Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
509/09.GBBCI.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- O chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial como compensado a título de dano moral. A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.

II- Não obstante a demandante, à data acidente, já ter completado oitenta anos, não exercer qualquer actividade remunerada nem ser previsível que a viesse a ter, “exercia uma actividade regular, quer no amanho do seu quintal, quer na lide diária de dona de casa onde desempenhava as tarefas domésticas, cozinhando, tratando das roupas e da limpeza da casa.” Actualmente, devido às “grandes limitações na sua locomoção”, já não poderá desempenhar todas essas tarefas. Ou, se as desempenhar, elas acarretarão grandes esforços acrescidos. Tais tarefas nomeadamente o amanho do quintal, têm uma utilidade económica significativa. Estamos, pois, perante um dano patrimonial que deve ser ressarcido, com recurso à equidade por não haver elementos que permitam determinar o seu valor exacto.

III- No caso em apreço, não é razoável “jogar” com a “esperança média de vida das mulheres portuguesas”. A demandante já a ultrapassou. Felizmente continua viva e em todos os dias que ainda viver estará diminuída nos aspectos mencionados.

IV- A circunstância de a demandante receber uma pensão mensal baixíssima (de € 243,32), não deve ser critério para a redução da indemnização. São precisamente as pessoas que vivem no limiar da miséria (como manifestamente é o caso da demandante), que, podendo, mais lançam mão do amanho de quintais para conseguirem alimentos que não estariam ao alcance dos seus rendimentos monetários. Os mais ricos que, em idades avançadas, amanham quintais não o fazem por prementes necessidades económicas, mas para satisfazerem outros interesses mais imateriais.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 1º Juízo Criminal de Barcelos, em processo comum com intervenção do tribunal singular (509/09.GBBCL) foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos (transcreve-se):
a) condeno o arguido Alcindo C... pela prática, como autor material, do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº 1, do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão;
b) condeno o mesmo arguido pela prática, como autor material, do crime de omissão de auxílio, p. e p. pelo art. 200º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
c) em cúmulo jurídico vai o arguido condenado na pena única de 11 (onze) meses de prisão, a qual se suspende na sua execução pelo período de 12 (doze) meses, na condição de:
- ser acompanhado pela equipa da DGRS de Barcelos, à qual se apresentará no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão e, futuramente, quando e onde ali lhe for determinado;
- entregar aos Bombeiros Voluntários de Barcelinhos a importância de € 600,00, no prazo de 60 dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão; e, ainda,
- frequentar o programa de tratamento ao alcoolismo em instituição de saúde adequada, com o acompanhamento e a orientação da DGRS;
d) condeno ainda o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, p. e p. pelos arts. 135º, nº 1, 136º, 137º, 138º, nº 1, 145º, nº 1, al. f) e 147º, nº 2,do Código da Estrada, por um período de 12 (doze) meses;
e) julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Maria S... e, em consequência, condeno a demandada “L... – Companhia de Seguros, S.A.” a pagar-lhe a quantia de € 23.843,46 (vinte e três mil e oitocentos e quarenta e três euros e quarenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, absolvendo-a da parte restante do pedido”.
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A demandada cível “L... – Companhia de Seguros, S.A. interpôs recurso desta sentença.
Suscita as seguintes questões:
- a parcela de € 3.000,00 para indemnização do “dano biológico”, deve ser eliminada, ou reduzida para o valor de € 236,98;
- a compensação pelos danos não patrimoniais que foi fixada em € 20.000,00 deve ser reduzida para € 7.500,00.
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Respondendo, a demandante cível Maria S... defendeu a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia 11 de Abril de 2009, pelas 20h50m, o arguido Alcindo C... conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca Rover, modelo 214 GSI, cor vermelha, com a matrícula 17-68-..., pela hemifaixa direita da Estrada Nacional 306, no sentido Carvalhas/Portela, a velocidade não concretamente apurada;
2. Ao Km 2 da referida via, na Rua Nossa Senhora do Ó, na freguesia de Góios, Barcelos, o Alcindo C... fez seguir o veículo que tripulava pela berma direita da via, deixando que os rodados deste chegassem à extremidade da mesma;
3. Passando a circular junto à valeta, o arguido embateu com a parte frontal direita do veículo CM no corpo da ofendida Maria S..., que, por sua vez, seguia a pé na mesma via, junto ao muro e à valeta, no sentido Portela/Carvalhas, pelo lado esquerdo da mesma;
4. Em razão do impulso do embate, a Maria S... foi projectada para o chão, ficando imobilizada na Rua do Ribeiro, que entronca pelo lado esquerdo da Rua Nossa Senhora do Ó, atento o sentido Portela/Carvalhas;
5. Com a conduta descrita, o arguido provocou à Maria S... traumatismo no ombro direito, coxa esquerda, joelho direito e antebraço direito;
6. Em consequência do embate, a Maria S... sofreu as seguintes lesões:
- Fractura da bacia, prato tibial externo direito, colo perónio direito, cúbito direito;
- Fractura supra condiliana do fémur esquerdo;
- Fractura do estiloide cubital direita;
- Fractura dos ramos ílio isquio púbicos à direita;
7. Tais lesões determinaram-lhe, directa e necessariamente, 151 dias de doença;
8. Sofreu um período de incapacidade temporária geral total de 8 dias e um período de incapacidade temporária geral parcial de 143 dias, sendo o período de incapacidade temporária profissional total de 151 dias;
9. O Alcino Costa, apercebendo-se que tinha embatido na Maria S... e que a mesma, em consequência da violência do embate, sofreu ferimentos graves, susceptíveis de colocar em perigo a sua saúde e integridade física, pôs-se em fuga, abandonando o local no veículo por si conduzido, sem cuidar de saber o estado daquela, nem providenciar pelo seu socorro;
10. Nesse local, a E.N. 306 é ladeada por habitações e apresenta traçado recto, com boa visibilidade, sem obstruções visuais e provida de postes de iluminação pública do lado direito, atento o sentido de marcha do CM, os quais, no momento, se encontravam em funcionamento;
11. O tempo apresentava-se seco e limpo;
12. A referida via é pavimentada em asfalto betuminoso, em razoável estado de conservação, com dois sentidos de trânsito, sem marcação de bermas, sem passeios e com valetas de 0,40m intransitáveis;
13. A faixa de rodagem mede, na sua totalidade, 5 metros de largura;
14. A velocidade máxima no local é de 90Km/hora;
15. No local existe, no pavimento, a marca longitudinal M2 – linha descontínua.
16. No sentido Carvalhas/Portela, deparava-se ao arguido, desde o Km 2,950 a seguinte sinalização vertical:
- Placa informativa não regulamentar, com a inscrição “Góis – Bem-vindos”;
- C20b – Fim da limitação de velocidade de 50 Km/hora;
- Ao Km 2,200 – B9b – entroncamento à direita com via sem prioridade;
- A19a – animais;
- B8 – cruzamento com via sem prioridade, complementado com painel Mod.1 (distância 100 metros);
17. O acidente ficou a dever-se exclusivamente ao modo leviano, temerário, imprudente e descuidado como o arguido conduzia a sua viatura, pois, tendo livre toda a hemifaixa direita e, não atentando na presença da Maria S..., invadiu a berma por onde esta seguia, podendo e devendo imprimir ao veículo que tripulava trajectória diferente da que ocorreu, por forma a evitar o acidente;
18. Ao dirigir o veículo do modo e nas condições descritas, o arguido agiu com manifesta falta de consideração pelas normas legais relativas à circulação automóvel;
19. O arguido actuou sem prever as consequências que poderiam advir desta sua conduta, não actuando com a diligência e cautela que lhe eram exigíveis e que estavam ao seu alcance, violando o dever objectivo de cuidado que sobre si recaía na condução daquele veículo e que podia e devia acatar;
20. Por outro lado, o arguido, não obstante saber que embateu no corpo da Maria S... e representar como possível que, com o referido embate, lhe provocou lesões graves, conformou-se com isso e decidiu, livre e deliberadamente, abandonar o local, o que fez sem que antes tivesse providenciado pelo seu auxílio, bem sabendo que estava obrigado a prestá-lo, desinteressando-se, assim, das consequências da sua condução, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Provou-se ainda que:
21. A ofendida nasceu a 13 de Fevereiro de 1929;
22. Foi tratada no Hospital de Barcelos onde foi operada a fractura do fémur e recebeu tratamento conservador às outras fracturas, aí permanecendo internada, tendo alta do internamento em 30.04.2009, sendo seguida posteriormente na consulta externa deste Hospital;
23. Logo que recebeu a alta do internamento, a ofendida foi transferida para a Cínica Médica e Fisiatria “5 Sensi”, sita na Rua do Regedor, 4905-152 Tregosa, do Concelho de Barcelos, onde permaneceu internada em recuperação e a realizar tratamentos de fisioterapia até 15 de Julho de 2009, data em que lhe foi dada alta;
24. Actualmente, a ofendida apresenta as seguintes sequelas:
- ráquis: sequelas de fractura bacia (coxalgia);
- membro superior direito: cicatriz linear com dois centímetros no dorso do punho assim como deformação do mesmo e ligeira rigidez na extensão; Apresenta, ainda, tumefacção por suspeita de luxação de clavícula/omoplata;
- membro inferior direito: cicatriz de seis centímetros na face anterior do joelho. Flexão do joelho até 120°;
- membro inferior esquerdo: cicatriz de vinte e dois centímetros na face externa e distai da coxa. Desvio em valgo do membro por consolidação com ligeira angulação. Sem amiotrofias e sem encurtamentos. Ligeira rigidez dos movimentos do joelho, permitindo flexão até 90°. Edema crónico do joelho (com diferença de três centímetros com o lado contra lateral);
25. Em consequência do acidente, devido às lesões e ao período de recuperação, a ofendida sofreu dores no grau 5 da escala de “quantum doloris”, com sete graus de gravidade crescente;
26. Devido às sequelas que lhe advieram do embate a ofendida ficou com uma incapacidade permanente geral (IPG) de 12%;
27. Em 2006 e para melhorar a sua qualidade de vida, a ofendida foi submetida a uma intervenção cirúrgica, tendo-lhe sido colocada uma prótese total da anca no membro inferior esquerdo, o que lhe uma causou uma cicatriz de dezassete centímetros na face externa do terço superior da coxa;
28. A ofendida, à data do acidente, muito embora se encontrasse em situação de reformada, exercia actividade regular, quer no amanho do seu quintal, quer na lide diária de dona de casa onde desempenhava as tarefas domésticas, cozinhando, tratando das roupas e da limpeza da casa;
29. Apesar da idade, era uma pessoa saudável e robusta;
30. A ofendida frequentava, como católica, a Igreja Paroquial de Góios que dista da sua residência cerca de 2 Km, deslocando-se habitualmente a pé, tal como acontecia no dia em que sofreu o acidente dos autos;
31. Por força do acidente descrito, a ofendida viu-se impedida de realizar as tarefas descritas no ponto 28, tendo de recorrer ao auxílio de familiares durante os 151 dias em que esteve afectada da sua capacidade geral de trabalho;
32. A ofendida despendeu a quantia global de € 843,46 com internamento e tratamentos na clínica “5 Sensi”, taxa moderadora, tratamentos médicos e em tratamentos complementares de diagnóstico;
33. À data do acidente, a ofendida já estava reformada e recebia a tal título a pensão mensal no valor de € 243,32;
34. Por força do acidente sofrido, é agora uma pessoa triste, desanimada e sem gosto pela vida;
35. Pouco sai de casa, já que não o pode fazer como o fazia antes do acidente, uma vez que agora tem grandes limitações na sua locomoção, dependendo do uso de canadianas, passando a maior parte do seu tempo no interior da sua casa;
36. Na data referida no ponto 1, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo 17-68-... encontrava-se transferida para a demandada “Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A.”, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº 423038;
Mais se provou que:
37. O arguido exerce a actividade de calceteiro, exercida em regime de biscates e com alguma irregularidade pelo facto de apenas a poder exercer nos dias em que não chove; a mulher é operária fabril; o rendimento do agregado tem o valor aproximado de € 975,00; tem a seu cargo dois filhos de 17 e 13 anos de idade; vive num anexo, propriedade da sogra; possui como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade;
38. No meio da comunidade onde reside, o arguido é regularmente visto nos cafés da freguesia evidenciando comportamentos associados ao consumo excessivo de álcool;
39. Constam do C.R.C. do arguido as seguintes condenações:
- por sentença proferida em 13/12/2000, transitada em julgado em 10/01/2001, no processo sumário nº 833/00.0GCVCT (ex nº 176/00), do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Póvoa do Varzim, foi condenado pela prática, em 11/11/2000, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa à taxa de 600$00, a qual se mostra extinta, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 120 dias;
- por sentença proferida em 24/04/2002, transitada em julgado em 18/06/2002, no processo comum singular nº 320/01.7GTVCT (ex. nº 432/01), do 2º Juízo Criminal deste Tribunal, foi condenado pela prática, em 12/06/2001, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de seis meses de prisão, cuja execução foi suspensa por um ano, a qual se mostra extinta, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses;
- por sentença proferida em 15/05/2006, transitada em julgado em 30/05/2006, no processo sumário nº 203/06.4GAPVZ, do 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim, foi condenado pela prática, em 19/04/2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de cinco meses de prisão, cuja execução foi suspensa por dois anos, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 11 meses, as quais se mostram extintas;
- por sentença proferida em 12/05.2010, transitada em julgado em 21/06/2010, no processo sumário nº 424/10.5PAPVZ, do 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim, foi condenado pela prática, em 28/04/2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de oito meses de prisão, cuja execução foi suspensa por um ano, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 2 anos;
40. Consta do cadastro individual de condutor do arguido a condenação referente ao processo sumário nº 424/10.5PAPVZ, do 1º Juízo Criminal da Póvoa do Varzim.
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Considerou-se não provado que:
a) as lesões descritas no ponto 7 determinaram para a ofendida 150 dias de doença, com igual afectação da capacidade para o trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional;
b) antes do acidente a ofendida desempenhava as tarefas referidas no ponto 28 sem qualquer limitação e vinha à feira a Barcelos fazer as compras;
c) apesar da idade, a ofendida não tinha qualquer problema físico e andava bastante a pé;
d) em consequência do acidente, a ofendida passa a maior parte do seu tempo na cama;
e) nas circunstâncias de tempo e lugar referidos nos pontos 1 e 2, o arguido circulava no máximo entre 40Km e 50 km/hora;
f) os rodados do veículo conduzido pelo arguido, nunca chegaram à extremidade da berma pelo que nunca circulou junto à valeta;
g) a ofendida Maria S... não seguia junto ao muro e valeta, mas sim a par de duas senhoras, sendo certo que a ofendida ocupava a faixa direita da estrada;
h) o arguido nunca saiu da sua hemifaixa direita e logo após ter efectuado a curva, vê-se confrontado com a situação descrita na alínea c), pelo que não conseguiu evitar o acidente, tendo tocado com o pisca na ofendida, tendo esta, provavelmente em virtude da sua idade, 80 anos, caído com o toque;
i) o arguido se tenha posto em fuga, abandonando o local, sem cuidar de saber o estado da vítima, nem providenciar socorro, isto porque, o arguido sentiu que tocou na ofendida, tendo de imediato parado veiculo e perguntado o que se tinha passado;
j) ao que as pessoas que acompanhavam a ofendida responderam que esta havia caído e o arguido, que é uma pessoa bastante sensível e se vê sangue desmaia de imediato, tendo verificado que no local já se encontrava muita gente para prestar o respectivo auxílio, dirigiu-se para casa no sentido de telefonar para as autoridades competentes, nomeadamente à GNR da Póvoa de Varzim;
l) no seguimento do seu contacto telefónico os agentes da GNR dirigiram-se à sua residência;
m) o arguido apresentou-se no posto da G.N.R. de Barcelinhos no dia seguinte;
n) preocupado com a situação, o arguido pediu a um seu afilhado que apurasse o contacto da ofendida, tendo este entrado em contacto com a filha desta e agendado um encontro no local do acidente;
o) o arguido dirigiu-se juntamente com o sobrinho ao local do acidente tendo-se encontrado com a filha da ofendida, que estava acompanhada de uma senhora e um senhor, referindo desde logo que tinha seguro e que já tinha fornecido todos os dados à GNR;
p) o acidente não se ficou a dever ao arguido, pois seguia na sua hemifaixa direita e nunca invadiu a berma, ao contrário da ofendida que seguia fora da berma;
q) agiu o arguido em conformidade com as normas legais relativas à circulação automóvel, seu alcance, pelo que não violou o dever de cuidado que sobre si recaia na condução do veículo.
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FUNDAMENTAÇÃO
O recurso limita-se aos montantes arbitrados para compensação do apelidado “dano biológico” (€ 3.000,00) e dos danos não patrimoniais (€ 20.000,00). Entende a demandada L... – Companhia de Seguros SA que não há lugar à indemnização pelo primeiro e que, quanto aos segundos, o valor deve ser fixado em € 7.500,00.
Comecemos pelo “dano biológico”.
A demandante ficou com uma incapacidade permanente geral (IPG) de 12% (facto nº 26), o que fundamentou a fixação daquele montante de € 3.000,00 como dano patrimonial.
Considerou-se na sentença recorrida que “não obstante não ter resultado apurada em concreto a existência de uma efectiva perda de rendimentos por parte da demandante, estamos perante um dano indemnizável mesmo na sua vertente patrimonial, traduzido num lucro cessante (cfr. o art. 564º, nº 1, 2ª parte do C.C.), sendo um dano resultante do acidente (cfr. os citados arts. 562º e 563º do C.C.) (sublinhado do relator).
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Sendo certo que o chamado “dano biológico” é um “dano”, nem sempre deverá ser considerado como um dano patrimonial.
Transcreve-se do ac. do STJ de 27-10-2009, disponível no ITIJ:

Há que proceder à integração do dano biológico, ou na categoria do dano patrimonial – como “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado.” – Prof. A. Varela, ob. cit.) abrangendo não só o dano emergente, como perda patrimonial, como o lucro frustrado, ou cessante –, ou na classe dos danos não patrimoniais (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestigio ou de reputação e que atingem bens como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, o bom nome, que não integram o património do lesado).

A maioria da jurisprudência, e certa doutrina, consideram o dano biológico como de cariz patrimonial. (cf., entre outros, o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Maio de 2009 e os Acórdãos de 4 de Outubro de 2007 – 07B2957, de 10 de Maio de 2008 – 08B1343, 10 de Julho de 2008 – 08B2101, e de 6 de Maio de 1999 – 99B222, e Prof. Sinde Monteiro, in “Estudos sobre a Responsabilidade Civil”, 248).

Em abono deste entendimento refere-se que, mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado – por não se estar perante uma incapacidade para a sua actividade profissional concreta- pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis o que integra um dano futuro previsível, segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute.

Mas também é lícito defender-se que o ressarcimento do dano biológico deve ser feito em sede de dano não patrimonial.

Nesta perspectiva, há que considerar, desde logo, que o exercício de qualquer actividade profissional se vai tornando mais penoso como decorrer dos anos, o desgaste natural da vitalidade (paciência, atenção, perspectivas de carreira, desencantos…) e da saúde, tudo implicando um crescente dispêndio de esforço e energia.

E esses condicionalismos naturais podem é ser agravados, ou potenciados, por uma maior fragilidade adquirida a nível somático ou em sede psíquica.

Ora, tal agravamento, desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral.

Isto é, o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral.

A situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.

E não parece oferecer grandes dúvidas que a mera necessidade de um maior dispêndio de esforço e de energia, mais traduz um sofrimento psico-somático do que, propriamente, um dano patrimonial” (sublinhados do relator deste acórdão).


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A demandante, na data do acidente já tinha completado oitenta anos (nasceu em 13-2-1929 e os factos ocorreram em 11-4-2009). Não tinha qualquer actividade remunerada e o previsível, segundo o normal acontecer das coisas, era que não a viesse a ter na vida que lhe sobrava.
Porém, está provado que “exercia uma actividade regular, quer no amanho do seu quintal, quer na lide diária de dona de casa onde desempenhava as tarefas domésticas, cozinhando, tratando das roupas e da limpeza da casa” (facto nº 28). Actualmente, devido às “grandes limitações na sua locomoção”, uma vez que depende do uso de canadianas (facto nº 35), já não poderá desempenhar todas essas tarefas. Ou, se as desempenhar, elas acarretarão grandes esforços acrescidos.
São tarefas, nomeadamente o amanho do quintal, que têm uma utilidade económica significativa. Estamos, pois, perante um dano patrimonial que deve ser ressarcido (art. 562 do CC).
Sendo certa a existência do dano, não havendo elementos que permitam determinar o seu valor exacto, resta o recurso à equidade – art. 566 nº 3 do CC.
No juízo sobre esta, deixam-se duas notas para a razão porque se entende não ser exagerado o valor fixado na primeira instância.
A primeira: no caso em apreço, não é razoável “jogar” com a “esperança média de vida das mulheres portuguesas”. A demandante já a ultrapassou. Felizmente continua viva e em todos os dias que ainda viver estará diminuída nos aspectos mencionados.
A segunda: a circunstância de receber uma pensão mensal baixíssima (de € 243,32), não deve ser critério para a redução da indemnização. São precisamente as pessoas que vivem no limiar da miséria (como manifestamente é o caso da demandante), que, podendo, mais lançam mão do amanho de quintais para conseguirem alimentos que não estariam ao alcance dos seus rendimentos monetários. Os mais ricos que, em idades avançadas, amanham quintais não o fazem por prementes necessidades económicas, mas para satisfazerem outros interesses mais imateriais.
Não se sabe que frutos a demandante colhia em concreto do quintal, nem se eram só bens agrícolas ou, também, animais de capoeira, como muitas vezes acontece. O certo é que, se conseguisse por mês um conjunto de bens que no supermercado da zona custam €100,00, a indemnização de €3000,00 dará para 30 meses, ou seja, 2 anos e 6 meses. Mais de dois anos já passaram desde a data dos factos. A isto acresce a utilidade económica decorrente do exercício das lides domésticas, actividade em que a demandante também está diminuída.
Quanto aos danos não patrimoniais
Estes danos, não tendo uma dimensão tão directamente económica como os patrimoniais, atingem os valores de carácter espiritual ou moral, como a saúde, a dignidade e a honra da pessoa, por forma a traduzirem-se em sofrimento, dor, desgosto, etc. São mitigáveis, compensatoriamente, através do arbitramento de quantias em dinheiro, sendo que, só relevam os que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito - arts. 496 nº 1 e 566 nº 2 do Cod. Civil.
Não sendo directamente mensurável, o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização (art. 496 nº 3), aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. A indemnização reveste, neste caso dos danos não patrimoniais, uma natureza essencialmente mista: por um lado visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, 1980, Vol. I, pag. 502.
Com estas coordenadas, há a considerar todas as lesões, dores e sequelas referidas na sentença recorrida, que não vão aqui ser novamente transcritas, porque seria meramente repetitivo. Acrescentar-se-á apenas que as sequelas do acidente significam, para uma pessoa como a demandante, a completa ruína do seu já modesto modo de vida. Tinha gostos simples, como ir a pé até à igreja da paróquia (facto nº 30) e agora pouco sai de casa, devido à dependência do uso de canadianas. É certo que está na recta final da vida e que, ao contrário do que normalmente acontece com os mais jovens, não ambicionaria, nem viu frustrado, um futuro de radiosos prazeres. Mas o argumento é reversível. Os mais novos, que sofrem ferimentos que deixam sequelas, ainda vão a tempo de reorientar a vida e encontrar novos interesses. Aos mais velhos, que têm idêntico azar, resta a tristeza de aguardarem o fim sem alternativas.
Nenhum exagero existe, assim, nos € 20.000,00 euros fixados.
Tem, pois, de ser negado provimento ao recurso.
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DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas nesta instância pela demandada, na proporção do decaimento do recurso