Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
185/11.0TBAMR.G1
Relator: MARIA ISABEL ROCHA
Descritores: SERVIDÃO LEGAL
SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DO PAI DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - A distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo: as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou facto voluntário, as servidões legais são constituídas coercivamente.
II - As servidões por destinação do pai de família têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que se constituam, mesmo quando não são estritamente necessárias.
III - Por desnecessidade apenas se podem extinguir servidões que não têm na sua base um facto voluntário.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem a 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO
M…e mulher M.A…, residentes em…Amares, intentaram a presente acção com processo comum e sob a forma sumária contra A… e marido H…, residentes em…Amares, pedindo:
Que a presente acção seja julgada provada e procedente e, em consequência, que se declare extinta por desnecessidade o direito de servidão de presa que onera o prédio dos AA a favor dos prédios dos RR, condenando-se estes em conformidade e bem em assim em custas e no mais legal.
Para tanto alegam que: são donos e legítimos possuidores do prédio rústico denominado Bouça da Costa, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia da Portela; este prédio veio ao domínio e posse dos AA por via de sucessão hereditária deferida em inventário do pai do A. marido, Ac…, encontrando-se a respectiva aquisição registada a favor dos AA pela inscrição G1—cfr doc. nº 1 supra; além do mais, os AA., por si e seus antecessores, há mais de 20 anos, têm usado o dito prédio, dando-lhe o destino que bem entendem e dele retirando todos os benefícios, plantando e semeando árvores e colhendo os seus frutos, roçando matos, cortando lenhas, apascentando gado, pagando contribuições e impostos, ininterruptamente, diante de toda a gente, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa fé, e sem ofensa de qualquer direito de outrem com consciência e ciência de exerceram direito próprio e legítimo, correspondente ao direito de propriedade, pelo que, pela via da usucapião, imóvel teria vindo ao domínio e posse dos AA; por sua vez os RR são donos legítimos possuidores dos seguintes prédios: a) casa de habitação e quintal junto, sito no lugar de Vale, freguesia de Portela, e do prédio denominado Eido de Cima, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia de Portela, concelho de Amares; tais prédios foram igualmente adquiridos pelos RR por sucessão hereditário deferida em inventário instaurado por óbito daquele Acácio José Pereira, pai e sogro dos AA e RR; entre 1956 e 1957, o mencionado Ac…fez no prédio rústico, ora dos AA, denominado Bouça da Costa, uma mina de captação de águas subterrâneas e respectiva poça para seu exclusivo armazenamento; desde essa poça, conduzia as águas para gastos domésticos e para lima e rega dos identificados prédios dos RR, a qual se processava através de um cano subterrâneo, colocado sob uma bouça contígua pertencente a J…; posteriormente, mas seguramente há pelo menos 40 anos, aquele Acácio José Pereira, construiu, em terreno ora pertencente aos RR, um tanque que passou a armazenar toda a água proveniente da referida mina da Bouça da Costa, tornando desnecessária a poça inicialmente feita; tal poça da Bouça da Costa só serve praticamente para armazenar e represar a água da referida mina a que os AA que têm direito, 24 horas por semana; Como resulta do exposto, o prédio ora dos AA encontra-se onerado com um servidão de presa a favor dos identificados prédios dos RR; ora verifica-se que não existe necessidade de manter essa servidão que onera o prédio dos AA; ilustrativo dessa desnecessidade é o facto de os próprios RR terem canalizado a referida água desde a boca da mina até aos seus prédios, onde foi construído pelo seu antecessor um tanque e passou e a ser armazenada a água; na verdade, em terreno actualmente dos AA, ou seja no rústico denominado Eido de Cima, melhor identificado supra, encontra-se construído um tanque, onde desde há vários anos as águas são represadas e posteriormente utilizadas quer para rega desse rústico quer para gastos domésticos dos RR; na boca da mina construída no prédio dos AA, os RR ligaram um tubo de duas polegadas para captar e conduzir a referida água, o qual, a partir daí, percorre, no sentido nascente/poente e numa extensão de cerca de quinze metros, o solo do prédio dos RR, estende-se, ainda nos limites deste, pelo fundo da referida poça, até à respectiva boca de saída colocada na parede poente, confinante com o caminho público; na boca de saída da referida poça, os RR emendaram um outro tubo de 3 polegadas àqueloutro, o qual atravessa subterraneamente e no mesmo sentido nascente/poente o dito caminho público, até ao mencionado tanque construído em terreno dos RR; as circunstâncias constitutivas da necessidade de represar a água nos prédios dos AA foram eliminadas pelos próprios RR; não existe objectivamente a necessidade de manter o prédio dos AA com esse encargo e limitações ao direito de propriedade que tal implica; assim canalizada a água acede aos prédios dela beneficiários por gravidade, já que estes se situam a um nível inferior ao da nascente.
Os Réus contestaram arguindo a excepção do caso julgado e ainda por impugnação, alegando factos de onde resulta que a servidão em causa continua a ser necessária e que, de qualquer forma, a mesma foi construída por destinação de pai de família, não podendo pois ser extinta por desnecessidade.
Os Autores responderam á contestação, defendendo que não se verifica a alegada excepção de caso julgado, concluindo como na petição inicial.

Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a invocada excepção de caso julgado.
Por se ter entendido que os elementos dos autos permitiam já conhecer do mérito da causa, foi proferida decisão que julgou a presente acção improcedente por não provada, absolvendo-se os Réus do pedido formulado pelos Autores.

Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença, apresentando alegações que concluíram da seguinte forma:

A douta sentença recorrida julgou improcedente pedido, por entender que a situação factual descrita nos autos configurava a existência de uma servidão de presa, constituída por destinação de pai de família e que, de acordo com a jurisprudência dominante, na interpretação que é dada ao artigo 1569º, nº2, as servidões constituídas por tal título não podem ser extintas por desnecessidade.
Nos termos da lei vigente, concretamente do artigo 1547º do CC, as servidões são voluntárias ou legais.
São legais aquelas que se constituem independentemente da vontade do proprietário prédio serviente, verificados que estejam determinados requisitos, sendo, contudo, para tanto, necessária uma declaração judicial.
São voluntárias aquelas que se constituem por vontade das partes (contrato ou escritura) ou uma declaração do testador (testamento) ou declaração tácita de vontade do proprietário dos dois prédios (dominante e serviente), revelada por sinais físicos denotem uma relação de serventia entre um ou ambos os prédios (destinação de pai de família).
Uma servidão constituída por destinação de pai de família pode ser também uma servidão legal.
Na verdade, segundo Pires de Lima “as servidões legais podem ser constituídas, além da sentença, pelos mesmos modos por que se podem constituir as servidões voluntárias, pois por qualquer delas pode realizar-se o interesse que a lei tutela”—ver anot. ao Ac. Da
Relação do Porto, de 27/11/1995 (Bessa Pacheco), R.L.L ano 129º, pág. 255, veja-se ainda o Ac. Do STJ, de 25-2-1999 (Ferreira ramos) BMJ 484-389 – vide igualmente WWW.dgsi, Ac STJ de 26-06-2001, relator – Mmº Sr Dr Juiz Conselheiro Afonso Correia; acórdão do STJ de 12-05-1998 in www.dgsi, relator Mmº Sr Dr Juiz Conselheiro Ferreira Ramos.
E a servidão em apreço é uma servidão legal constituída por destinação de pai de família, pois poderia ter sido constituída independentemente da vontade do seu autor, já que, existindo um direito ao uso da água que nasce no prédio dos AA em benefício dos prédios ora dos RR, mesmo que o antecessor dos AA e RR, não construísse essa poça, sempre teriam os RR o direito de a construir no prédio dos AA, se tal operação fosse necessária ao aproveitamento das águas.
Sendo, portanto, a servidão em apreço uma servidão legal, pode ser extinta por desnecessidade, como decorre do disposto no nº 3 artigo 1569º do Código civil, devendo esta norma ser interpretada no sentido de se permitir a extinção da servidão legal, constituída por destinação de pai de família, uma vez que aquela norma refere inequivocamente que tal extinção se opera qualquer que tenha sido o titulo da sua constituição
Só aquelas servidões que só voluntariamente podiam constituir-se, ou seja que decorrem exclusiva e estritamente de um acto voluntário e, que portanto, não fora esse acto, jamais se constituiriam, é que não podem extinguir-se, pelo simples facto de que não são servidões legais, mas apenas e somente voluntárias e, então, em coerência com o que defende a jurisprudência citada na douta sentença recorrida, violar-se-ia o principio da autonomia da vontade.
Sabemos que a servidão constituída por destinação de pai de família tem na sua génese um acto tácito do anterior proprietário do prédio dominante e do serviente revelador de uma relação de serventia entre um ou ambos os prédios.
A douta sentença recorrida não tomou em consideração um facto importante e de relevância extrema que inverteria completamente o sentido da decisão e seria coerente com a doutrina ali defendida.
Como resulta do nº 10º dos factos assentes, o anterior proprietário dos prédios de, respectivamente, AA e RR, Ac…, construiu, em terreno ora pertencente aos RR, um tanque que passou a armazenar toda a água proveniente da referida mina da Bouça da Costa, tornando desnecessária a poça inicialmente feita na Bouça da Costa, ora dos AA .
Foi o próprio antecessor de AA e RR que , ainda em vida, tornou desnecessária e, portanto, inútil a poça que construiu na Bouça da Costa, ora dos AA, construindo um tanque em prédio também seu e ora dos RR, onde passou a armazenar toda a água proveniente daquela Bouça. Ou seja, foi um outro acto voluntário tácito que o antecessor de AA e RR tornou desnecessária a poça construída anteriormente no prédio ora dos RR, deixando, inclusive de a utilizar, pois passou a armazenar toda a mencionada água destinada aos prédios ora dos RR, servindo aquela apenas “para armazenar e represar a água a que os AA que tem direito 24 horas por semana da referida mina ( vid. Pf nº 11º matéria assente).
Ao extinguir-se a servidão em causa, em coerência com a tese do respeito do principio da autonomia privada, defendida pela jurisprudência dominante, estaremos a corresponder á própria vontade do antecessor de AA e RR que, antes mesmo da separação do domínio, no exercício de um direito igualmente potestativo, praticou um outro acto contraditório com o primitivo, pois tornou inútil a poça, ao construir um tanque noutro prédio, para onde passou a armazenar toda a água da referida mina da Bouça da Costa.
A sua extinção cumprirá a desígnio e vontade do próprio autor da servidão, não se violando o princípio da autonomia da vontade. O contrário, ou seja a sua não extinção, é que o violaria.
Deve, também, por esta razão, ser declarada extinta a servidão em causa, por desnecessidade.

Os Réus responderam às alegações dos Autores, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO
OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artºs 684º nº 3 e 685-A.º do Código de Processo Civil na versão aplicável aos autos).
Nos recursos apreciam-se questões e não razões, não visando os mesmos criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, a questão a decidir é a de saber se a servidão em causa deve ser extinta, o que pressupõe a apreciação das seguintes sub questões:
Existência e natureza da servidão;
Existência de acto voluntário do anterior proprietário dos prédios serviente e dominante, ora pertencentes, respectivamente, aos Autores e aos Réus, no sentido de por termo à situação de serventia dos prédios daqueles;
Em caso negativo, se a servidão constituída pode ou não ser extinta por desnecessidade.

Os factos provados que fundamentaram a decisão apelada são os seguintes:
1º - Os autores são donos e legítimo possuidores do prédio rústico denominado Bouça da Costa, com área de 14 800 m2, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia da Portela, inscrito na matriz sob o artigo 2…e descrito na Conservatória sob o nº 0006…—cfr doc. nº 1
2º - Veio tal prédio ao domínio e posse dos AA por via sucessão hereditária deferida em inventário do pai do do A. marido, Ac…, encontrando-se a respectiva aquisição registada a favor dos AA pela inscrição G1—cfr doc. nº 1 supra.
3º - Além do mais, os AA., por si seus e antecessores, a A. há mais de 20 anos, tem usado o dito prédio, dando-lhe o destino que bem entende e dele retirando todos os benefícios, plantando e semeando árvores e colhendo os seus frutos, roçando matos, cortando lenhas, apascentando gado, pagando contribuições e impostos, ininterruptamente, diante de toda a gente, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa fé, e sem ofensa de qualquer direito de outrem com consciência e ciência de exerceram direito próprio e legítimo, correspondente ao direito de propriedade pelo que, pela via da usucapião, forma originária de aquisição que expressamente invoca, sempre aquele imóvel teria vindo ao domínio e posse dos AA,
4º - Sendo certo que, nos termos do artigo 7º do CRP, sempre a A beneficiaria da presunção da titularidade do direito de propriedade em virtude de ter registado a sua aquisição na Conservatória do Registo Predial de Póvoa de Lanhoso, pela inscrição G1 – cfr doc. supra.
5º Por sua vez os RR são donos legítimos possuidores dos seguintes prédios: a) casa de habitação e quintal junto, sito no lugar de Vale, freguesia de Portela, a confrontar do norte e nascente com caminho público, sul e poente com Au…, inscrito na matriz sob o artigo urbano 5…º e na rústica sob o artigo 1…. b) Propriedade denominado Eido de Cima, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia de Portela, concelho de Amares, a confrontar do nascente com Jo…, do norte com Jos…, sul Ap… e do Poente com caminho público, inscrito na matriz sob o artigo 14…
6º - Tais prédios foram igualmente adquiridos pelos RR sucessão hereditário deferida em inventário instaurado por óbito daquele Ac…, pai e sogro dos AA e RR.
7º - Entre 1956 e 1957, o mencionado Ac… fez no prédio rústico, ora dos AA, Bouça da Costa, identificada no artigo 1º supra, um mina de captação de águas subterrâneas e respectiva poça para seu exclusivo armazenamento.
8 º Desde essa poça, conduzia as águas para gastos domésticos e para lima e rega dos prédios ora dos RR, melhor identificados no artigo 5º supra.
9º A qual se processava através de um cano subterrâneo que colocado sob uma bouça contígua, pertencente a Jo….
10º Posteriormente, mas seguramente há pelo menos 40 anos, aquele Ac…, construiu, em terreno ora pertencente aos RR um tanque que passou a armazenar toda a água proveniente da referida mina da Bouça da Costa.
11º Tal poça da Bouça da Costa serve para armazenar e represar a água a que os AA que têm direito, 24 horas por semana, da referida mina.


Questão prévia.
Nos termos do disposto no art.º 712.º n.º 1 AL B) do Código de Processo Civil, a decisão do Tribunal da primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
Ora, deu-se como provado o facto alegado no artigo 10.º da Petição Inicial, correspondente ao facto provado sob o mesmo artigo, com o seguinte teor:
Posteriormente, mas seguramente há pelo menos 40 anos, aquele Ac…, construiu, em terreno ora pertencente aos RR um tanque que passou a armazenar toda a água proveniente da referida mina da Bouça da Costa, tornando desnecessária a poça inicialmente feita na Bouça da Costa, ora dos AA.”
Tal alegação que se transpôs para a factualidade provada contém, parcialmente, matéria conclusiva e não fáctica no segmento em que se refere “ tornando desnecessária a poça inicialmente feita na Bouça da Costa, ora dos AA,”, sendo certo que tal invocada “desnecessidade foi objecto de impugnação, tendo em conta a versão dos factos apresentada pelos Réus na sua contestação, nos seus artigos 11.º a 32.º.
Deve pois eliminar-se do facto provado a dita conclusão.

O Direito Aplicável
Conclui-se na sentença apelada que os Autores são donos de um prédio que está onerado por uma servidão de presa, que serve os prédios dos Réus, a qual se constituiu por destinação de pai de família.
Vejamos se assim é.
Servidão é o encargo imposto em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente: diz-se serviente o prédio sujeito a servidão e dominante o que dele beneficia (art.º 1543.º do Código Civil).
De acordo com o disposto no art.º 1544.º do C. Civil, “Podem ser objecto de servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor.”
O C. Civil, nos artigos 1547º a 1549º, elenca as várias formas de constituição das servidões.
As servidões, podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação de pai de família (art.º 1547 n.º 1 do CC). Nestes casos, as servidões são voluntárias, porquanto têm na sua génese um negócio jurídico ou um facto voluntário.
Na falta de constituição voluntária, as servidões legais podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa (art.º 1547.º n.º 2 do CC). Servidões legais são pois aquelas que podem ser constituídas coercivamente.
Sobre a constituição de servidão predial por destinação de pai de família, dispõe o Código Civil no art. 1549º o seguinte:
“Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento”.
A constituição da servidão por destinação do pai de família pressupõe, assim, a verificação dos seguintes requisitos essenciais:
a) que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo tempo provenha a servidão;
b) que, quando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) que existam sinais visíveis e permanentes que revelem a servidão.
A constituição de servidão por destinação de pai de família, além de existência de sinais, assenta numa manifestação de vontade do transmitente e mesmo do transmissário, que se presume se nada for dito em contrário.
É o que acontece quando os dois prédios, serviente e dominante, na ocasião da sua transmissão para proprietários distintos, se encontravam sob o domínio do mesmo proprietário, do mesmo transmitente.
As servidões por destinação do antigo proprietário só se constituem no momento da separação; no entanto, deverá atender-se à data em que foram postos os sinais reveladores da serventia, pois são eles que comprovam a servidão e a vontade presumida do proprietário.
Como refere Carlos Gonçalves Rodrigues, (“Da Servidão Legal de Passagem (Separata do volume XIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Almedina, a pág. 93):
“enquanto os dois prédios ou as duas fracções pertencem ao mesmo dono, não se pode falar, ... em servidão, existindo apenas uma situação de facto que não tem qualquer significado jurídico, pois o proprietário ao gozar as utilidades usa do direito de domínio e não do direito de servidão, só o podendo vir a ter na hipótese dos dois prédios ou das duas fracções se vierem a separar …”, “pois é neste momento que a servidão, latente e causal, passa a ser aparente e formal (cf. Acórdão da Relação do Porto de 01/07/2010, proferido no P.º n.º 3216/06.2TJVNF.PI relatado pela Desembargadora Amélia Ameixoeira, publicado em www.dgsi.pt.).

No caso dos autos, está provado que:
1º - Os autores são donos e legítimo possuidores do prédio rústico denominado Bouça da Costa, com área de 14 800 m2, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia da Portela, inscrito na matriz sob o artigo 2… e descrito na Conservatória sob o nº 0006…—cfr doc. nº 1
2º - Veio tal prédio ao domínio e posse dos AA por via sucessão hereditária deferida em inventário do pai do do A. marido, Ac…, encontrando-se a respectiva aquisição registada a favor dos AA pela inscrição G1—cfr doc. nº 1 supra.
3º - Além do mais, os AA., por si seus e antecessores, a A. há mais de 20 anos, tem usado o dito prédio, dando-lhe o destino que bem entende e dele retirando todos os benefícios, plantando e semeando árvores e colhendo os seus frutos, roçando matos, cortando lenhas, apascentando gado, pagando contribuições e impostos, ininterruptamente, diante de toda a gente, sem violência e sem oposição de ninguém, de boa fé, e sem ofensa de qualquer direito de outrem com consciência e ciência de exerceram direito próprio e legítimo, correspondente ao direito de propriedade pelo que, pela via da usucapião, forma originária de aquisição que expressamente invoca, sempre aquele imóvel teria vindo ao domínio e posse dos AA,
4º - Sendo certo que, nos termos do artigo 7º do CRP, sempre a A beneficiaria da presunção da titularidade do direito de propriedade em virtude de ter registado a sua aquisição na Conservatória do Registo Predial de Póvoa de Lanhoso, pela inscrição G1 – cfr doc. supra.
5º Por sua vez os RR são donos legítimos possuidores dos seguintes prédios: a) casa de habitação e quintal junto, sito no lugar de Vale, freguesia de Portela, a confrontar do norte e nascente com caminho público, sul e poente com Au…, inscrito na matriz sob o artigo urbano 59º e na rústica sob o artigo 131. b) Propriedade denominado Eido de Cima, sito no lugar de Cimo de Vila, freguesia de Portela, concelho de Amares, a confrontar do nascente com Jo…, do norte com Jos…, sul Ap… e do Poente com caminho público, inscrito na matriz sob o artigo 14…
6º - Tais prédios foram igualmente adquiridos pelos RR sucessão hereditário deferida em inventário instaurado por óbito daquele Ac…, pai e sogro dos AA e RR.
7º - Entre 1956 e 1957, o mencionado Ac… fez no prédio rústico, ora dos AA, Bouça da Costa, identificada no artigo 1º supra, um mina de captação de águas subterrâneas e respectiva poça para seu exclusivo armazenamento.
8 º Desde essa poça, conduzia as águas para gastos domésticos e para lima e rega dos prédios ora dos RR, melhor identificados no artigo 5º supra.
9º A qual se processava através de um cano subterrâneo que colocado sob uma bouça contígua, pertencente a Jo…. (sendo certo que, tal cano seria sempre visível, pelo menos no prédio dos Réus, onde teria necessariamente de subir á superfície para cumprir a sua função de rega).


De tais factos se conclui, sem margem para dúvida, que o prédio dos Autores está onerado com uma servidão de presa, que serve os prédios dos Réus e que foi constituída por destinação de pai de família, anotando-se que o direito à água por parte dos Réus não é posto em causa pelos Autores.
O conteúdo desta servidão consiste no direito de represar e derivar, para os prédios dominantes dos Réus, a água existente no prédio serviente, por meio de obras no prédio onerado (neste caso uma poça e um cano que conduz as águas). Essas obras permanentes designam-se geralmente por presas das correntes. A presa ou derivação compreende por isso a extracção artificial da água do rio, lago, fonte, mina ou nascente para a fazer correr em determinada direcção. A servidão de presa traduz-se, pois, no direito de captar e derivar a água, em benefício do prédio dominante, por meio de levadas, canais ou outras obras análogas, nos prédios servientes (cf. Ac. da Relação do Porto já citado).

Defendem os Autores que o anterior dono dos prédios em causa, antes da sua transmissão aos actuais proprietários, extinguiu, ele próprio, voluntariamente, a serventia do prédio “dominante”, ora dos Réus, relativamente ao prédio serviente, ora dos Autores.
Isto porque, construiu no terreno que os Réus herdaram, um tanque que passou a armazenar todas as águas da mina.
Como já referimos, quando os prédios pertenciam a um só proprietário, não podemos ainda falar da existência de uma verdadeira servidão que só se constitui no momento da transmissão dos prédios.
Ou seja, do que conseguimos perceber da argumentação dos Autores, havendo um facto voluntário do único dono dos prédios no sentido de extinguir a serventia que um deles tinha relativamente a outro do, a sua transmissão para donos distintos não poderia ter como consequência a constituição de qualquer servidão, já que, nessa altura, nenhuma relação de domínio/ serventia existia entre os prédios ora dos Réus e o prédio ora dos Autores.
Contudo, tal situação não resulta dos factos alegados pelos Autores.
Alegam os Autores que o anterior dono dos prédios há mais de 40 anos construiu um tanque nos prédios que agora são dos Réus, que passou a armazenar a água da mina existente no prédio que hoje é dos Autores.
Desta alegação não resulta a conclusão de que a poça do prédio “serviente”, já antes da transmissão dos prédios, e por acto voluntário do anterior dono, deixou de ser definitivamente utilizada para represar e derivar toda a água proveniente da mina para os prédios dos Réus.
Não se alega concretamente de onde, no tempo do anterior proprietário e depois da construção do referido tanque, provinha a água que aí chegava: se directamente da mina, se directamente da poça. Também não alegam quaisquer outros factos concretos de onde resulte inequivocamente que o anterior dono dos prédios tenha querido por termo, de vez, à serventia de um dos prédios relativamente aos outros dois, por exemplo, através da destruição dos sinais aparentes de tal serventia, designadamente inutilizando ou deixando de usar o cano que conduzia as águas da mina a partir da poça e/ou canalizando a água directamente da mina para os terrenos dominantes.
Pelo contrário, aceitam os Autores que o seu prédio está efectivamente onerado pela servidão de presa (cf. art.º 12.º da pi) e alegam que foram os Réus, depois de herdarem os prédios -ou seja, já depois de se ter constituído a servidão - e não o anterior proprietário, quem canalizou a água desde a boca da mina até aos seus prédios, onde foi construída pelo seu antecessor um tanque, onde passou a ser armazenada a água ( cfr. artigos 13.º a 20.º), concluindo, no art.º 21.º que “As circunstâncias constitutivas da necessidade de represar a água no prédio dos AA foram eliminadas pelos próprios Réus.
E foi esta desnecessidade da servidão ocorrida depois da transmissão dos prédios e da constituição da servidão que constituiu a verdadeira causa de pedir da presente acção
Ora, como é pacífico entre a doutrina e a jurisprudência, abundantemente citada na sentença apelada, as servidões constituídas por destinação de pai de família, não podem ser extintas por desnecessidade, já que têm na sua base um acto voluntário. O regime da extinção por desnecessidade previsto no art.º 1569.º n.ºs 2 e 3 apenas se compreende para as servidões legais.
Não pode proceder o argumento invocado nas alegações dos apelantes no sentido de que a servidão em causa é uma servidão legal constituída por destinação de pai de família (afirmação que em si mesmo constitui um paradoxo) já que a mesma poderia constituir-se independentemente de acto voluntário nos termos do art.º 1559.º do Código Civil.
Poder, podia, mas não foi o que sucedeu no caso concreto.
“Como referimos supra, a distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo.
Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou facto voluntário.
O legislador esclarece o verdadeiro âmbito das servidões legais, ao defini-las, no nº2 do art. 1547.° como aquelas que, não sendo constituídas voluntariamente, podem sê-lo por sentença judicial ou por decisão administrativa, consoante os casos.
Servidão legal é pois, a que é constituída coercivamente.
Servidões legais, no Código Civil, são as de passagem e as de águas, reguladas, respectivamente nos arts. 1550.°, 1556.° e 1557.° e seguintes.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/05/2010, (relatado pelo Cons. Oliveira Rocha proferido no processo n.º 1671/05.7TBVCT, sumariado em www.dgsi.pt) :
“A servidão resultante da verificação dos pressupostos indicados no art. 1549.º do CC não é uma servidão legal; trata-se de uma servidão voluntária, que se constitui no preciso momento em que os prédios ou fracções de determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.
Qualificar a servidão como voluntária não equivale, porém, a dizer que ela resultou de uma declaração negocial, designadamente de um acordo tácito: a servidão assenta num facto voluntário (a colocação do sinal ou sinais aparentes e permanentes), mas a relevância ou os efeitos deste facto são determinados pela lei.
As servidões por destinação do pai de família têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que se constituam, mesmo quando não são estritamente necessárias.
Por desnecessidade apenas se podem extinguir servidões que não têm na sua base um facto voluntário.
Este regime apenas se compreende para as servidões legais em que a lei sancionou a possibilidade de se constituírem por haver uma necessidade nesse sentido e para as servidões constituídas por usucapião, porque, também aí, não se verificou um facto voluntário na sua constituição; já aquelas servidões que têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que se constituam mesmo quando não são estritamente necessárias, não podem extinguir-se por desnecessárias, porque, então, nem se poderiam constituir.”

Assim e por tudo o exposto, não pode proceder a apelação.

Em conclusão:
I - a distinção entre servidões legais e servidões voluntárias estabelece-se em função da modalidade do título constitutivo.
Assim, se as servidões voluntárias são as constituídas por negócio jurídico ou facto voluntário, as servidões legais são constituídas coercivamente.
II - As servidões por destinação do pai de família têm por base um facto voluntário, permitindo a lei que se constituam, mesmo quando não são estritamente necessárias.
III - Por desnecessidade apenas se podem extinguir servidões que não têm na sua base um facto voluntário.

III DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta secção cível em julgar a apelação procedente, confirmando a sentença apelada.

Custas pelos apelantes.
Notifique.
Guimarães, 12.01.2012
Relator: Maria Isabel Rocha
Adjuntos:
Jorge Teixeira
Manuel Bargado