscitar a nulidade da gravação, nulidade que tem de ser suscitada no prazo de 10 dias tendo sido, isso, exactamente que o arguido/recorrente efectuou. No sentido desta posição se pronunciaram, entre outros, o douto Acórdão de 9 de Novembro de 2011, proferido ro Proc. n.° 2184/09.3TALRA.C1 do Tribunal da Relação de Coimbra, em que foi Relator o Exm.° Sr. Juiz Desembargador Paulo Guerra; Acórdão de 24 de Janeiro de 2012, proferido no Proc. n.° 143/11.5PGLRS.L1-5 da 5 Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em que foi Relator o Exm.° Sr. Juiz Desembargador Dr. Jorge Gonçalves e o douto Acórdão desta Veneranda Relação de Guimarães de 18 de Janeiro de 2010, proferido no Proc. n.° 1508/04.4TAGMR.G1, em que foi Relatora a Exm.a Sr.a Juiz Desembargadora Dr.a Teresa Baltazar.
Assim, e em face do exposto e pelo facto de com esta Jurisprudência concordarmos, somos de parecer que concedendo-se provimento ao recurso, interposto pelo arguido/recorrente, se fará a habitual Justiça.”

Decorrido o prazo de resposta ao parecer do Ministério Público e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

4. O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):

Req (refª 2617330)
1. A 29.01.2013, veio o arguido Marco C... arguir a nulidade das “declarações prestadas em sede de audiência” a 11.12.2012 e requerer a repetição da prova produzida nessa data.
Ouvido, promoveu o Ministério Público o indeferimento da nulidade arguida, seja por a circunstância alegada configurar uma irregularidade que não foi suscitada em tempo, seja por a arguição da circunstância como nulidade ser claramente extemporânea.
II. Cumpre apreciar.
Pese embora referir-se a nulidade das declarações prestadas em sede de audiência, claramente se percebe, pelo conteúdo do requerimento e a alusão ao disposto no art.° 363.° do Código de Processo Penal, que o que o arguido pretendia arguir era a nulidade da «documentação das declarações orais» prestadas.
Com efeito e desde a entrada em vigor da Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, que introduziu alterações ao Código de Processo Penal, passou o art.° 363.° do aludido Código a dispor que «as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».
E, de acordo com o disposto no art.° 364.° do mesmo diploma, a «documentação das declarações (...) é efetuada em regra através de gravação magnetofónica ou audio-visual (...».
Ora, como resulta dos normativos vindos de transcrever, as declarações em causa são as declarações prestadas pelos sujeitos processuais e pelos intervenientes acidentais e, claro está, as respectivas perguntas que as despoletaram. E, a omissão da documentação ou a documentação deficiente (por se entender que esta situação também se mostra abrangida pela norma legal) de tais declarações constituirá, como sustenta o arguido, o vício da nulidade.
Trata-se, como também reconhece o arguido, de uma nulidade sanável, isto porque nem o legislador referiu tratar-se de uma nulidade insanável, nem a mesma integra o elenco taxativo das situações previstas como nulidades insanáveis pelo art.° 119.º do Código de Processo Penal.
Configurando, como configura, urna nulidade sanável, à luz do art.° 121.º do mesmo Código, tem de ser arguida, por quem nisso tem interesse e no prazo de dez d5as, conforme disposto no art.° 105°, n°1, do mesmo Código Penal (disso também concordando o arguido Marco C...).
Por tratar desta questão, se mostrar suficientemente esclarecedor e nele nos revermos, transcrevemos o que fora decidido recentemente pela Relação de Guimarães, em acórdão proferido a 15.10.2012, o qual faz igualmente referência a outros acórdãos e de outros Tribunais de Relação «Como bem se refere no Ac.R.Coimbra de 2/6/2009, proc. 9/05.STAAND, relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, ‘a sua arguição deverá ser feita por meio de requerimento formulado perante o tribunal de 1.’ instância, dentro do prazo legal previsto no artigo 105°, n°1, do C.P.P., e não directamente na motivação de recurso interposto da sentença. Mantém-se actual a jurisprudência a que Alberto dos Reis aludia, em sede de processo civil, quando citava o postulado «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se». Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida em sede de recurso da decisão final e portanto em prazo superior àquele prazo legal supletivo, sendo certo que a nulidade por falta ou deficiência de documentação reporta-se a actos ocorridos numa fase prévia à sentença e que não a inquinam com qualquer nulidade das previstas no artigo 379.° do C.P.P.. pelo que se submete ao regime gemi sobre nulidades processuais Da decisão proferida sobre o requerimento de arguição de nulidade caberá recurso, nos termos gerais» No mesmo sentido se pronunciaram o Ac.R.Guimarães de 11/4/2012, proc. n.°1037/08.7PBPGMR.Gl, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, in www.dgsi.pt o Ac.R.Porto de 11/4/2012, proc. n.°309.OPLPRT, relatado pela Desembargadora Lígia Figueiredo, in www.dgsi.pt. sublinhado nosso]. (cfr. Proc. 929/07.STAFLG.G1, disponível em www.dgsi.pt).
A questão que importa, então, saber é de quando se poderá contar esse mesmo prazo para o exercício da sua arguição. Não olvidando entendimento diverso, somos em considerar que o prazo de 10 dias para arguir a nulidade da documentação da audiência se inicia com o fim sessão da audiência a que respeitar acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo arguente em tribunal e a sua devolução com a cópia do registo sonoro (cfr. entre outros, Ac. da Relação do Porto de 29.10.2008, Proc. 0844934, Ac. Relação do Porto de 20.09.2012, 363/04.9TBAMT.P2,Ac. Relação do Porto, de 11.04.2012, Proc. 3/09.OPLPRT.P1, Ac. Relação de Lisboa de 24.01.2012, Proc. n° 143/11.SPGLRS.L1-3, todos disponíveis em www.dgsi.pt; e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, iv “Comentário do Código de Processo Penal, UCE, pág. 923, nota 7, onde defende que «A sanação da invalidade referida ocorre se a mesma não for tempestivamente arguida, contando-se o prazo de 10 dias para tal a partir da sessão da audiência a que respeitar acrescido do tempo que mediou entre a entrega do suporte técnico pelo arguente em tribunal e a sua devolução com a cópia do registo sonoro»).
Assim, iniciando-se o referido prazo de dez dias no dia em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficam à disposição do sujeito processual interessado e tendo presente que o aludido suporte ficou efectivamente à disposição do arguido desde, pelo menos, o dia imediatamente a seguir à data da sessão de julgamento cujas declarações defende estarem inaudíveis, ou seja, a 12.12.2012, somos em concluir que há muito que se esgotou o aludido prazo para a arguição da nulidade em causa.
Neste sentido, pugna igualmente o Ministério Publico.
Mesmo que não se considere esta data como a do início da contagem do prazo de dez dias, o que só por mera hipótese de raciocínio se concebe, e se equacione a data da leitura da sentença, que ocorreu a 18.12.2012, como a data em que os suportes técnicos ficaram disponíveis ao arguido — isto, tendo presente a finalidade da audição da gravação da audiência (interposição de recurso da decisão condenatória, conforme alega arguido) - ainda assim, há muito que terminara o prazo para a arguição da nulidade da documentação.
Por conseguinte, somos em concluir estar sanado o alegado vício.
III. Decisão:
Pelo exposto, indefere-se a arguida nulidade, por extemporânea.
Notifique.

5 . Os limites e o objecto do recurso definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde sintetiza as razões da discordância do decidido e resume as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

A questão a decidir consiste em saber deve ser rejeitado por extemporâneo o requerimento formulado nestes autos a suscitar invalidade processual por inaudibilidade do registo das declarações e depoimentos prestados na audiência de julgamento.

6. Em conformidade com os elementos constantes destes autos de recurso em separado, o circunstancialismo anterior ao despacho recorrido e com interesse para a decisão é o seguinte :

a) Em 18 de Dezembro de 2012 foi depositada a sentença proferida nos autos de processo comum n.º 211/10.0IDBRG;

b) Em 21 de Janeiro de 2013, o arguido Marco C..., por intermédio da ilustre defensora, requereu cópia do registo áudio da prova produzida na audiência de julgamento, a fim de preparar a interposição de recurso;

c) Em 29 de Janeiro de 2013 o arguido apresentou requerimento invocando que não foi realizada a gravação das declarações prestadas em sede de audiência d julgamento do dia 11/12/2012, nomeadamente das 14:26:20 às 15:05:55, referente aos depoimentos da testemunha Ricardo Leite e do aqui arguido. No mesmo requerimento, o arguido afirma que a prova produzida era extremamente relevante para a reapreciação e impugnação da matéria de facto, pelo que, perante a sua inexistência não pode o Arg.do a ela reportar em sede de recurso e conclui pedindo a repetição da prova produzida aquando da audiência de 11/12/2012.

7. Na redacção posterior à Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, dispunha o artigo 363º do Código do Processo Penal :

«Artigo 363.o
Documentação de declarações orais — Princípio geral
As declarações prestadas oralmente são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser.»

Como frequentemente se salientou e se tornava evidente, esta disposição tinha como objectivo permitir a explicitação na motivação do recurso e a modificabilidade da decisão em matéria de facto (artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º, ambos do CPP).

No âmbito de vigência desta redacção da norma, gerou-se controvérsia jurisprudencial quanto à natureza e regime da invalidade resultante da omissão ou deficiência da documentação das declarações prestadas oralmente quando tal registo fosse obrigatório. Tendo-se considerado inequívoco que a omissão ou deficiência na documentação (leia-se gravação) constituía uma invalidade processual, susceptível de afectar o direito ao recurso em matéria de facto.

Assim, veio a fixar-se jurisprudência segundo a qual a omissão de documentação das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento constituía irregularidade, sujeita ao regime do artigo 123º do CPP (Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 5/2002, no DR de 17 de Julho de 2002).

De notar porém que sempre se entendeu que essa invalidade processual não poderia ser classificada como nulidade porque nem se encontrava expressamente incluída nas previsões taxativas dos artigos 119 e 120º do CPP, nem era cominada como tal em outra disposição legal (vide a propósito os Acórdãos do STJ de 17 de Janeiro de 2001, de 24 de Abril de 2001 e de 117 de Janeiro de 2002, citados no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 5/2002) .

Ora, a Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto veio alterar a redacção do artigo 363º do CPP, de forma a constar:

«Artigo 363.o

Documentação de declarações orais

As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade»

No novo regime em vigor desde 15 de Setembro de 2007, mantém-se a forma da documentação (em regra através de gravação magnetofónica ou audiovisual ou por outro meio desde que apto a assegurar a reprodução integral das declarações prestadas oralmente na audiência) e estabelece-se que, no recurso sobre a matéria de facto, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens concretas indicadas pelo recorrente e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (artigo 412º nºs 4 e 6 do CPP).

Perante a alteração do teor literal do artigo 363º do CPP teremos forçosamente de considerar que o legislador pretendeu, de caso pensado, afastar dúvidas quanto à natureza da invalidade, e agravar as consequências da falta de registo da prova, bem como as possibilidades de arguição, com o fim de atribuir relevo e de cimentar os instrumentos de recurso em matéria de facto.

No caso destes autos, houve registo das declarações prestadas oralmente na audiência de julgamento; Porém, vem o arguido invocar que quanto às suas próprias declarações e quanto ao depoimento de uma testemunha se verifica uma imperceptibilidade da reprodução: no que diz respeito a essas pessoas e devido possivelmente a falha técnica não se conseguirá perceber o conteúdo útil do que afirmaram na audiência.

A ser assim, se não for possível entender o teor das palavras, não existe registo de reprodução integral das declarações e depoimentos prestados na audiência. Além de que nem o arguido recorrente dispõe dos elementos imprescindíveis para a elaboração da motivação do recurso (mesmo dispondo de um outro registo de memória, não pode identificar as passagens concretas do depoimento da testemunha com referência ao suporte digital), nem o tribunal superior pode apreciar e decidir da conformidade da decisão com a prova produzida.

Deste modo, se o registo aúdio se destina a permitir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e se a lei comina agora de nulidade, a falta dessa documentação, ter-se-á de considerar que, no segmento correspondente, a deficiência da gravação que acarrete imperceptibilidade da prova deve ser equiparada à situação da sua falta absoluta, configurando, também, no novo regime, uma nulidade processual (assim se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Novembro de 2009, Ernesto Nascimento, processo 4/07.2TAMTR.P1 in www.dgsi.pt, assinalando ainda que esta “equiparação” de regimes entre a falta total de gravação e a deficiência parcial já se estabelecia anteriormente quando se entendia que se tratava de mera irregularidade).

Uma vez que não se encontra prevista no elenco das anomalias que são consideradas insanáveis, a nulidade por falta de documentação da prova terá ser enquadrada como uma nulidade sanável e dependente de arguição (ou seja, sujeita ao regime dos artigos 120º a 122º do CPP).

O passo seguinte será o de saber qual o momento a partir do qual se deve considerar iniciado e qual o termo do prazo de arguição dessa nulidade :

Uma primeira hipótese, seria a de considerar aplicável o disposto no artigo 120º nº 3, alínea a) do CPP e então deveria ter sido suscitada a nulidade até ao termo da própria audiência.

Esta solução será de afastar liminarmente: no decorrer da audiência, nem mesmo no seu termo, o interveniente ou sujeito processual não tem qualquer meio técnico ou capacidade para se certificar se a gravação se encontra realizada em perfeitas condições e se o registo se mantém audível: naturalmente ele terá de confiar que o aparelho, colocado pelos serviços da administração da justiça, tem a fiabilidade exigível e que o funcionário judicial reúne a preparação e o zelo necessários a um correcto trabalho de gravação em perfeitas condições de audição.

Ora, para mais em sede tão “sensível” como a dos recursos, uma interpretação conforme a Constituição da alínea a) do nº3 do artigo 120º, tal como do 123º nº 1, ambos do CPP, não pode prescindir de uma correcção segundo a qual, em qualquer caso, se pressupõe sempre que o vício em causa seria cognoscível pelo arguido agindo de boa fé e com a diligência devida: neste sentido, decidiu o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 203/2004 julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 123º, nº. 1 do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ela impor a arguição, no próprio acto, de irregularidade cometida em audiência de julgamento, perante tribunal singular, independentemente de se apurar da cognoscibilidade do vício pelo arguido, agindo com a diligência devida (disponível in www.tribunalconstitucional.pt).

Uma hipótese distinta, sugerida na decisão recorrida, seria a de considerar o prazo processual normal de dez dias (art.º 105º nº 1 CPP) a contar da data em que os suportes técnicos com o registo das gravações ficaram à disposição do sujeito processual interessado.

Esta solução parte do princípio que o sujeito processual tem imediato conhecimento do vício na gravação no momento em que recebe o respectivo suporte.

Ora, segundo se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 1 de Julho de 2008, Ribeiro Martins, processo 120/06.8JAGRD, afirmar que o arguido tinha a obrigação de tomar conhecimento da falha da gravação logo que recebera as cassetes, é um juízo que não tem apoio em qualquer preceito legal. O arguido tinha o prazo de 30 dias para interpor o recurso da decisão de facto (…). Ora, estando o mandatário do arguido na sua boa fé, ou seja, convicto como todos que a gravação não tinha falhas, bem poderia ele decidir-se por ouvi-la no tempo estritamente necessário à entrega atempada da motivação do recurso, ou seja, nos últimos dias para a apresentação do recurso sem que nisto possa apontar-se-lhe qualquer falta de zelo ou violação do dever de diligência (acessível in www.dgsi.pt ).

Ou, como também se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Junho de 2009, ainda que seja aconselhável uma verificação imediata da qualidade da gravação, afigura-se-nos que pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia das cassetes pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso (proc 2489, Elisa Sales, www.colectaneadejurisprudência.com). No mesmo sentido, quanto à tempestividade da arguição da invalidade processual no decorrer do prazo de recurso, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2007, Alves Velho, proc. 06A449, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-11-2011, Paulo Guerra, proc. 2184/09.3TALRA.C1 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-01-2010, Teresa Baltazar, proc. 1508/04.4TAGMR.G1, de 22-10-2010, Estelita de Mendonça, proc. 559/07 (este in www.colectâneadejurisprudencia.com e de 23-09-2013, Filipe Melo, proc. 419/11.1TAFAF.G1 (in www.dgsi.pt)

Entendemos assim que a imperceptibilidade da gravação da prova, se afectar a possibilidade de recurso em matéria de facto de uma forma intransponível, constitui uma nulidade sanável, a suscitar em requerimento autónomo perante o tribunal de primeira instância. O prazo para essa arguição, que em princípio se deve contar a partir da detecção do vício, decorre até ao termo do prazo da apresentação do recurso.

No caso destes autos, o prazo de interposição de recurso da sentença completava-se em 30 de Janeiro de 2013 (artigo 411.º, n.º1, alínea b) e n.º 4 do C.P.P. na redacção então vigente). O arguido estava assim em tempo quando, em 29 de Janeiro de 2013, suscitou a invalidade.

O requerimento deve ser admitido liminarmente e apreciado na primeira instância quanto aos seus fundamentos, verificando-se então se se verifica efectivamente a nulidade processual por intransponível inaudibilidade e, em caso afirmativo, quais as consequências a extrair dessa invalidade.

8. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso do arguido e, em consequência, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que, apreciando o requerimento do arguido, não o rejeite liminarmente por extemporaneidade.

Sem tributação.

Guimarães, 21 de Outubro de 2013.

João Carlos Lee Ferreira

Paulo Fernandes da Silva (alterando a minha anterior posição expressa no acórdão de 22.02.2011, proferido no processo n.º 480/08.6GCGMR-A.G1, desta Relação).