Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2612/08-1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: EXCLUSÕES
INDIGNIDADE
CRIME
VIOLAÇÃO
AUTOR
SUCESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: 1º- Numa concepção normativo-pessoal, seguida pela jurisprudência e doutrina jurídico-penais portuguesa, a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (honra interna), quer a própria reputação ou consideração exterior (honra externa).

2º- Neste conceito abrangente de honra cabe, seguramente, todos os valores que se prendem com a “moral sexual” de cada pessoa e com os “sentimentos gerais da moralidade sexual”, valores estes que estão na base da incriminação dos crimes sexuais, designadamente do crime de violação p. e p. pelos arts. 201º e 208º, nº1. al a) e nº3 do Código Penal de 1982, pelo que não se vê razão para deixar de fazer subsumir a conduta apurada do réu na causa de indignidade prevista na alínea b) do citado art. 2034º do C. Civil, por analogia com esta previsão, em conformidade com o disposto no art. 11º, nº1 do C. Civil.

3º- O art. 2034º, al b) do C. Civil tem de ser objecto de aplicação analógica, por forma a nele se poder integrar os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de idêntica gravidade.

4º- O regime de indignidade contido no art. 2034º do C. Civil, é aplicável a todas as espécies de sucessão.

5º- É, assim, de considerar como indigno o comportamento do réu, que violou a autora da sucessão, sua filha menor, que engravidou-a e obrigou-a a abortar aos quinze anos de idade, impondo-se, por isso, afastá-lo da respectiva sucessão nos termos do disposto no art. 2034º, al. b) do C. Civil
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


PEDRO T..., residente no Lugar do O..., freguesia de Dornelas, concelho de Amares, instaurou a presente acção declarativa de condenação sobre a forma de processo ordinária contra MANUEL A..., residente no Lugar da P..., freguesia de Santa Marta do Bouro, em Amares, pedindo que seja o réu declarado como carecido de capacidade sucessória na herança de sua filha Florbela A..., por indignidade.
Alegou, para tanto e em síntese, que, por sentença transitada em julgado, o réu foi condenado a 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 1993, do crime de violação, previsto e punido pelo art. 210º e 208º, n.º1, al. a) e n.º3 do Código Penal de 1982, na pessoa da sua filha Florbela A... .
Que, na sequência dessa violação, a Florbela A...engravidou, aos quinze anos de idade e que o réu obrigou-a proceder a um aborto no início do ano de 1994.
E que, o comportamento descrito do réu integra a causa de indignidade prevista no art. 2034º, al. b) do C. Civil.
Citado, o réu contestou, impugnando parte dos factos alegados pelo autor, concluindo pela improcedência da acção.
Na sua resposta, o autor concluiu como na petição inicial.
Proferido despacho saneador, foram organizados os factos assentes e a base instrutória.
Realizou-se julgamento, com observância de todo o formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto controvertida pela forma constante de fls. 174 a 176.
A final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o réu do pedido, ficando as custas a cargo do autor.

Não se conformando com esta decisão, dela apelou o autor, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
I. Vem o presente recurso intentado da denegação do pedido formulado, maxime da interpretação dada ao artigo 2034 do Código Civil e a denegação da interpretação analógica face ao artº. 11º do mesmo diploma legal.
II. O Réu foi condenado por sentença já transitada em julgado, proferida no processo comum colectivo nº106/94.3 GAAMR, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Amares, a seis anos de prisão efectiva, pela prática de um crime de violação previsto e punido pelo art° 201° e 208° nº l a) e n° 3, do Código Penal de 1982.
III. A Florbela veio a falecer, intestada, magoada e sofrida em consequência dos actos praticados por seu Pai, nunca tendo, exarado testamento, por um lado por falta de informação, por outro, por não ter previsto a sua morte, ocorrida em acidente de viação.
IV. Foi entendimento da Mª Juiz o quo, não se aplicar, in casu, o art° 2034 CC, porquanto não é o mesmo passível de interpretação analógica ou extensiva, por se tratar de norma de carácter excepcional e, tais interpretações se encontrarem, por isso, vedadas à luz do art° 11° do Código Civil.
V. Tal interpretação não pode colher sob pena de uma tremenda flagrante injustiça e desigualdade, não podendo, um crime tão grave, como o crime de violação, deixar de estar incluído nos crimes contra a honra, a que alude a al. b) do art° 2034º do CC.
VI. A indignidade sucessória reveste natureza sancionatória civil, sendo opinião do Professor OLIVEIRA ASCENSÃO, que "é uma consequência autónoma no plano civil e funda-se no acto reprovável do indigno,"vis a vis" do autor da sucessão e a sua incidência é tal no relacionamento entre ambos que é capaz de remover todos os entraves da ordem pública que o legislador impôs à vontade do testador, devolvendo-lhe a sua plenitude".
VIl. Aquele professor conclui pela necessidade de se efectuar uma analogia legis, ou delimitativa, do art° 2034° CC, admitindo que a lei estabelece "modelos dentro dos quais a indignidade deva caber " concluindo que, "se uma situação se revelar análoga às previstas nesses modelos, não haverá razão para banir o recurso geral à analogia".
VIII. KARL LARENZ, por seu turno, defende o tratamento igual daquilo que é igual
IX. O caso suo judice cabe no instituto da indignidade sucessória, na medida em que o crime de violação de que o Réu foi acusado e condenado cabe na grande categoria dos crimes contra a honra, a que se reporta a al. b) do artº 2034º, não podendo este normativo ser entendido como taxativo, mas antes objecto de um interpretação por analogia legis ou delimitativa.
X. O crime de violação, como crime contra a honra que é, não pode deixar de caber na al. b) do art° 2034º que refere o crime de denúncia caluniosa ou falso testemunho relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos. Os crimes contra a honra, traduzem perfídia, afronta e têm repercussões na ordem pública sendo graduados pela pena que a cada um cabe.
XI. E a razão justificativa da aplicação analógica do art.° 2034º ao caso concreto reside na natureza do crime praticado - crime de violação praticado pelo Pai na pessoa da filha menor - o qual é caracterizado como o mais grave dos crimes contra a honra - valorado após a vida -, penetrando, por isso, no modelo daqueles que o legislador pretendeu integrar na al. b) do artº 2034º,
XII. O instituto da indignidade sucessória, como causa especial de incapacidade sucessória, tem maior repercussão na vida social que o instituo da deserdação, por isso, não podemos deixar de entender que o normativo do art.° 2034º tem de ser interpretado por analogia, de maneira a que formas mais graves de ofensa à honra caibam, num modelo que pretendeu excluir da sucessão aqueles que cometeram crimes, mais leves, desta natureza e, por ele, foram condenados.
XIII. É necessário integrarmos a interpretação deste normativo, justificando-se o recurso à analogia por razões de coerência do sistema e de justiça relativa, tudo postulado pelo princípio da igualdade e pela certeza do direito, tendo por fim evitar uma clamorosa desigualdade e injustiça, pois, de outra forma pode ser afastado da sucessão o autor de um crime menor, não podendo arredar-se o autor - já sentenciado - de um crime maior.
XIV. Dispõe o art.° 11°, nº l do Código Civil que deve o julgador aplicar aos casos omissos as normas que directamente disponham para casos análogos, referindo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que "o analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações".
XV. Torna-se imperioso aliar à analogia, a designada ratio legis, ou até mesmo a interpretação teleológica, sendo curial que se questione sobre qual a interpretação que melhor corresponde à intenção reguladora do legislador ou à sua ideia normativa, referindo KARL LARENZ, que "o intenção reguladora do legislador e as decisões valorativas por ele encontradas para alcançar manifestamente esse desiderato continuam a ser arrimo obrigatório para o juiz mesmo quando acomoda a lei (...) a novas circunstancias, não previstas pelo legislador, ou quando a complementa".
XVI. Assim, não será de acalentar a opinião vazada na douta sentença em crise, pois que a ratio legis do preceito vai no sentido de permitir a inclusão, quer por extensão interpretativa, quer por analogia legis, de crimes mais graves que aqueles referidos no normativo.
XVII. Não se aceitando a interpretação analógica da al. b) do artº 2034º, por via da interpretação que se dá ao art° 11° do Código Civil, sempre se poderá alcançar o mesmo resultado através do argumento a majore ad minus, como explicita, KARL LARENZ, "a verdadeira justificação do argumentam a majore ad minus radica, do mesmo modo que a do argumento de analogia, no imperativo de justiça de tratar igualmente hipóteses que, do ponto de vista valorativo, são iguais, sempre que não seja imposto pela lei, ou esteja justificado por razões especiais, a um tratamento desigual".
XVIII. O Professor CAPELO DE SOUSA, refere que o art.° 2034º do Código Civil "castigando atentados contra a honra do autor da sucessão e seus familiares, preceitua na sua al. b) a incapacidade do "condenado por denuncia caluniosa ou falso testemunho .... . Aqui, entre os diversos crimes contra a honra, o legislador foi sensível ao que estes traduzem de afrontoso e de perfídia e às suas repercussões de ordem pública, não sem deixar de exigir uma especial gravidade traduzida no patamar da pena e a aludida segurança da prática da infracção", sendo certo que, ín casu, a condenação existe e por um crime, não tipificado naquele normativo 2034º CC, mas mais grave e pertencendo ao mesmo modelo ou categoria: crime contra a honra.
XIX. A interpretação do artigo 2034º do Código Civil, ora em crise, constitui uma clara ofensa os princípios fundamentais constitucionalmente consagrados, nomeadamente uma violação clara do conceito de dignidade humana, e da integridade moral e física, princípios que os artigos 25º e 26º da Constituição da Republica Portuguesa que dispõem como invioláveis e protegidos contra quaisquer formas de descriminação e, ainda, protegida pelas principais Leis Fundamentais, e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.
XX. Finalmente, alerta-se, para a especial sensibilidade do caso sub judice, na medida em que, como foi referido na Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos no ano de 1993, em Viena "os direitos humanos das mulheres e das raparigas são uma parte inalienável, integrante e indivisível dos direitos humanos universais" assumindo uma particularidade intrínseca os direitos reprodutivos constituindo, eles próprios, o alargamento de um direito civil fundamental, o da definição do seu corpo próprio, esse corpo que, pela dignidade que lhe é devida enquanto ser humano, é dito inviolável.
XXI. A interpretação, ora impugnada, do art° 2034° do CC, no sentido de este não ser objecto de interpretação analógica, viola não só o arº 11° do CC, como os art°s 25° e 26º da Constituição da República, pelo que deve aquela douta decisão ser revogada”.

A final, pede seja revogada a sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue procedente o pedido.

O réu não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Os factos dados como provados na 1ª instância ( colocando-se entre parênteses as correspondentes alíneas dos factos assentes e os artigos da base instrutória) são os seguintes:
a) O autor PEDRO T... encontra-se registado como filho do réu MANUEL A... e Maria T... (A).
b) Florbela A..., registada como filha do réu MANUEL A... e Maria T..., nasceu em 27 de Maio de 1977 e faleceu em 28 de Fevereiro de 2006, vítima de acidente de viação, intestada e sem disposição escrita de última vontade (B e C).
c) Por sentença proferida no processo comum colectivo n.º106/94.3GAAMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Amares, já transitada em julgado, o réu foi condenado a 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 1993, do crime de violação, previsto e punido pelo art. 210º e 208º, n.º1, al. a) e n.º3 do Código Penal de 1982, na pessoa da sua filha Florbela A... (D).
d) Na sequência da violação referida em C) a Florbela A...engravidou, aos quinze anos (E).
e) Tendo o réu obrigado a sua filha a proceder a um aborto no início do ano de 1994 (F).
f) Em consequência do referido em d), e) e f) Florbela A... e o seu irmão PEDRO T... deixaram de viver com o seu pai, o réu MANUEL A..., desde 1994 (G).
g) Desde os factos referidos em f) o réu não mais conviveu com a sua filha Florbela A...ou com o seu filho Pedro (1º).
h) Não mais os procurou, não contribuiu para a sua alimentação, para sua educação ou para o seu vestuário (2º, 3º, 4º e 5º).
i) Pelo que os seus filhos Florbela e Pedro foram criados e cuidados pelos seus tios maternos (6º).
j) Ocasionalmente, sempre que o réu avistava a sua filha Florbela, injuriava-a, envergonhando-a e humilhando-a perante quem estivesse presente (7º).
k) O que sucedeu em Amares e em Santa Marta do Bouro (8º).
l) A actuação aludida em j) e k) voltou a repetir-se no ano de 2005 junto à estação rodoviária de Braga, quando se dirigiu à Florbela apelidando-a de "puta" (9º).
m) Em consequência do referido Florbela recolheu a casa com tremuras, em pranto e grande aflição (10º).
n) Como consequência directa do referido nos factos assentes e nos artigos anteriores, a Florbela vivia aterrorizada, angustiada, com vergonha e medo de vir a sofrer novas injúrias de seu pai (11º).
o) Nunca o tendo perdoado (12º).
p) O réu nunca se arrependeu, até à morte da filha, que não lamentou (13º).


FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.

Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber se o comportamento do réu é de constituir ilegitimidade sucessória por motivo de indignidade previsto no artigo 2034º do C. Civil.

A este respeito, ficou provado nos autos que Florbela A..., filha do réu MANUEL A... e Maria T..., nasceu em 27 de Maio de 1977 e faleceu em 28 de Fevereiro de 2006, vítima de acidente de viação, intestada e sem disposição escrita de última vontade.
Mais se provou que, por sentença proferida no processo comum colectivo n.º106/94.3GAAMR, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Amares, já transitada em julgado, o réu foi condenado a 6 anos de prisão efectiva, pela prática, em 1993, do crime de violação, previsto e punido pelo art. 210º e 208º, n.º1, al. a) e n.º3 do Código Penal de 1982, na pessoa da sua filha Florbela A... e que, na sequência dessa violação, esta engravidou aos quinze anos de idade, tendo o réu obrigado a mesma a proceder a um aborto no início do ano de 1994.
Provou-se ainda que, em consequência de tudo isto, a Florbela A... deixou de viver com o seu pai desde 1994, o qual nunca mais a procurou nem contribuiu para a sua alimentação, educação ou vestuário.
Ocasionalmente, sempre que o réu avistava a sua filha Florbela, injuriava-a, envergonhando-a e humilhando-a perante quem estivesse presente.
No ano de 2005, junto à estação rodoviária de Braga, o réu dirigiu-se à sua filha Florbela e apelidou-a de "puta".
Em consequência disso, a Florbela recolheu a casa com tremuras, em pranto e grande aflição.
Por causa do descrito comportamento do réu, a Florbela vivia aterrorizada, angustiada, com vergonha e medo de vir a sofrer novas injúrias de seu pai, nunca o tendo perdoado.
O réu nunca se arrependeu, até à morte da filha, que não lamentou.

Importa, assim, apreciar a relevância desta conduta do Réu para efeitos de ilegitimidade sucessória passiva por motivo de indignidade.

Ensina Oliveira Ascensão que as indignidade são situações em que, a um acto ilícito de um sucessível, praticado contra o autor da sucessão, a lei reage estabelecendo como sanção o seu afastamento daquela sucessão.
Trata-se de «uma consequência autónoma no plano civil e funda-se no acto reprovável do indigno, “vis a vis” do autor da sucessão e a sua incidência é tal no relacionamento de ambos que é capaz de remover todos os entraves da ordem pública que o legislador impôs à vontade do testador, devolvendo-lhe a sua plenitude» .
E, quanto às causas de indignidade, o art. 2034º do C. Civil enuncia:
“a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adoptante ou adoptado;
b) O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza;
c) O que por meio de dolo ou coacção induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu;
d)O que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos”.
Ora, porque em nenhuma destas alíneas se qualifica a prática do crime de violação sobre o autor(a) da sucessão como comportamento indigno, perante a factualidade provada e supra descrita, poder-se-ia afirmar, tal como se salientou e decidiu na douta sentença recorrida, que, ao enumerar as causas de indignidade, o legislador não “pretendeu criar uma cláusula contendo uma ampla ou irrestrita tipologia de crimes que, pela natureza do bem jurídico ofendido ou pelos efeitos produzidos na esfera íntima do autor da sucessão, pudessem definir a indignidade do seu agente”, mas quis, antes, “ restringir de forma rígida a excepção introduzida à capacidade sucessória de determinada pessoa a um leque de crimes que, pela sua especial gravidade - ou pela especial gravidade que o legislador logrou prever -, fazem presumir que essa seria a vontade do autor da herança”.
Do mesmo modo, poder-se-ia também afirmar, como fez a Mmª Juíza a quo, que da letra do referido artigo resulta “um apelo simultâneo à excepcionalidade da norma (…) e à sua ligação a uma vontade presumida do falecido”, pelo que sendo o citado art. 2034º uma regra de excepção introduzida no regime geral da vocação sucessória, não é o mesmo passível de aplicação analógica, nos termos do disposto no art. 11º do Código Civil.
Mas, a nosso ver e com o devido respeito por opinião contrária, estas conclusões retiradas pela Mmª Juíza a quo não se impõem com esta linearidade, pois que não constitui entendimento pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que o artigo 2034º consagre uma tipicidade taxativa e que, por isso, afaste todo e qualquer tipo de analogia.
Desde logo, ensina José de Oliveira Ascensão , que não basta que se verifique a enumeração das causas de uma penalização tão grave como a exclusão da sucessão, que tem na base considerações de segurança, para que concluamos tratar-se de uma tipologia taxativa e, consequentemente, que toda a analogia está excluída.
Admite este mesmo Professor , tratar-se de uma tipicidade delimitativa ou mitigada, ou seja, que a lei estabelece “modelos”, “grandes categorias de casos”, dentro dos quais a indignidade deve caber, concluindo que, se uma situação se revelar análoga às previstas nesses modelos, não haverá razão para banir o recurso a uma “analogia mais limitada”, a partir da integração no conceito base de indignidade e, simultaneamente, em alguma das causas previstas da lei ( “ analogia legis” ).
É que, segundo afirma, “a segurança jurídica que exigiu a previsão legal das causas de indignidade e de deserdação, levou ao estabelecimento de grandes categorias de casos que trazem limitação à actividade do intérprete; mas não implica o afastamento da exigência fundamental do tratamento igual de casos semelhantes, que está na base da analogia , desde que esta só possa funcionar a partir dos modelos dados pela lei - desde que utilize somente a analogia legis” .
O que fica vedado, nesta matéria, é apenas e tão só o recurso à analogia iuris .
Ou seja, no dizer de J. Baptista Machado , “ o que é proibido é transformar a excepção em regra, i. é., partir dos casos taxativamente enunciados pela lei para induzir deles um princípio geral que, através da analogia « juris» permitiria depois regular outros casos não previstos, por concretização dessa cláusula ou princípio geral. Mas não já que seja proibido estender analogicamente a hipótese normativa que prevê um tipo particular de casos a outros casos particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade”.
Assim, se determinado comportamento, pela sua gravidade, se integrar no conceito base de indignidade e, simultaneamente, em algumas das causas previstas no citado art. 2034º, é possível chegar à admissão de novos casos de indignidade por analogia legis.
Vejamos, então, se o apurado comportamento do réu é, ou não, susceptível de ser considerado comportamento indigno e, por isso, susceptível de excluí-lo da sucessão.
Pereira Coelho agrupa as indignidades sucessórias em quatro tipos de comportamentos enumerados no citado art. 2034º: atentado contra a vida do autor da sucessão [ al. a) ]; atentado contra a honra do autor da sucessão [al. b)] ; atentado contra a liberdade de testar [al. c) ]; e atentado contra o próprio testamento [al. d) ].
Ora, estando em causa a prática, pelo réu, de um crime de violação na pessoa da Florbela, importa tão só analisar a alínea b) do dito art. 2034º, a qual reporta-se a crimes contra a honra do autor da sucessão.
Segundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1940, “ninguém sofrerá ataques à sua honra e reputação”.
A honra é uma aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade, constituindo um direito pessoal merecedor de protecção constitucional, quer no artigo 25º, nº1 da CRP, que estabelece a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas, quer no art. 26º, nº1 da CRP, que afirma que a todos são reconhecidos os direitos ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação e à imagem, para além do mais.
Mas o conceito de honra não se resume à honra subjectiva ou interior, consistente no juízo valorativo que cada pessoa tem de si própria, particularmente do ponto de vista moral, abarcando também a honra objectiva ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa (conjunto de qualidades necessárias a uma pessoa para ser respeitado no meio social) .
Numa concepção dualista, normativo-pessoal, seguida pela jurisprudência e doutrina jurídico-penais portuguesa, a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (honra interna), quer a própria reputação ou consideração exterior (honra externa) .
Protege-se, assim, a honra interior inerente à pessoa, enquanto portadora de valores espirituais e morais, e a valoração social dessa mesma personalidade.
Neste conceito abrangente de honra cabe, seguramente, todos os valores que se prendem com a “moral sexual” de cada pessoa e com os “sentimentos gerais da moralidade sexual”, valores estes que, aliás, estão na base da incriminação dos crimes sexuais, designadamente do crime de violação p. e p. pelos arts. 201º e 208º, nº1. al a) e nº3 do Código Penal de 1982.
De resto sempre se dirá que, se é verdade que a Reforma de 1995, fez dos chamados crimes sexuais, autênticos crimes contra as pessoas e contra um valor estritamente individual, o da liberdade de determinação sexual, também não é menos verdade que este último conceito ( cfr. arts. 163º, 164º e 177º do C. Penal) não deixa de estar ligado à “moral sexual” de cada pessoa, ou seja, ao juízo individual que cada um tem da sua própria sexualidade.
Aliás, constata-se, até, que estas alterações introduzidas ao Código Penal de 1982, vieram, antes, acentuar a vertente pessoal ou individual da moralidade sexual, deixando de considerar os crimes sexuais como “crimes atentatórios dos “fundamentos ético-sociais da vida social”, ligados aos “sentimentos gerais de moralidade sexual” ( cfr. CP de 1982, cap. I, título III da PE e art. 205º-3) e portanto iluminados por bens jurídicos supra-individuais, da comunidade ou do Estado” .
Mas, se o bem jurídico protegido no crime de violação p. e p. pelo art. 201º do Código Penal de 1982, é a honra, neste conceito mais lato, não se vê razão para deixar de fazer subsumir a conduta apurada do réu na causa de indignidade prevista na alínea b) do citado art. 2034º do C. Civil, por analogia com esta previsão, em conformidade com o disposto no art. 11º, nº1 do C. Civil.
È que, se como salienta Capelo de Sousa , de entre os crimes contra a honra, o legislador foi sensível aos crimes de denúncia caluniosa ou falso testemunho contra o autor da sucessão, pela perfídia e afronta que traduzem e pela repercussões que têm na ordem pública, julgamos que o crime de violação praticado na pessoa da autora da sucessão, quer pela sua natureza ( crime contra a honra ), quer pela sua especial gravidade (crime mais grave do que aqueles), atentos os efeitos nefastos produzidos na esfera íntima da autora da sucessão (designadamente a nível de auto-estima, do equilíbrio emocional e desenvolvimento da personalidade), quer pela repercussão que tem no meio social ( merecedora de especial censurabilidade por parte da comunidade e claramente ofensiva dos bons costumes), não pode deixar de integrar causa de indignidade, enquadrável no modelo que o legislador traçou na dita alínea b) do art 2034º .
Daí entendermos que o citado normativo tem de ser objecto de aplicação analógica, por forma a nele se poder integrar os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de idêntica gravidade.
E a verdade é que , no casos dos autos, a conduta do réu afigura-se-nos de tal maneira grave que dificilmente se concebe que alguém possa deixar de reconhecer como passível de evidenciar uma actuação pérfida e altamente censurável dirigida à pessoa da falecida Florbela.
Desde logo porque não está apenas em causa uma violação.
Trata-se de um pai que viola uma filha menor, que a engravida e que a obriga a abortar aos quinze anos de idade.
Trata-se de um pai que, indiferente a todas as mazelas psíquicas e físicas que causou àquela sua filha, quando a via, injuriava-a, envergonhando-a, humilhando-a perante quem estivesse presente e aterrorizando-a.
Trata-se de um pai que nem sequer lamentou a morte da filha.
A cresce que, nas circunstâncias dos autos, a especial gravidade do atentado à honra da autora da herança faz com que seja lícito presumir ser vontade desta excluir o réu da sua sucessão, pelo que, na impossibilidade de a mesma poder lançar mão do instituto da deserdação, por entretanto, ter morrido, impõe-se respeitar aquela vontade.
E nem a isso obsta a circunstância de, no caso dos autos, o réu ser sucessível legitimário da autora da sucessão.
É que, contrariamente ao defendido por Pereira Coelho , sufragamos o entendimento seguido por Oliveira Ascensão , Nuno Espinosa , Capelo de Sousa e Eduardo dos Santos , de que, na sucessão legitimária funcionam cumulativamente os institutos da deserdação e da indignidade, sendo este supletivo em relação àquele.
E de que o regime do citado art. 2034º é aplicável a todas as espécies de sucessão, pois que é isso que resulta, desde logo, da sua inserção no título ( I ) “das sucessões em geral” e na secção que trata da “capacidade sucessória”; do artigo dispor que “carecem de capacidade sucessória (…), sem distinguir entre as várias espécies de sucessão e do facto do nº2 do art. 2037º falar em “sucessão legal”, a qual, como é consabido abarca a sucessão legítima e legitimária.
E, sobretudo, porque o instituto da deserdação, aplicando-se exclusivamente à sucessão legitimária, deixaria de fora aquelas situações em que o de cujus já não pode afastar o sucessível por testamento porque, entretanto, faleceu ou não teve conhecimento das afrontas que este lhe fez e, não nos parece que o nosso sistema legal seja consentâneo com esta solução.
O que se nos afigura é, precisamente o contrário.
Isto é, quando haja indignidade por parte dos sucessíveis legitimários pela prática de actos tão afrontosos como os do artigo 2034º, a nossa lei parece dissociar-se das razões de ordem familiar e social que a levaram a garantir uma legítima a certos sucessores, visando, antes, a sua exclusão da sucessão.
E bem se compreende que seja assim, pois, sendo o legitimário o herdeiro por excelência, deve ele estar sujeito a mais e não a menos obrigações que o sucessor comum.
Daí que, sobraçando em pleno as mui doutas alegações do autor, se imponha declarar o réu carecido de legitimidade sucessória relativamente à herança de sua filha Florbela A..., por motivo de indignidade previsto na alínea b) do art. 2034º do C. Civil.


Procedem, pois, todas as conclusões do autor/apelante.

CONCLUSÃO:
Do exposto poderá concluir-se que:

1º- Numa concepção normativo-pessoal, seguida pela jurisprudência e doutrina jurídico-penais portuguesa, a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (honra interna), quer a própria reputação ou consideração exterior (honra externa).

2º- Neste conceito abrangente de honra cabe, seguramente, todos os valores que se prendem com a “moral sexual” de cada pessoa e com os “sentimentos gerais da moralidade sexual”, valores estes que estão na base da incriminação dos crimes sexuais, designadamente do crime de violação p. e p. pelos arts. 201º e 208º, nº1. al a) e nº3 do Código Penal de 1982, pelo que não se vê razão para deixar de fazer subsumir a conduta apurada do réu na causa de indignidade prevista na alínea b) do citado art. 2034º do C. Civil, por analogia com esta previsão, em conformidade com o disposto no art. 11º, nº1 do C. Civil.

3º- O art. 2034º, al b) do C. Civil tem de ser objecto de aplicação analógica, por forma a nele se poder integrar os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de idêntica gravidade.

4º- O regime de indignidade contido no art. 2034º do C. Civil, é aplicável a todas as espécies de sucessão.

5º- É, assim, de considerar como indigno o comportamento do réu, que violou a autora da sucessão, sua filha menor, que engravidou-a e obrigou-a a abortar aos quinze anos de idade, impondo-se, por isso, afastá-lo da respectiva sucessão nos termos do disposto no art. 2034º, al. b) do C. Civil


DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, revogando-se a sentença recorrida, julga-se procedente a acção e, consequentemente, declara-se o réu, MANUEL A..., carecido de legitimidade sucessória relativamente à herança de sua filha Florbela A..., por motivo de indignidade previsto na alínea b) do art. 2034º do C. Civil.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo do réu, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.