Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2603/08.6TBFLG-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: MÚTUO
NULIDADE DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
JUROS REMUNERATÓRIOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 - O mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade de um contrato com fundamento na falta de entrega de cópia do contrato ou de falta de comunicação e explicitação de cláusulas, 7 anos após a outorga do mesmo, quando já procedeu ao pagamento de 34 prestações, num universo de 72 e usufruiu do veículo adquirido com recurso ao mútuo, durante 3 anos e meio, tendo-o posteriormente entregue à mutuante para abatimento na quantia em dívida.
2 - A obrigação de juros remuneratórios só perdura enquanto não houver vencimento antecipado das prestações vincendas e exigibilidade da dívida correspondente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
Por apenso à execução comum que lhes move “S…, SA”, vieram os executados A…, M… e T… deduzir oposição pedindo que se declare a nulidade do contrato de crédito, ou a invalidade das suas cláusulas e, nessa medida, considere o montante titulado pelo mesmo inoponível e inexigível aos executados e, para o caso de assim não se entender, que se declare a inexigibilidade da alegada dívida por violação do dever de boa fé na formação e cumprimento das obrigações, que se declare a inexigibilidade da quantia exequenda no que respeita aos juros remuneratórios liquidados juntamente com o capital alegadamente em dívida pela exequente e que se ordene a redução da quantia exequenda ao montante que se apurar em dívida, descontando-lhe o valor de € 10.000,00 relativo à entrega da viatura e a quantia de € 8578,88 relativa às prestações pagas.
Admitida liminarmente a oposição, com suspensão da execução, veio a exequente contestar, pugnando pela improcedência da oposição à execução.
Foi proferido despacho saneador e definida a matéria de facto assente e a base instrutória, com reclamação dos executados, desatendida. Já em audiência de julgamento, o tribunal decidiu ampliar a base instrutória através da formulação de quatro novos quesitos.
Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a oposição à execução procedente, declarando nulo o contrato de crédito que fundamentou o preenchimento da livrança apresentada à execução como título executivo e julgou extinta a execução.
Discordando da sentença, dela recorreu a exequente, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:
A. Tendo em consideração os factos dados como assentes, designadamente nos pontos b], d], e) e i) e, bem assim, o que consta do Auto de entrega a fls ... junto aos autos com a contestação como documento nº 8 importa concluir que constam dos autos factos mais do que suficientes para concluir que a alegação dos oponentes de nulidade do contrato é feita com abuso de direito;
B. Os Recorridos sempre assumiram e reconheceram, em especial em momento posterior à celebração, perante a recorrente a validade do contrato, em especial porque i) pagaram 34 (trinta e quatro) prestações do contrato; ii) usufruíram o veículo durante mais de quatro anos, iii} reconheceram a resolução do contrato e iv} entregaram o veículo para amortizar a dívida;
C. Não é legítimo aos Recorridos virem invocar um comando legal que tem como finalidade unicamente acautelar que a parte contratante tenha efectivo conhecimento do acordo que está a celebrar;
D. Deve pois em face de tudo quanto foi alegado ser julgada procedente a excepção de abuso de direito na modalidade de «ventre contra factum proprium», o que se requer. Ao não tê-lo feito o Tribunal a quo violou o estabelecido no artigo 334.º do CC;
Nestes termos e nos melhores de direito deve a sentença ser revogada e substituída por outra que julgue procedente a excepção de abuso de direito e julgue improcedente a oposição à execução prosseguindo a mesma os seus ulteriores trâmites até final.

Contra alegaram os executados, pugnando pela confirmação da decisão proferida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver traduz-se em saber se ocorre abuso de direito e, em caso afirmativo, conhecer do pedido subsidiário formulado.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
a) A Exequente/oposta apresentou à execução a que estes autos correm por apenso a Livrança n.º 500166773031154026, com o local de emissão aposto Lisboa, com a data de emissão aposta de 17/08/2008, com o valor aposto de € 9.742,92, com a data de vencimento aposta de 09/06/2008, subscrita pelo Executado A… e, da qual constam na qualidade de avalistas T… e M… (Facto Assente A)).
b) A Exequente/oposta preencheu a livrança identificada em A), com fundamento no documento denominado “contrato de crédito n.º 504856”, do qual consta como mutuante A… com a morada em…, Felgueiras e como mutuária a Exequente/oposta, do qual constam as seguintes “CONDIÇÕES PARTICULARES - Fornecedor do bem: R…, Lda. - Descrição do bem: Viatura ligeira, Marca SEAT, Modelo Ibiza Van Diesel, Matrícula…. - Valor do bem: 11,600.00 EUR - Entrada Inicial: 0.00 EUR - Montante do Crédito: 11,600.00 EUR - Encargos Administrativos e Fiscais: 269.60 EUR (Inclui imposto selo sobre o mútuo e selagem do contrato). - Taxa Nominal: 11.26% - TAEG: 13.95% - Número de Prestações: 72 - Periodicidade e Vencimento: Mensal Postecipadas, com início em 08 Março de 2004 - Montante das Prestações: 72 Prestações de 226.54 EUR - Portes: o valor de cada prestação inclui 1,49 EUR de portes. Quantia sujeita a alteração, de acordo com o previsto na tabela afixada na sede da S…, disponível para consulta. - Total do Financiamento e Encargos: 16,473.20 EUR - Garantias: Livrança em branco Subscrita p/ Cliente(s), Aval e reserva Propriedade - Custo das Garantias: Imposto de selo à taxa legal em vigor. AVALISTAS Eu(nós) abaixo assinado(s), declaro(amos) ser avalista(s) do cliente(s) deste empréstimo e de ter sido informado por este(s) do montante da dívida a contrair, bem como das cláusulas deste Contrato, que declaro conhecer e aceitar, avalizando, para o efeito, a Livrança de Caução em branco anexa ao contrato, podendo a Sofinloc, proceder à cobrança dos montantes em dívida e à execução cambiária no caso de incumprimento, para o que expressamente dou o meu acordo a que a Sofinloc a preencha, designadamente no que refere a data de vencimento, local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo cliente(s) perante a Sofinloc, por força do presente contrato, e em dívida na data de vencimento, acrescidos de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos” (Facto Assente B)).
c) Após os dizeres referidos em B), o contrato aí identificado mostra-se assinado pelos avalistas – Executados T… e M… – com a morada em…, Felgueiras; e pelo Executado A… (Facto Assente C)).
d) Das prestações referidas em B), foram pagas, pelo menos, 34 prestações (Facto Assente D)).
e) No dia 31/08/2007, o Executado/oponente A… entregou o veículo automóvel identificado em B) à Exequente/oposta (Facto E)).
f) Com a data de 17/05/2008, a Exequente/oposta escreveu a missiva dirigida
ao Executado/oponente “A…
(…)
Exmos. Senhores,
Na sequência do incumprimento definitivo do contrato supra referido e em virtude de permanecerem valores em dívida, vimos por este meio informar que completámos nesta data o preenchimento da livrança subscrita por V.Exa(s), e avalizada por M…, T…, que nos fora entregue em branco para garantia de todas as responsabilidades decorrentes do referido contrato. Mais informa-mos, que o valor da livrança é de EUR 9,742.92 e o seu vencimento ocorrerá aos 09-06-2008, data até à qual nos deverá ser paga, nos nossos escritórios e às horas de expediente, sob pena de imediata execução judicial (…)” (Facto Assente F)).
g) Com a data de 17/05/2008, a Exequente/oposta escreveu a missiva dirigida
à Executada/oponente “M…
(…)
Exmos. Senhores,
Na sequência do incumprimento definitivo do contrato supra referido e em virtude de permanecerem valores em dívida, vimos por este meio informar que completámos nesta data o preenchimento da livrança avalizada por V.Exa(s), e subscrita por A…, que nos fora entregue em branco para garantia de todas as responsabilidades decorrentes do referido contrato. Mais informa-mos, que o valor da livrança é de EUR 9,742.92 e o seu vencimento ocorrerá aos 09-06-2008, data até à qual nos deverá ser paga, nos nossos escritórios e às horas de expediente, sob pena de imediata execução judicial (…)” (Facto Assente G)).
h) Com a data de 17/05/2008, a Exequente/oposta escreveu a missiva dirigida
ao Executado/oponente “T…
(…)
Exmos. Senhores,
Na sequência do incumprimento definitivo do contrato supra referido e em virtude de permanecerem valores em dívida, vimos por este meio informar que completámos nesta data o preenchimento da livrança avalizada por V.Exa(s), e subscrita por A…, que nos fora entregue em branco para garantia de todas as responsabilidades decorrentes do referido contrato. Mais informa-mos, que o valor da livrança é de EUR 9,742.92 e o seu vencimento ocorrerá aos 09-06-2008, data até à qual nos deverá ser paga, nos nossos escritórios e às horas de expediente, sob pena de imediata execução judicial (…)” (Facto H)).
i) Na data referida em E), a Exequente/oposta e o Executado/oponente acordaram que a entrega do veículo automóvel identificado em B), tinha o objectivo daquela o vender e o preço alcançado seria deduzido ao remanescente do devido em B) (resposta ao artigo 3.º da base instrutória).
j) O veículo identificado em B), foi vendido pela Exequente/oposta pelo preço de € 750,00 a uma sucateira para peças (resposta ao artigo 4.º da base instrutória).
k) As missivas referidas em F), G) e H), foram enviadas pela Exequente/oposta aos Executados/oponentes para a morada…, Felgueiras (resposta ao artigo 5.º da base instrutória).

A questão suscitada pela apelante nas suas alegações de recurso prende-se, exclusivamente, com o abuso de direito.
Tal questão, embora os factos constem da contestação, não foi expressamente colocada pelo exequente, em 1.ª instância, mas foi abordada na sentença recorrida.
De qualquer forma, destinando-se os recursos ordinários a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas, circunscrevendo-se às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, poderá sempre fazê-lo sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou de se apreciarem questões de conhecimento oficioso, como a inconstitucionalidade de normas, a nulidade dos contratos, o abuso de direito ou a caducidade em matéria de direitos indisponíveis, relativamente às quais existam nos autos elementos de facto – cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 3.ª edição revista e atualizada, 2010, pág. 26.

A questão é controvertida.
Enquanto alguns defendem a posição que o mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade de um contrato com fundamento na falta de entrega de cópia do contrato ou de falta de comunicação e explicitação de cláusulas, quando já procedeu ao pagamento de várias prestações, outros defendem que, atenta a regra de proteção do consumidor que subjaz às relações de consumo, não age em abuso de direito o mutuário que invoca a nulidade do mútuo por falta de entrega de exemplar do contrato no momento da sua assinatura, mesmo que tal aconteça já depois de ter cumprido parcialmente o contrato.
Na jurisprudência, defendendo a primeira tese, encontramos os acórdãos da Relação do Porto de 14/11/2011 e de 28/03/2012, da Relação de Coimbra de 12/02/2008, bem como os acórdãos da Relação de Guimarães de 12/11/2013 e de 27/10/2011, enquanto que, defendendo a segunda posição, encontrámos o acórdão da Relação de Guimarães de 25/05/2012, citado na sentença sob recurso e todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso dos autos, para além de terem obtido resposta de “não provado” os quesitos referentes à entrega da cópia do contrato aquando da sua celebração e da comunicação e explicação aos executados das cláusulas do mesmo, deu-se como provado que, do montante total de 72 prestações mensais, o executado procedeu ao pagamento de 34 prestações e que procedeu à entrega da viatura objeto do contrato à exequente, em 31/08/2007, ou seja 3 anos e seis meses após a referida viatura lhe ter sido disponibilizada, sendo que a entrega da mesma teve como objetivo a sua venda pela exequente para que o preço alcançado fosse deduzido ao remanescente do devido pelo executado.
Ora bem, antes do mais convirá dizer, como bem se chama a atenção no Acórdão do STJ de 20/03/2012, proferido no processo n.º 1557/05.5TBPTL.L1, e acessível em www.dgsi.pt, que, o compreensível regime proteccionista e de favor que enforma o DL nº 446/85, de 25/10, “não dispensa o consumidor de uma conduta diligente, zelosa e cuidada, que a boa fé aconselha e exige, como também não onera o promotor das cláusulas de adesão com incumbências de tutela sobre o mesmo consumidor que o resguardem de negligência ou descuido“.
Convirá, portanto, perguntar, no concreto condicionalismo dos autos, se a arguição da nulidade do contrato por falta de entrega de duplicado constitui um ilegítimo e abusivo exercício do direito pelo Recorrido/apelado.
O entendimento seguido na sentença sob recurso vai no sentido da resposta negativa a tal questão.
Tal entendimento, a nosso ver – e seguimos aqui de perto o já subscrito no Acórdão desta Relação de 12/11/2013, proferido no processo n.º 1939/10.0TBFAF-A.G1, em que foi relator António Santos e adjunta a aqui relatora (disponível em www.dgsi.pt) -, e com todo o respeito, peca por algum “facilitismo”, apenas compreensível/aceitável à luz de uma exacerbada protecção do consumidor/aderente, e não obstante sobre o mesmo recair, recorda-se, o dever de manter uma conduta diligente e pautada pela observância dos mais elementares princípios da boa-fé que sobre todos os contraentes impendem, não esquecendo a necessidade da sua autodeterminação e autoresponsabilidade.
Ora, com referência a tal matéria, é hoje praticamente unânime o entendimento de que nada obsta a que o financiador se socorra do instituto do abuso do direito para, através dele, se paralisar os efeitos da invocação pelo consumidor da nulidade formal do contrato de crédito ao consumo, sendo v.g. e em rigor “ legitima a pretensão do financiador que sustenta que a arguição da nulidade formal ou procedimental pelo consumidor configura um venire contra factum proprium já que o direito está a ser exercido em contradição com a sua conduta anterior (por exemplo o pagamento das prestações do mútuo durante um longo período)”. - Cfr. Fernando de Gravato Morais, in “Os Contratos de Crédito Ao Consumo”, Almedina, págs. 108 e segs.
No essencial, e continuando a citar o Acórdão de 12/11/2013, socorre-se a doutrina e a jurisprudência da concretização do “venire contra factum proprium” nas inalegabilidade de vícios formais, caracterizando-se então o comportamento do consumidor pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, ou seja, como ensina o Prof. Menezes Cordeiro (In Da Boa Fé no Direito Civil, Vol. II, 742 e segs), em causa estão então dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo, sendo que o primeiro - o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.
Para tanto e ainda segundo o mesmo Professor - cfr. citação - que se transcreve - inserta no Ac. do STJ de 7/7/2009, Proc. nº 369/09.01YFLSB , in www.dgsi.pt o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”
Ora, como vimos já, o título executivo é uma livrança que entronca a respetiva justificação em contrato de financiamento para aquisição a crédito – aquele cuja nulidade é invocada pelo consumidor – datado de fevereiro de 2004, assinado pelo oponente (ainda que sem entrega de cópia, nem explicação das diversas cláusulas), obrigando-se o apelado ao pagamento à apelante de 72 prestações mensais de € 226,54 cada uma, das quais o executado pagou 34, tendo ficado em dívida parte da prestação de janeiro de 2007 e todas as seguintes, tendo o executado entregue, em 31/08/2007, o veículo automóvel, após cartas da exequente relembrando o incumprimento e aludindo ao preenchimento da livrança pelos valores em dívida, para que o mesmo fosse vendido e o preço alcançado deduzido ao remanescente do devido.
Tendo sido instaurada a execução pela ora apelante, é em fevereiro de 2011 (cerca de 7 anos após a outorga do contrato de crédito), já no âmbito obviamente da cobrança coerciva do título de crédito dado à execução, é que vem o apelado invocar a nulidade do contrato, pretendendo através da arguição do referido vício obstar ao pagamento da livrança.
Parece, assim, evidente que, não pode de todo a conduta do apelado, por acção e omissão, deixado de ter suscitado, criado e alimentado junto da apelante, a manutenção de uma efectiva expectativa e sã confiança de que nada obstava à validade do contrato de crédito, maxime não enfermava ele de todo de quaisquer vícios que gerassem a respectiva nulidade.
Vir agora, em sede de oposição à execução, suscitar pela primeira vez a nulidade do contrato, cerca de 7 anos após a sua outorga, e após o seu cumprimento efectivo no decurso dos três primeiros anos da sua vigência, configura em rigor o exercício ilegítimo de um direito, excedendo o apelado, e manifestamente, os limites impostos pela boa fé e pelo fim social e/ou económico do direito, o que tudo preenche o conceito previsto no art. 334º do Código Civil – neste sentido, também, o Acórdão da Relação de Guimarães de 27/10/2011, proferido no processo n.º 693/10.0TBBRG-A.G1 (relatado por Amílcar Andrade), disponível em www.dgsi.pt.
Reconhecendo-se, assim, o abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CC, tal conduz à paralização dos efeitos decorrentes da nulidade do contrato e, consequentemente, à procedência da apelação, com o prosseguimento da execução.

Cabe, no entanto, averiguar, ainda, do correto preenchimento da livrança, uma vez que, soçobrado o pedido principal da oposição à execução, ter-se-á que tomar conhecimento dos pedidos subsidiários, não conhecidos em primeira instância, face à procedência do principal.
Vejamos, então.
No caso dos autos, o credor, em face do não pagamento de 6 prestações, considerou antecipadamente vencidas todas as prestações em dívida, exigindo o cumprimento imediato – artigo 781.º do Código Civil e cláusula 7.ª, alínea b) do contrato celebrado entre as partes
Ora, sabendo-se que os juros remuneratórios têm uma finalidade remuneratória correspondente ao prazo do empréstimo do dinheiro pelo tempo que o credor se priva do capital por o ter cedido ao devedor por meio de mútuo, exigindo uma remuneração por essa cedência, então, a obrigação de juros remuneratórios só deve perdurar enquanto não houver vencimento antecipado das prestações vincendas e exigibilidade da dívida correspondente.
É a jurisprudência que resulta do Acórdão Uniformizador n.º 7/2009, de 25/03/2009, in DR, 1.ª Série, n.º 86, de 05/05/2009, onde se pode ler: “O autor mutuante, ao ter provocado o vencimento da totalidade das prestações em falta, tornando exigível (o restante) capital em falta, não poderá exigir os juros remuneratórios englobados nas prestações vincendas. Somente poderá exigir o capital mutuado e os juros remuneratórios incluídos nas prestações vencidas. Ou seja, vencida a obrigação de capital, deixa de haver lugar a remuneração pela indisponibilidade do mesmo capital”.

Assim, o montante em dívida terá que ser reduzido em conformidade, devendo a quantia exequenda resultar da soma das seguintes parcelas:
- 7 prestações vencidas e não pagas: € 1748,19
- juros de mora respetivos: € 243,34
- imposto de selo sobre os juros: € 9,71
- 31 prestações vencidas antecipadamente: € 5.110,52 (resultante da divisão do capital - € 11.600,00 + € 269.60 - por 72 e multiplicação por 31)
- despesas: € 698,32
- selagem do título: a calcular face ao valor obtido
- venda do veículo: - € 750,00
O que perfaz um total de € 7.060,08, como valor da livrança, a que acrescem os juros de mora vencidos desde 09/06/2008 (data de vencimento da livrança).

Do que fica dito, resulta a procedência da apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que julgue parcialmente procedente a oposição, ordenando o prosseguimento da execução, mas apenas pelo montante de € 7.060,08 (a que há que somar o valor da selagem do título), acrescido de juros de mora vencidos desde 09/06/2008.

Sumário:
1 - O mutuário/comprador age em abuso de direito quando invoca a nulidade de um contrato com fundamento na falta de entrega de cópia do contrato ou de falta de comunicação e explicitação de cláusulas, 7 anos após a outorga do mesmo, quando já procedeu ao pagamento de 34 prestações, num universo de 72 e usufruiu do veículo adquirido com recurso ao mútuo, durante 3 anos e meio, tendo-o posteriormente entregue à mutuante para abatimento na quantia em dívida.
2 - A obrigação de juros remuneratórios só perdura enquanto não houver vencimento antecipado das prestações vincendas e exigibilidade da dívida correspondente.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra que julga parcialmente procedente a oposição – quanto ao pedido subsidiário não conhecido em 1.ª instância – ordenando a prossecução da execução, mas apenas pelo valor de € 7.060,08, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, desde 09/06/2008.
Custas, aqui e na 1.ª instância, na proporção do decaimento.
***
Guimarães, 30 de janeiro de 2014
Ana Cristina Duarte
Maria Purificação Carvalho (referindo apenas que, ao contrário do que ocorre neste processo, no Acórdão relatado por mim, com data de 25.05.2012, não se provou que tenha sido a executada a efetuar pagamentos parciais)
Espinheira Baltar