Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/15.3T8VPA.G1
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: HERANÇA INDIVISA
HERANÇA JACENTE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. A herança indivisa ou não partilhada não se confunde com a herança jacente, pois que esta supõe que se mantenha uma situação de indeterminação dos herdeiros ou de não aceitação da herança.

2. A herança indivisa e não partilhada apenas goza de personalidade judiciária enquanto se mantiver na situação (tendencialmente transitória) de jacente.

3. A partir da cessação desta situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, passa a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar e ser demandada.

4. Existindo elementos seguros que demonstrem que a herança foi aceite pelos sucessíveis chamados, deve ser julgada procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança.

5. Esta excepção dilatória importa a absolvição da instância e não consente suprimento.
Decisão Texto Integral: Recorrente: Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de B., representada pelo cônjuge sobrevivo C. e filha D..

Recorridos: - E. e mulher F.;
- G. e marido H..

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Vila Pouca de Aguiar – Ins. Local – S. Competência Genérica – J1.

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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório:
i)- Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de B., representada por C. (cônjuge sobrevivo) e D. (filha), propôs a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra E. e esposa F. e G. e marido H., pedindo, a final, que sejam eles C. e D. reconhecidos como únicos e universais herdeiros da herança antes referida, que seja declarado que os espaços […] ocupados pelos RR. e a que se faz menção no articulado inicial, são propriedade e parte integrante da mesma herança aberta por óbito de B., de que são tais espaços foram ocupados pelos RR. com obras que não dipuseram de autorização ou consentimento, a reporem a situação existente naqueles espaços, antes das aludidas obras, retirando todas as construções ali edificadas, os seus escombros e duas pedras ali colocadas, a absterem-se de entrar nos ditos espaços ou, por qualquer forma, perturbarem o direito da herança sobre tais espaços, a indemnizarem a Autora (herança), em favor dos seus herdeiros pelos danos não patrimoniais sofridos, e, ainda, a indemnizarem a Autora (herança) por todos os danos patrimoniais sofridos, causados pelos actos antes referidos e praticados contra a propriedade identificada nos autos.

ii). Os RR., regularmente citados, contestaram por impugnação, sustentando, no essencial, que as obras que levaram a cabo tiveram lugar no seu prédio (que confina com prédio o identificado no articulado inicial, encontrando-se ambos delimitados por muros), não tendo invadido, por qualquer forma, o prédio da herança em apreço.

iii). Por despacho a fls. 99, foi a Autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de B., por meio dos seus representantes, convidada a esclarecer se os identificados C. e D. são os únicos herdeiros e, ainda, a esclarecerem se aceitam a herança, juntando, ainda, escritura de habilitação de herdeiros (se existir).

iv). Nessa sequência, veio a aludida herança esclarecer que os ditos C. e D. são os únicos herdeiros da herança aberta por óbito de B., que «aceitam a herança», tendo, ainda, junto a escritura de habilitação de herdeiros a fls. 106-107 dos autos.

v). Cumprido o contraditório quanto ao eventual conhecimento oficioso da excepção de falta de personalidade judiciária da autora “ Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de B. ” (vide fls. 113-119), foi proferido despacho que, julgando procedente a aludida excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da Autora Herança Ilíquida e Indivisa, absolveu os RR. da instância.

vi). Inconformada com o assim decidido, veio a Autora interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1ª- A presente acção surgiu na sequência de uma providência cautelar n.º 94/14.1T8VPA, cujo teor aqui se dá por integrado para efeitos de economia processual.
2ª- Naqueles autos as partes, a dita herança representada pelo cabeça de casal C., foi considerada parte legitima, pelo que a instância no que respeito diz à legitimidade está assim, assente, definida, regularizada, não podendo, de forma alguma, vir ora, com a devida vénia, o Tribunal, como veio, pronunciar-se no sentido da absolvição da instância dos RR., sob pena de se beliscar de forma grave, a certeza e estabilidade da Douta decisão anterior já transitada em julgado.

3ª- Certo é que, de acordo com o disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º, todos do C. Civil, se prevê o exercício pelo cabeça de casal e ou por todos os herdeiros os direitos relativos à herança, isto é em nome da herança (caso dos autos), ou contra a herança que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário, que foi o que sucedeu nos autos.
4ª- A herança ilíquida e indivisa constitui património típico, possuindo afectação especial, e como tal atribui-lhe a lei personalidade judiciária – artº 12 do C.P.C. ( artº 6 do velho C.P.C.) – Neste sentido vide Lições de Direitos Reais do Prof. Pires de Lima coligidas por Daniel Augusto Fernandes, 1941, pág. 22 e Acórdão da Relação de Coimbra de 26.02.1981, CJ 1981 1º-94 -.
5ª- Aliás, por analogia à figura da herança jacente, baseada no argumento a maiori ad minus, entende-se que, não estando ainda efectuada a partilha, é em nome da herança, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender os interesses do acervo hereditário, sendo a herança representada pelo cabeça de casal, ou por todos os herdeiros, nos termos dos arts. 2088º e 2089º Cód. Civil.,
6ª- E sempre se poderá destacar, a não se entender assim, que é manifesto que o facto de na herança já aceite mas ainda não partilhada (Art. 2050º do Cód. Civil), já serem conhecidos os sucessores do de cujus torna redundante a expressa atribuição, na lei processual, de personalidade judiciária àquela.
7ª- Salienta o Prof. Miguel de Sousa, in “As partes, o objecto e a prova na acção declarativa”, pág. 18, que acrescenta que, mesmo depois da herança partilhada, o que não é o caso dos autos, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (arts. 2068º e 2071º do Cód. Civil), sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe ser atribuída ou não personalidade judiciária,

8ª- Já que é deveras manifesto que a tem!! (vide Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, pág. 20.)
9ª- O julgador da primeira instância, salvo devido respeito e que é muito, em suma, e incorrectamente incorreu em erro de julgamento, ao considerar como considerou que a A., carece de personalidade e capacidade judiciária para os termos da lide;
10º- A herança ilíquida e indivisa, enquanto universitas júris representada, é representada, enquanto subsiste, em juízo pelo cabeça de casal, quando a sua intervenção se situe no âmbito dos poderes de administração, ou, fora desse caso, e para além da situação excepcional prevista no art. 2078º do Cód. Civil, pelo conjunto de todos os herdeiros em litisconsórcio necessário legal, o que sucedeu in casu.
11º- E até bem se pode entender que o caso sub judice se enquadra no disposto no art. 2088º do Cód. Civil que estabelece que o cabeça-de-casal ou todos os herdeiros, podem pedir o reconhecimento da propriedade que deva administrar e que um terceiro tenha em seu poder, ilegitimamente. (Vide Ac. RL 28-4-1994, CJ, 1994, 2.ª-131).
12º- No caso sub judice, intervieram até todos os herdeiros, com o objectivo de defender os bens da herança, evitando a sua saída do acervo hereditário.
13º- Pelo que, se assim não se entender, o que não se concede, e estando a mesma representada em juízo por todos os seus herdeiros, está, devida legal e completamente, preenchido o requisito da representação da herança ilíquida e indivisa do caso sub judice, através da figura jurídica litisconsórcio necessário legal, o que leva forçosamente à conclusão de que deve ser revogada, com a devida vénia, a douta decisão prosseguindo a presente acção os seus regulares termos
14º- De salientar, a propósito de tudo isto, que em sede de representação há que atentar no disposto nos Art.º 26º, 27º e 28º do Cód. Proc. Civil,
15º- O que sempre conduziria a uma solução diferente daquela que, erradamente, salvo devido respeito, foi tomada na decisão recorrida,
16º- A lei, no art. 12º do CPC, onde se prevêem excepções ao princípio da correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária previsto no art. 11º n.º 2, atribui na alínea a) de tal preceito personalidade judiciária à herança jacente, isto é, à herança cujo titular ainda não esteja determinado (art. 2046º e sgs. do C. Civil).
17º- Atribuindo tal personalidade à herança jacente, por analogia baseada em argumento de maioria de razão é também de considerar que a atribui à herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada) – expressamente neste sentido vide “Manual de Processo Civil” de A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 111 (texto e nota 1 referida em tal página), onde se refere a tal propósito que embora não estando ainda efectuada a partilha é em nome da herança (ou contra a herança), embora carecida de personalidade jurídica, que hão-de ser instauradas as acções destinadas a defender (ou a sacrificar) interesses do acervo hereditário.
18º- Aliás, tal entendimento é desde logo confirmado pelo disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça de casal e/ou por todos os herdeiros, conforme os casos, dos “direitos relativos à herança” (expressão expressamente utilizada pela lei no último daqueles preceitos e que abarca as situações ali previstas e, como ali mesmo se refere, as previstas nos restantes preceitos), como dá conta, ainda, Lebre de Freitas, no seu “ Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. 1º, a págs. 18 e 20 (anotações 1 e 3 ao art. 6º), citando Teixeira de Sousa, “As partes, …”, Lisboa, Lex, 1995, pág. 18.

19º- Deste modo, e seguindo de perto o Doutamente decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.09.01 – Processo 4494/09.0TJVNF.P1 entre outros, e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no âmbito do processo 1530/12.7TBPBL.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e em conformidade com o que se referiu, é entendimento da recorrente, reconhecer que a herança indivisa – a autora – tem personalidade judiciária, devendo, por isso, ser em seu nome (como o foi) que a presente acção deve ser proposta.
20º- Tal entendimento é também confirmado, como se disse já e não é por demais repetir, pelo disposto nos arts. 2079º, 2088º, 2089º e 2091º nº1 do C. Civil, nos quais se prevê o exercício pelo cabeça de casal e/ou por todos os herdeiros, como é o caso dos autos,
21º- A Douta decisão recorrida, violou o preceituado no art.º 11º, 12º, 26º, 27º, 28º, 615º, n.º 1 alínea d), 619º, 620º, 621º, entre outros do CPC., artigos 2046º, 2079º, 2088º, 2089º e 2091º entre outros do Cód. Civil, o que a torna nula e de nenhum efeito,
Assim, concluiu a apelante pela revogação do despacho em apreço, com o consequente prosseguimento da acção.

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Não foram oferecidas contra alegações.

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Após os vistos legais, cumpre decidir.

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II. FUNDAMENTOS:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, n.º 3, e 639º, nºs 1 e 2, do NCPC.

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objecto do presente recurso.

Neste âmbito, a única questão submetida a apreciação é a de saber se a Autora Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de B. dispõe de personalidade judiciária (como sustenta a apelante) ou, ao invés, se, conforme decidido pelo tribunal a quo, a mesma é destituída de personalidade judiciária, com a consequente absolvição da instância dos RR., pois que se trata, de forma indiscutida, de excepção dilatória.

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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO e de DIREITO:

Os factos relevantes para efeitos de decisão são os que constam do relatório acima exposto e outros, ainda, a que, no desenvolvimento da argumentação jurídica a seguir exposta, se fará a devida referência.

Decidindo.
Como se sabe a personalidade judiciária é, como refere CASTRO MENDES, “ Direito Processual Civil ”, AAFDL, 1980, II volume, pág. 13, o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes.
Dispõe o artigo 11.º, nº 1 do Código de Processo Civil (adiante designado apenas por CPC), que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade se ser parte, sendo que, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária – cfr. nº 2 do citado preceito.
Ora, a personalidade judiciária acha-se normalmente associada à personalidade jurídica, consistente na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, como resulta inequivocamente do citado n.º 2 do artigo 11º.
Acontece que, esta regra de correspondência, ou seja, da coincidência ou da equiparação, entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, não se verifica na situação inversa, pois que, em certas situações a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica, como é v.g. o caso da herança jacente (cfr. artigos 12º a 14.º do CPC.).
Esta extensão da personalidade judiciária a quem não possui ou é duvidoso que possua personalidade jurídica, «é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos).» Vide A. VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, “ Manual de processo Civil ”, 2ª edição, pág. 111.
Para o caso que ora importa dirimir, estatui o artigo 12.º do CPC que:

“ Têm ainda personalidade judiciária:
a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado. [corresponde, sem alterações, ao anterior art. 6º, al. a)- do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo DL n.º 180/96 de 25.09.]
Este citado art. 6º tinha na redacção anterior à revisão processual operada pelo DL n.º 329-A/95 de 12.12. e DL n.º 180/96 de 25.9, a seguinte formulação:
“ A herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária ”.
Portanto, no domínio do Código do Processo Civil anterior aos citados diplomas legais, a herança em relação à qual se verificasse a indeterminabilidade do respectivo titular gozava de personalidade judiciária.
Evidentemente que, sendo a herança um património autónomo, cumpre salientar que somente na primeira parte do citado preceito - “ herança cujo titular ainda não esteja determinado ”- se pretendia abranger aquela realidade constituída pelo conjunto de relações jurídicas, inseridas na esfera jurídica do de cujus, que são transmissíveis e que constituem precisamente a herança de uma pessoa falecida.
Só, pois, naquele enquadramento normativo, em caso de indeterminação dos respectivos titulares, uma qualquer massa patrimonial proveniente da esfera de pessoa falecida podia ser enquadrada no artigo 6.º do anterior Código de Processo Civil, e só nesse caso disporia de personalidade judiciária, ou seja, constituiria uma pessoa meramente judiciária, ainda que desprovida de personalidade jurídica.

Portanto, da concatenação, dos dois textos legais verifica-se que se procedeu à substituição da expressão “herança cujo titular ainda não esteja determinado” pelo sinónimo “herança jacente” estatuído no artigo 2046.º do Código Civil e aditou-se à expressão “patrimónios autónomos semelhantes” a expressão “cujo titular não estiver determinado”.
Como razão justificativa desta alteração da letra da lei refere J. LEBRE de FREITAS, “ Código de Processo Civil Anotado ”, I volume, 1999, pág. 20, que se «entendeu que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050º do do Código Civil), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante.» (sublinhado nosso)
Nesse sentido, milita, ainda (ao contrário do que parece sustentar a apelante, numa aparente errónea leitura do texto do Autor por si citado), MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ As Partes, o Objecto e a Prova na Accção Declarativa ”, Lex, 1995, pág. 18, quando refere que mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (arts. 2068º e 2071º do Cód. Civil), «sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe [ao dito património autónomo] ser atribuída personalidade judiciária.» Vide, ainda, no mesmo sentido, após os citados DL n.º 329-A/95 e DL n.º 180/96, CARLOS LOPES do REGO, “ Comentários ao Código de Processo Civil “, 1999, pág. 32.

Resulta, assim do exposto que a lei só atribui personalidade judiciária à herança jacente que, como se referiu, não se confunde com herança por partilhar ou indivisa, pelo que, no caso que nos ocupa, só se a herança aberta por óbito de Arminda Oliveira, puder ser considerada como herança jacente pode ela ser parte na presente acção por gozar então de personalidade judiciária.


É que, ao contrário do parece sugerir ou confundir a apelante nas suas alegações e conclusões recursivas, a parte nos autos não são os herdeiros (António e Manuela), a título próprio ou como herdeiros da falecida Arminda, mas a própria HERANÇA ILÍQUIDA e INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE B., representada pelo seu cônjuge sobrevivo (o dito C.) e pela sua filha (D.), sendo certo, ainda, que os próprios pedidos formulados a final são formulados a favor e no interesse da dita Autora, HERANÇA, incluindo os pedidos indemnizatórios (por danos patrimoniais e não patrimoniais), embora, quanto a estes últimos, «a favor de seus herdeiros, aqueles C. e D.».

Aliás, tanto assim é que, nas próprias alegações recursivas a apelante não deixa de afirmar que a parte é a aludida HERANÇA e que a mesma (HERANÇA), ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, dispõe de personalidade judiciária, podendo, por inerência, ser parte (Autora, no caso em apreço).

De facto, se é certo que o direito não é uma ciência exacta (antes uma ciência social), os seus conceitos estão devidamente assimilados e sedimentados pela doutrina e pela jurisprudência, e, portanto, não podem (nem devem) ser usados de forma confusa, vaga ou genérica, antes de forma precisa. Aliás, assim o impõem o rigor doutrinal, mas, ainda, os próprios princípios da boa-fé e lealdade processual.



Assim, o que se dirá a seguir parte do pressuposto, claro e linear, à luz da petição inicial e dos pedidos formulados a final, que a parte nos presentes autos é a sobredita HERANÇA e não os seus herdeiros, em tal qualidade, ou a título próprio, ou o cabeça-de-casal.

Nos termos do artigo 2046.º do Cód. Civil “ Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado ”.
Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado (artigo 2132.º do Cód. Civil), a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações.
Todavia, esta personificação judiciária pode não a acompanhar até à partilha, cessando, como se referiu, com a aceitação por parte dos sucessores, efectuada nos termos previstos nos artigos 2050.º e segs. do Cód. Civil.
Claro que sempre se poderia questionar se apenas nestas situações, de jacência da herança, esta goza de personalidade judiciária, isto é, se não assistirá àquela, na fase de indivisão até à partilha, em que a mesma permanece, distinta do património dos herdeiros, e afecta a um fim próprio, a personificação judiciária que dispunha antes da respectiva aceitação por aqueles e, portanto, a possibilidade de ser parte processual activa e passiva em processo civil.
Nesse sentido se pronunciava A. VARELA, op. cit., pág. 111, nota 1, defendendo, por aplicação analógica do disposto art. 6º, a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa, estando em curso inventário judicial, com a consequência de as acções tendentes a defender/ atingir interesses do património hereditário terem de ser intentadas em nome ou contra a herança. Vide, neste sentido, AC RP de 20.02.1995, CJ, tomo 1, pág. 222.

Cremos, não obstante, a pena autorizada daquele Ilustre Professor que assim não será.
Com efeito, cessando a situação de jacência, como supra se referiu, com a aceitação do chamamento por parte do sucessível ou sucessíveis, pode mesmo assim a herança continuar indivisa, não partilhada e, portanto, sem se verificar a definitiva confusão ou integração dos bens dela componentes no património do ou dos herdeiros, restringindo a personalidade judiciária, nos termos do art. 6º, à herança que, se bem que impartilhada, se mostre ainda não aceite - herança jacente. Vide, neste sentido, além de J. LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 20, M. TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 18-19, C. LOPES DO REGO, op. cit., pág. 32, A. ABRANTES GERALDES, “ Personalidade Judiciária ”, CEJ, 1997, pág. 6 e segs… e a inúmera jurisprudência invocada nesta última obra.
De facto, como salienta, de forma claríssima, C. LOPES do REGO, op. cit., pág. 32, por via da alteração legislativa (DL n.º 329-A/95 de DL n.º 108/96) ao art. 6º do anterior Código de Processo Civil [que foi transposto para o actual art. 12ºa, al. a)], «afastou-se a maior amplitude da personalidade judiciária da herança que constava do n.º 3 do art. 61º do Ant. 1993 [a acima denominada Comissão Varela], onde se atribuía personalidade à “ herança ainda não partilhada ou cujo titular ainda não esteja determinado ”: na verdade, se já correu a aceitação da herança, o contraditório deve estabelecer-se necessariamente com os herdeiros que já a aceitaram, apesar de ainda se não ter procedido à respectiva liquidação e partilha, sem prejuízo dos casos excepcionais em que a lei substantiva atribui poderes de administração – e, portanto, de representação em juízo – ao cabeça-de-casal.» (sublinhado nosso)

Como assim, a herança indivisa ou não partilhada apenas enquanto se mantiver na situação de jacente goza de personalidade judiciária, passando a […] partir da cessação daquela situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar ou ser demandada.
Portanto, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê.
Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091,º, nº 1, do Cód. Civil, no qual se estatui que : “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. ”
Ou seja, fora dos casos excepcionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do mesmo diploma (e que no caso se não aplicam, pois que nenhum deles é a parte nos presentes autos), as acções com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo – cfr. art. 33º, n.º 1 do CPC. Vide, neste sentido, inter alia, AC RP de 19.05.2010, relator Des. SILVIA PIRES, in www.dgsi.pt.
Trata-se, portanto, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa.

Destarte, estando os herdeiros já determinados e tendo os mesmos aceite a herança – e tocado, assim, o período de pendência da herança, portanto, o termo da herança jacente –, tornando-se inviável a essa massa patrimonial por si demandar ou contradizer, por falta de personalidade judiciária, necessário se torna que no lugar dela intervenham os respectivos titulares em bloco, seja, os ditos herdeiros que, mediante o competente acto de aceitação, nela se viram encabeçados.

Decorre, assim, do exposto, que o relevante, para efeitos de aferição da personalidade judiciária da Herança Autora, é saber, por um lado, se os seus herdeiros se encontram determinados e, ainda, se aceitaram eles a herança, pois que, assim sucedendo, será, a nosso ver, manifesto que a dita Herança (não sendo jacente) não dispõe de personalidade judiciária.
Vejamos.
Que os herdeiros se encontram determinados não existem quaisquer dúvidas pois que assim se intitulam e arrogam (como únicos e universais herdeiros) os aludidos C. e D., o que, ainda, se mostra confirmado pela escritura de habilitação de herdeiros a fls. 105-107 dos autos.
E a nosso ver, é patente, ainda, que os mesmos herdeiros aceitaram a dita herança.
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita – art. 2056º, n.º 1 do Cód. Civil.
A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma […]exigida para a alienação da herança – cfr. arts. 2056º e 2063º, «a contrario sensu», e 2061º, todos do Cód. Civil.
A distinção entre a declaração expressa ou tácita tem a ver com a natureza directa ou indirecta da declaração.
Em função deste critério, ensinava MANUEL de ANDRADE, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, 1987, II volume, pág. 129-134, que “ ser expressa a declaração que se destina unicamente ou em primeira linha a exteriorizar certa vontade negocial (declaração directa ou imediata); e tácita a que se destina unicamente ou em via principal a outro fim, mas «a latere» permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial (declaração indirecta ou mediata).”
E, ainda, “ na declaração tácita o comportamento declarativo não aparece como visando directamente a exteriorização da vontade que se considera declarada por essa forma…
Apenas dele se infere que o declarante, em via mediata, oblíqua, lateral, quis também exteriorizar uma tal vontade – ou pelo menos teve consciência disso. Costuma falar-se, a este propósito, em procedimento concludente, em factos concludentes (facta concludentia : facta ex quibus voluntas concludi potest), acrescentando-se que tais factos devem ser inequívocos.»
O art. 2056º, n.º 2 do Cód. Civil define apenas a aceitação expressa.
Já quanto à aceitação tácita deixa o nosso Código ao intérprete a integração do conceito.
No entanto, conforme resulta da lição antes exposta, será de considerar aceitação tácita da herança aquela que se deduz de factos que, com toda a […]probabilidade, a revelem ou que não poderiam ser praticados senão nesse pressuposto (a aceitação), embora se excluam os actos de administração praticados pelo sucessível (art. 2056º, n.º 3 do Cód. Civil), na medida em que estes podem traduzir o cuidado em acautelar ou defender os bens da herança, sem significarem a defesa de um direito próprio.
No caso dos autos, como já se referiu, os herdeiros em apreço declararam, não só, expressamente a aceitação da herança (vide requerimento a fls. 104 verso dos mesmos), como, ainda, a propositura da presente acção e os seus termos constituem a demonstração (tácita) inequívoca dessa aceitação.
Desta forma, dúvidas não existem, a nosso ver, que a HERANÇA Autora não é jacente e, em razão disso, face ao antes exposto, não dispõe de personalidade judiciária. Vide, neste sentido, e cuja lição aqui se segue, AC RP de 9.06.2009, relator Des. Cândido Lemos, AC RP de 13.12.2011, relator Des. JOÃO RAMOS LOPES e AC RP de 19.10.2015, relator Des. MANUEL DOMINGOS FERNANDES, ambos in www.dgsi.pt.
E assim sendo, constituindo a aludida falta de personalidade judiciária, excepção dilatória insuprível (vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “ Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, 4ª edição, pág. 60, AC RP de 9.06.2009 e AC RP de 13.12.2011, ambos já citados), nenhuma censura merece a decisão proferida pelo tribunal a quo, que é, pelo exposto, de manter.

Uma última palavra, ainda que breve, se nos impõe quanto à questão de na providência cautelar apensa não ter sido conhecida ou afirmada a dita excepção.

Com o devido respeito, a decisão da providência cautelar jamais constituiria precedente que inviabilizaria o conhecimento da excepção em apreço no âmbito da acção principal, sendo certo que, como é consabido, esta excepção é de conhecimento oficioso – cfr. arts. 577º, al. c)- e 578º do CPC.
Aliás, a apelante não refere qual o fundamento legal desta sua tese.
Mas mais; Se, como é indiscutido e expresso, o julgamento da matéria de facto e a própria decisão final proferida no procedimento cautelar, não têm qualquer influência no julgamento da acção principal (cfr. art. 364º, n.º 4 do CPC), por maioria de razão, o poderia ter uma decisão de índole processual/adjectiva, como a que ora se discute, sendo certo, ademais (e a apelante e a sua Il. Mandatária não o pode ignorar…!), que a parte que instaurou aquela providência apensa nem sequer é a mesma que instaurou a presente acção.
O que conduz, de forma evidente, à improcedência da questão suscitada.
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III. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando o despacho recorrido.
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Custas pela apelante, que ficou vencida.
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Guimarães, 2.06.2016
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Sumário:

1. A herança indivisa ou não partilhada não se confunde com a herança jacente, pois que esta supõe que se mantenha uma situação de indeterminação dos herdeiros ou de não aceitação da herança.

2. A herança indivisa e não partilhada apenas goza de personalidade judiciária enquanto se mantiver na situação (tendencialmente transitória) de jacente.

3. A partir da cessação desta situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, passa a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar e ser demandada.

4. Existindo elementos seguros que demonstrem que a herança foi aceite pelos sucessíveis chamados, deve ser julgada procedente a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança.

5. Esta excepção dilatória importa a absolvição da instância e não consente suprimento.
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Jorge Miguel Pinto de Seabra
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Dr. José Fernando Cardoso Amaral
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Drª Helena Gomes de Melo