Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
533/04.0TMBRG-K.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

1- Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal;

2- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem;

3- Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios;

4- Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão;

5- A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

L. M. nomeou à penhora os créditos presentes e futuros de que o executado fosse titular junto das sociedades Táxis Manuel e & Filho, Lda e B. Táxis, Lda.

Essas sociedades, escudando-se na previsão contida no nº4, do artigo 738º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, invocaram a impenhorabilidade das quantias equivalentes ou inferiores à totalidade da pensão social do regime não contributivo, nos termos constantes dos documentos de fls 6 e 7 deste apenso.

Notificada desses documentos, a exequente veio, em 8 de Janeiro de 2018, apresentar requerimento (cfr fls 8 e seg), a pronunciar-se sobre os mesmos e a requerer, ao abrigo do que dispõe a al. d), do nº1, do artigo 723º, que se “decida sobre a impenhorabilidade, ou não, dos referidos créditos e, não sendo os mesmos impenhoráveis, se determine a notificação das sociedades identificadas para que procedam à penhora devida na totalidade dos créditos”.

Feitos os autos conclusos no dia 18/1/2018, com data de 30/1/2018, foi proferido despacho, pelo Tribunal a quo, a considerar que “este limite à penhora reporta-se à previsão do nº 1 do citado artigo 738º, ou seja, quando sejam objecto de penhora vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assumirem a subsistência do executado” e que “tanto quanto resulta das informações prestadas pelas duas identificadas sociedades, estarão em causa créditos do executado por serviços como motorista prestados esporadicamente”, pelo que decidiu, não se enquadrando a situação no nº 1, do artigo 738º, não ser aplicável o limite previsto no nº 4, desse mesmo dispositivo.
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De tal despacho apresentou o executado recurso de apelação, em 14 de Fevereiro de 2018, conforme fls 11 e segs, pugnando por que se conceda provimento ao recurso e se revogue o despacho impugnado. Formula as seguintes

CONCLUSÕES:

1. Como questão prévia ao presente recurso, é entendimento do recorrente que o douto despacho recorrido viola o disposto no n°3 do artigo 3° do Cód. de Proc. Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a pratica de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa.
2. Na verdade, dispõe o n° 3 do art° 3.° do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem...”
3. Ora, a não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 201.° 1 do CPC, obedecendo a sua arguição á regra geral prevista no artigo 205.° do CPC (Ac. ReI. Évora de 1.4.2004).
4. Assim, antes de proferir a decisão o juiz deve conceder ás partes a oportunidade de se pronunciarem sobre todas as questões, ainda que de direito e de conhecimento oficioso, sendo proibidas as decisões surpresas.
5. No caso vertente, compulsados os autos, constatou o aqui Recorrente que, em 08 de Janeiro do ano de 2018, através de requerimento constante do sistema Citius com a referência 27811501, a exequente/Recorrida veio requerer que o tribunal se pronunciasse acerca da impenhorabilidade ou da penhorabilidade dos créditos que o recorrente auferiu ao serviço das sociedades comerciais Táxis Manuel & Filho, [da e B. Táxis, [da, invocando que a impenhorabilidade do n.° 4 do artigo 738.° do CPC não se verifica “ por estarmos no domínio da penhora de créditos e não de vencimento, salário, prestação periódica ou outra enquadrável naquela norma”.
6. Ora, o aqui recorrente não foi notificado, nem pelo ilustre mandatário da Exequente/Recorrida nem pelo tribunal, do requerimento em causa, para, querendo, sobre o mesmo tomar posição.
7. Apenas no dia 31 de Janeiro do presente ano foi notificado do despacho recorrido no qual é referido que “tanto quanto resulta das informações prestadas pelas duas identificadas sociedades estarão em causa créditos do executado por serviços prestados esporadicamente como motorista, não se enquadrando na situação do n.° 1 do artigo 738.° do CPC e, como tal, não sendo aplicável o limite previsto no n.° 4 desse mesmo dispositivo.”
8. Salvo melhor opinião, não podia o tribunal recorrido decidir a questão em mérito sem prévia audição da parte contrária — o aqui Recorrente- sob pena de se violar o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa,
9. razão pela qual, se está in casu, perante uma nulidade que influiu na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa, devendo por isso, declarar-se a nulidade processual em apreço.
10. Por outro lado, não se concorda com o despacho recorrido na parte que entendeu que os créditos do executado -aqui recorrente- por serviços prestados esporadicamente como motorista, não se enquadram na situação do n.° 1 do artigo 738.° do CPC, e, como tal, não lhe é aplicável o limite previsto no n° 4 desse mesmo dispositivo, decisão de que discorda e cuja revogação, por isso, se propugna.
11. Entendeu o MM juiz a quo que “este limite á penhora reporta-se á previsão do n.° 1 do citado artigo 738.° do código de processo civil, ou seja, quando sejam objecto de penhora vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a titulo de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, tenda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assumirem a subsistência do executado”. Tanto quanto resulta das informações prestadas pelas duas identificadas sociedades, estarão em causa créditos do executado por serviços como motorista prestados esporadicamente, não se enquadrando a situação no n.° I do artigo 738.° do Código de Processo Civil e, como tal, não sendo aplicável o limite prevista no n.° 4 desse mesmo dispositivo.”
12. Em contrário ao decidido no despacho recorrido, entende o aqui recorrente quê os créditos supra referenciados se enquadram na situação do n.° 1- do previsto no n.° 4 desse mesmo preceito legal.
13.Tanto quanto resulta das informações prestadas pelas sociedades Táxis Manuel & Filho, [da e B. Táxis, [da, estão em causa créditos por serviços prestados pelo aqui Recorrente enquanto motorista e, como tal, dúvidas não existem que, tais créditos correspondem a uma contrapartida pela actividade prestada, destinando-se a assegurar a subsistência do aqui Recorrente.
14.Segundo o que se encontra regulamentado em sede de Código de Trabalho, a prestação de serviços é um negócio jurídico firmado entre partes em que o prestador se obriga a realizar algum tipo de atividade em troca de uma contraprestação (ou seja, uma remuneração) do chamado tomador (cliente).
15.A remuneração corresponde, assim, a uma contraprestação ou retribuição por uma etapa de trabalho/serviço, paga diretamente pelo empregador ao prestador, correspondendo à contrapartida da actividade, sendo que, a relação estabelecida entre as partes é sinalagmático, encontrando-se, de um lado, a força de trabalho disponibilizada pelo prestador do serviço, e, do outro, a prestação pecuniário devida pela entidade em virtude daquela disponibilização.
16.Ora, o carácter esporádico da prestação de serviços que for devida ao prestador não afasta o critério de definição do conceito de remuneração, pelo que, atendendo a tal facto, mal andou o MM° Juiz a quo ao considerar que os créditos que o aqui Recorrente auferiu pelos serviços prestados como motorista ao serviço das duas entidades acima descritas, não se enquadram na previsão do n.° 1 do artigo 738.° do Código de Processo Civil, pois, pese embora o crédito referido nos autos não tenha a natureza periódico, ou melhor, permanente, eles provêm dos serviços prestados pelo aqui Recorrente enquanto motorista para as duas sociedades supra identificadas, e, como tal, por identidade de razão, deverá ser aplicável o regime previsto no artigo 738.°, n.° 1 do CPC.
17. Acresce que, como tem sido assinalado jurisprudencialmente, a ratio essendi da impenhorabilidade relativa ou parcial que o inciso normativo transcrito consagra, baseia-se primordialmente em razões que se prendem com a dignidade da pessoa humana, pelo que, in casu, importa apurar se o crédito do recorrente devido em consequência de serviços por si prestados enquanto motorista, comunga das caraterísticas que conduziram o legislador a estabelecer a mencionada impenhorabilidade relativa.
18. Entende o aqui recorrente que, o contexto da atribuição desses créditos que a si são devidos pelos serviços prestados enquanto motorista, assume inequivocamente a natureza de prestação destinada a assegurar a sua subsistência, sendo, pois, subsumível à fattispecie do art. 738°, n° 1 in tine, apresentando-se, desse modo, como parcialmente impenhorável.
19.Em consonância com a rafio da citada dimensão normativa, a impenhorabilidade relativa (ou parcial) não está tanto na periodicidade do pagamento das atribuições patrimoniais nela mencionadas, mas fundamentalmente no seu destino, ou seja, estarem essencialmente vocacionadas a garantir a satisfação das necessidades do executado –aqui Recorrente-, interpretação esta que se mostra perfeitamente consonante com o texto legal já que nele se alude a “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.
20. Relevante, na situação concreta, é o facto de a prestação poder assegurar a manutenção ordinária da vida financeira básica do executado e não tanto a natureza da mesma (designadamente, ser ou não periódica), como notam Virgínio Ribeiro e Sérgio Rebelo, in A ação executiva anotada e comentada, pág. 289.
21.Ora, os créditos auferidos pelo aqui Recorrente ao serviço das sociedades acima identificadas visam disponibilizar a este, determinada importância pecuniária que lhe possibilita satisfazer as suas necessidades económicas e financeiras para prover à sua subsistência, sendo que, com a admissão da penhorabilidade integral desta atribuição patrimonial é seguramente posta em causa a subsistência económica do executado Recorrente, fazendo, por conseguinte, perigar a satisfação das suas necessidades (e, eventualmente, do seu agregado familiar).
22. Assim, salvo melhor opinião, os limites estabelecidos no n° 4 do art. 738° do Cód. Processo Civil têm aplicação in casu, pois de contrário, seria desconsiderada a natureza e finalidade da atribuição patrimonial auferida pelo recorrente, ficando em causa o limite mínimo exigível e necessário para se respeitar o principio da dignidade humana.
23. Acresce que, entende a nossa melhor Jurisprudência que perante a colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu direito (apoiado no n° 1 do artigo 62.° da Constituição da República Portuguesa) e o direito fundamental da pessoa humana quando esteja em causa um rendimento que lhe garanta uma sobrevivência condigna, deve sacrificar-se o direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for indispensável, mesmo totalmente, neste caso para evitar que o devedor executado se transforme num indigente a cargo da colectividade.
24. ln casu, como resulta dos autos, a Recorrida L. M. concluiu mestrado integrado em ciências farmacêuticas na Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto a 10 de Abril do ano de 2014, tendo iniciado a sua vida profissional em 6/10/2014 (requerimento constante do sistema Citius com a referência 2236580 datado de 13. de Abril de 2016), auferindo rendimentos próprios na Entidade Farmácia X, da, Niss …, sendo que, por sua vez, o aqui recorrente é trabalhador independente, sendo incerto, mensalmente, o montante por si auferido como rendimento do seu trabalho, não assumindo o mesmo um caracter regular e periódico, vivendo com dificuldades económicas e financeiras, e como tal, forçoso é concluir que, existe desnecessidade na prestação de alimentos a prestar pelo recorrente para assegurar a subsistência da Recorrida, o que, não foi tomado em consideração na decisão em crise.
25. Assim e atendendo a que está em causa nos autos a não satisfação de um crédito alimentar, deverá ser entendido que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, a qual, actualmente, se encontra fixada no montante de € 203,35, sem a qual, verá o aqui recorrente afectada a sua sobrevivência diária e futura, assim se fazendo a habitual justiça.
26. A Douta Decisão violou, assim, o preceituado nos artigos 738. ° n.° 1 e n.°4 do CPC e ainda os princípios constitucionais da dignidade humana, do minino de existência e da equidade previstos no artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa.
27. Em face do exposto, sempre se mostrará bem fundada a pretensão do Recorrente, pelo que deve revogar-se o douto despacho em mérito.
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1. Se houve violação do princípio do contraditório;
2. Consequência da sua inobservância;
3. Da impenhorabilidade dos créditos.
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II.A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da violação do princípio do contraditório

Sustenta o apelante que a decisão recorrida é nula, por constituir uma decisão-surpresa e, nessa medida, violar o princípio do contraditório.

Vejamos se assiste razão ao apelante.

A necessidade da contradição, aflorada, em diversas disposições do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, vem genericamente concretizada no artigo 3º, que, sob a epígrafe Necessidade do pedido e da contradição, presentemente, de modo mais justo, abrangente e amplo, dispõe:

1. O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2. Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3. O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4. Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência preliminar ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

O direito ao contraditório, decorrência natural do princípio da igualdade das partes, consagrado no art. 4º, na medida em que garante a igualdade das mesmas ao nível da possibilidade de pronúncia sobre os elementos suscetíveis de influenciar a decisão, “possui um conteúdo multifacetado: ele atribui à parte não só o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação ou requerida uma providência e, portanto, um direito à audição antes de ser tomada qualquer decisão, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta” (1). Surge como estruturante e basilar no processo Civil.

A estrutura da ação regulada pelo direito processual civil apresenta bilateralidade, porquanto, em termos gerais, a relação processual se estabelece entre duas partes litigantes, o que exige, antes de mais, que qualquer pessoa ou entidade tenha conhecimento de que foi formulado contra si um pedido, dando-se-lhe oportunidade de defesa, mas ainda que, ao longo da tramitação, qualquer parte tenha conhecimento das iniciativas ou pretensões deduzidas pela outra parte, com a inerente possibilidade de pronúncia antes de ser proferida decisão. Esta vertente do contraditório – o direito de conhecimento de pretensão contra si deduzida e o direito de pronúncia prévia à decisão – corresponde ao sentido tradicional do princípio, tendo consagração legal na segunda parte do nº1 e no nº 2, do art. 3º (2)

Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema de comunicações entre as partes e o Tribunal.

Nos últimos tempos e nesta sociedade em que o direito de acesso à justiça é um direito fundamental do cidadão, vem-se assistindo a uma crescente tendência de substituição de um processo estritamente individualista, privatístico, por um direito processual mais justo e socialmente mais aberto, sendo notória a mudança das linhas de orientação adjetiva, passando o juiz a ser visto não como um mero garante das regras do jogo honesto mas, antes, empenhado na solução concreta do conflito e mais aberto na consideração das consequências das soluções, tendo sempre o dever de fundamentar a sua decisão e deixando-se às partes o direito de a influenciar.

Passou, assim, a ter uma maior amplitude, pois também está em causa assegurar às partes o direito de serem ouvidas como ato prévio a qualquer decisão que venha a ser proferida no processo. Nesse sentido, o nº3 do art. 3º, para além de estabelecer que o juiz “deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo o princípio do contraditório”, acautela que o juiz não decida “questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”, só assim não sendo, como menciona este próprio preceito, em caso de “manifesta desnecessidade”. Nesta conformidade, para além de se evitarem as decisões-surpresa, passou a conferir-se às partes a possibilidade de intervirem e, com os seus argumentos, influenciarem a decisão (3)

Assim, o direito de acesso aos tribunais engloba a garantia do contraditório, quer num sentido mais restrito – visto como direito de, ao longo de todo o processo, cada uma das partes conhecer e responder à posição (iniciativa ou pretensão) tomada pela parte contrária – quer no sentido mais lato que presentemente lhe vem a ser dado – entendido como direito das partes intervirem, ao longo de todo o processo, para influenciarem, em todos os elementos que se prendam com o objeto da causa e que se antevejam como potencialmente relevantes para a decisão, – pois a colaboração das partes é vista como primordial para que o processo atinja plenamente o seu fim – a justa composição do litígio. Privilegiando-se a bondade da decisão de mérito em detrimento da de forma e sendo tudo processado segundo um esquema de cooperação recíproca, é mais facilmente obtida a verdade material e alcançada a verdadeira função dos tribunais – administrar a justiça resolvendo os conflitos de interesses das partes de acordo com o direito material.

Agora, o princípio do contraditório significa muito mais do que um jogo de ataque e defesa ao longo do qual o processo se desenvolve, sendo entendido como garantia do direito de influenciar a decisão, mediante a possibilidade de participação efetiva de ambas as partes em todos os elementos em que o litígio se manifesta - o plano da alegação de facto, o plano da prova e o plano do direito - que em qualquer fase do processo surjam como potencialmente relevantes para a decisão, ficando marcado por uma dupla crivagem ou entrelaçamento de perspetivas de grande valia para alcançar a justa decisão do caso concreto.

Os factos, as provas de tais factos e os critérios jurídicos aplicáveis aos mesmos são as três bases ou níveis em que assenta a decisão do Tribunal e, por isso, a possibilidade de ambas as partes influírem na decisão, pronunciando-se sobre a intervenção processual da outra, reporta-se a todos eles.

O princípio do contraditório, visto como o direito de influenciar a decisão, é uma garantia de participação efetiva das partes no desenrolar do litígio, acompanhando-o em toda a sua longevidade, mediante a possibilidade de as mesmas a influenciarem em todos os planos - quer no âmbito da alegação fáctica, quer na âmbito das provas quer quanto ao direito -, manifestando a sua perspetiva, garantindo-se a ambas condições de absoluta igualdade ou paridade (4).
O objetivo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou de resistência à atuação da parte contrária, para passar a ser a influência positiva e ativa na decisão, ou seja, passou a ser visto como o direito de provocar uma decisão favorável: o direito de intervir, participando para, usando os melhores argumentos, tentar convencer o julgador e obter um desfecho favorável, para si.
E tem por objeto quer os argumentos factuais, incluindo provas, quer os jurídicos.

Deste modo, o princípio do contraditório passou a ter um sentido amplo que abarca quer o direito ao conhecimento e pronuncia sobre todos os elementos suscetíveis de influenciar a decisão carreados para o processo pela parte contrária (contraditório clássico ou horizontal) quer o direito de ambas as partes intervirem para influenciarem a decisão da causa, assim se evitando decisões surpresa (contraditório vertical).

O nº 3, do referido artigo 3º, veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, tradicionalmente entendido, como vimos, como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”.

Tal sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.

A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas (5) para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (6).

Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.

E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, pois que, na verdade, da discussão é que nasce a luz, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.

Como vimos, e como refere o Ilustre Professor Lebre de Freitas, cuja lição se vem a seguir, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa (7).

É, ainda, uma decorrência do princípio do contraditório a proibição da decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento não previamente considerado pelas partes, como dispõe o nº 3, do referido artigo 3º.

A proibição da decisão-surpresa reporta-se, principalmente, às questões suscitadas oficiosamente pelo tribunal. O juiz que pretenda basear a sua decisão em questões não suscitadas pelas partes mas oficiosamente levantadas por si, “ex novo”, seja através de conhecimento do mérito da causa, seja no plano meramente processual, deve, previamente, convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer, conforme dispõe o nº 3, do art. 3º, em casos de manifesta desnecessidade.

Com este princípio quis-se impedir, essencialmente, que as partes pudessem ser surpreendidas, no despacho saneador ou na decisão final, com soluções de direito inesperadas, por não discutidas no processo, as quais, no regime anterior, eram permitidas.

Pretendeu-se, pois, proibir as decisões-surpresa embora tal não retire a liberdade e independência que o juiz tem, em termos absolutos, de subsumir, selecionar, qualificar, interpretar e aplicar a norma jurídica que bem entender, aplicando o direito aos factos de modo totalmente autónomo. Impõe, sim, ao julgador que, para além de dar a possibilidade às partes de alegarem de direito, sempre que surge uma questão de direito ainda não discutida ao longo do processo tem de, antes de decidir, facultar às partes a sua discussão.

A regra do contraditório passou, assim, a abarcar a própria decisão de uma questão de direito, decisiva para a sorte do pleito, inovatória, inesperada e não perspetivada pelas partes, tendo de ser dada a estas a possibilidade de, previamente, a discutirem sendo que tal “entendimento amplo da regra do contraditório, afirmado pelo nº3, do art. 3º, não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 664º); trata-se apenas e tão somente, de, previamente ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de exceções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar” (8).

Não quis, pois, a lei excluir da decisão as subsunções que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas, antes estabeleceu que a concreta decisão a tomar tem de, previamente, ser prevista pelas partes, tendo, por isso, de lhes ser dada “a priori”possibilidade de se pronunciarem sobre o novo e possível enquadramento jurídico.

Assim, o princípio processual segundo o qual “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação do direito” tem, presentemente, de ser compatibilizado com a proibição das decisões surpresa tendo, desse modo, antes da prolação da decisão, de ser facultado às partes o exercício do contraditório sempre que a qualificação jurídica a dar não corresponda ao previsto pelas partes e plasmado no processo.

Com o aditamento do nº 3, do art. 3º, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios.

A citada norma, introduzida pela Reforma de 1995/1996, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, consagrando mais uma garantia de discussão dialética entre as partes no desenvolvimento de todo o processo, consagrando, de forma ampla, o direito a exprimir posição para influenciar a decisão.

Nenhuma decisão deve, pois, ser tomada sem que previamente tenha sido dada efetiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar, possibilitando-se-lhe, assim, influi ativamente na decisão. (9) A imposição de audição das partes em momento anterior à decisão é determinada por um objetivo concreto – o de permitir às partes intervirem ativamente na construção da decisão, chamando-as a trazerem aos autos a solução para que apontam.

Uma determinada questão, seja relativa ao mérito da causa seja meramente adjetiva, não pode ser decidida, quer em primeira instância, quer em via de recurso, com um fundamento jurídico diverso, até então omitido nos autos e não ponderado pelas partes sem que, antes, as mesmas sejam convidadas a sobre ela se pronunciarem. (10)

Porém, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.

E, como vimos e se desenvolve em Acórdão desta Secção de 19/4/2018, proferido na apelação nº 75/08.4TBFAF.G1, relatado pelo Senhor Desembargador José Alberto Dias, “é o próprio art. 3º, n.º 3 do CPC que admite que esse princípio possa ser afastado nos casos de “manifesta desnecessidade”.

Note-se que a lei não esclarece quais são os casos em que o juiz pode afastar o princípio do contraditório por o respetivo cumprimento ser manifestamente desnecessário, cumprindo à doutrina e à jurisprudência preencher este conceito indeterminado, tendo sempre presente a finalidade central por ele prosseguido no âmbito do processo e as finalidades que o legislador visa acautelar com a consagração legal do mesmo.

Nesta sede, Abrantes Geraldes sustenta que são limitadas as situações enquadráveis nesse conceito genérico, em que o juiz fica legitimado a afastar o cumprimento do princípio do contraditório com fundamento em “manifesta desnecessidade”, apontando como exemplos do afastamento legítimo do mesmo: a) o indeferimento de qualquer nulidade invocada por uma das partes; b) em matéria de procedimentos cautelares, quando seja necessário prevenir a violação do direito ou garantir o resultado útil da demanda (11).

Por sua vez, Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto sustentam que o contraditório prévio pode ser dispensado em procedimentos cautelares, na execução, em que a penhora é, em certos casos, realizada sem audiência prévia do executado, propugnando que igualmente não deve ter lugar o convite dirigido às partes para discutirem uma questão de direito quando as mesmas “embora não tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente o tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente, por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação” (12).

Como é bom de ver, a observância do principio do contraditório nesta dimensão positiva “tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que que o tribunal possa conhecer oficiosamente e que nenhuma das partes suscitou ao longo dos autos: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com a concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade”.

No entanto, se o princípio do contraditório nesta dimensão positiva de conferir às partes o direito de poderem influenciar ativamente o rumo do processo e a decisão a proferir assume especial relevância no âmbito das questões de conhecimento oficioso do tribunal, o seu campo de aplicação não se esgota nesses casos, na medida que esta dimensão positiva do princípio do contraditório é aplicável ao longo de todo o processo.

Além disso, impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sib imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa”.
A referida disposição legal limitou a imperiosa observância do contraditório aos casos em que a considerou justificada, dispensando-a nos casos de “manifesta desnecessidade” isto é “quando – nomeadamente por se tratar de questões simples e incontroversas – tal audição se configure como verdadeiro ‘acto inútil’(…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (13).

Em nossa opinião, e concordando inteiramente com o ilustre autor anteriormente referido, não se pode, sob pena de se subverter o espírito da norma em causa, generalizar a audição complementar das partes de modo a considerar que toda e qualquer alteração do enquadramento jurídico dado por elas às suas pretensões impõe tal audição. O dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão. E não é uma qualquer divergência pontual e incontroversa da qualificação jurídica que impõe a audição das partes, a qual apenas deve ter lugar em situações de substancial convolação jurídica.

Assim, o exercício do contraditório só é justificável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal – pois, de outro modo, será inútil, tendo tal juízo de ser aferido em termos objetivos, isto é, de ser ou não absolutamente líquida a questão em termos de jurisprudência e doutrina.

E entendemos, também, que “a negligência da parte interessada que, v.g. omite quaisquer ‘razões de direito’, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal – movendo-se, no momento da decisão, dentro dos próprios institutos jurídicos em que as partes no essencial haviam situado as suas pretensões – a, sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa” (14).

São, pois, proibidas as decisões surpresa, isto é, as decisões baseadas em fundamento que não tenha sido previamente analisado pelas partes. A surpresa que se visa evitar não se prende com o conteúdo, com o sentido, da decisão em si mas com a circunstância de se decidir uma questão não prevista. Visa-se evitar a surpresa de se decidir uma questão com que se não estava legitimamente a contar.

Tal solução legal confere ao juiz possibilidade de uma maior ponderação e contribui para uma maior eficácia e satisfação das partes ao verem, com o seu contributo, mais rapidamente resolvidos os seus interesses em litígio.

Assim, o exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.

Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração (15).

Em obediência ao princípio do contraditório e salvo em casos de manifesta desnecessidade devidamente justificada, o juiz não deve proferir nenhuma decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido conferida às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (16).

O juiz tem o dever de participar na decisão do litígio, participando na indagação do direito – iura novit curia –, sem que esteja peado ou confinado à alegação de direito feita pelas partes. Porém, a indagação do direito sofre constrangimentos endoprocessuais que atinam com a configuração factológica que as partes pretendam conferir ao processo.(…) Há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeque a uma correcta e atinada decisão do litígio. (…) Não tendo as partes configurado a questão na via adoptada pelo juiz, cabe-lhe dar a conhecer a solução jurídica que pretende vir a assumir para que as partes possam contrapor os seus argumentos" (17).

Cabe ao juiz observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de se pronunciarem sobre as mesmas (18).

Estamos perante uma decisão-surpresa pois que foi dada uma solução jurídica sem que a uma das partes - ao executado - tenha sido dado conhecimento do requerimento apresentado pela exequente de pronúncia sobre a junção dos documentos, por forma a facultar-se-lhe a possibilidade de tomar posição sobre os factos e sobre a concreta questão jurídica.

Existia o dever de audição prévia, pois que estão em causa factos (v. documentos juntos pelas credoras) e questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base de decisão.
Conclui-se, assim, pela efetiva violação do princípio do contraditório.
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2. Consequência da inobservância do contraditório

A não observância do contraditório, no sentido de não se conceder às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º. Na verdade, incluindo-se a violação do princípio do contraditório na cláusula geral sobre as nulidades processuais constantes do nº1, do art.195º, não constituindo nulidade de que o tribunal conheça oficiosamente, a mesma tem-se por sanada se não for invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo - arts 197º, nº 1 e 199º, nº 1 (19).
A violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão-surpresa, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.

Dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é suscetível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa).
Sendo decorrência do referido princípio a proibição de decisões-surpresa, isto é, decisões baseadas em fundamento não previamente considerado pelas partes, tais decisões, a serem proferidas, incluem-se nas referidas nulidades. E, carecendo a nulidade de ser invocada pelo interessado na omissão da formalidade ou na repetição desta ou na sua eliminação (art. 197º, n.º 1), no prazo de dez dias, após a respetiva intervenção em algum ato praticado no processo (art. 199º, n.º 1 ), sob pena de ficar sanada, estando a decisão-surpresa coberta por decisão judicial, como é entendimento pacífico da jurisprudência, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso (20). A prolação de decisão desacompanhada de prévia auscultação das partes, constitui nulidade, impugnável por meio de recurso (21).

Assim, analisada a lei, vista a doutrina e a jurisprudência não pode deixar de se decidir, pelos argumentos expostos que tinha, pois, o Tribunal a quo, antes de decidir, de ouvir os argumentos da parte contrária. Assiste, deste modo, razão ao apelante, ao concluir pela violação do contraditório, elevado, na verdade, até, à categoria de princípio constitucional.
Deste modo, procedendo a apelação por ter ocorrido violação do princípio do contraditório, não pode a decisão ser mantida, ficando, por isso, prejudicado o conhecimento da outra questão enunciada.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
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Sem custas.
Guimarães, 19 de abril de 2018

Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Flores
Sandra Melo


1. Acórdão do STJ de 27/10/98, processo 98A817, in www.dgsi.pt
2. Pimenta, Paulo, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, Almedina, pág 26-27
3. Ibidem, pág 27
4. Freitas, José Lebre de (2002). Estudos sobre direito civil e processo civil. Coimbra: Coimbra Editora, pág 17 a 19 e Freitas, José Lebre de (2006). Introdução ao Processo Civil. Conceitos e princípios gerais, 2ª ed.. Coimbra: Coimbra Editora, pág 107.
5. Freitas, Lebre de (1992). “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38.
6. Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999). Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág 8.
7. Freitas, 2006:115 a 118
8. Rego, Carlos Lopes do (2004). Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra: Almedina, pág 32
9. cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, processo nº 99057,in dgsi.net
10. cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, processo nº 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, processo nº 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, processo nº 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac da RP de 10/01/2008, processo 0736877, todos in dgsi.net
11. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Almedina, 2006, pág. 82.
12. Lebre de Freitas, João Rendinha e Rui Pinto, “Código de processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, pág. 10
13. Ibidem, p. 33.
14. Ibidem, pp. 33-34.
15. Acórdão de Relação de Coimbra de 13/11/2012, processo572/11.4TBCND.C1,in dgsi.net
16. Acórdão da Relação de Coimbra de 20/9/2016, processo 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net
17. Acórdão do STJ de 27/9/2011, processo 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in dgsi.net
18. Acórdão do STJ de 3/12/2015, processo 210/12.8TTFAR.E1.S1, in dgsi.net
19. Cfr. Acórdãos. do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/1/2005: processo 04B4031, de 11/12/95, processo 96A483, de 03/12/96, processo 97A232, de 06/05/97, processo 97A232 e de 22/01/98, processo 98A448, Acórdão da Relação de Évora, de 1/4/2004: processo 2737/03-2, e Acórdão da Relação do Porto de 10/01/2008, processo nº 0736877, todos in www.dgsi.pt
20. Acs. STJ. de 13/01/2005, Proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, Proc. 0733086, in base de dados da DGSI.
21. Acórdão da Relação de Lisboa de 9/10/2014, processo 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net