Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
414/13.6TBVVD.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DIREITOS REAIS
NULIDADE DE SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – Verifica-se a nulidade da sentença prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduzem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
II - Não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.
III - Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
IV - A nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente.
V – Nos documentos particulares, apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; nas relações com terceiros, essa declaração somente valerá como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal, tal como sucede relativamente à confissão extrajudicial (cfr. nºs 2 e 4 do art. 358º do Código Civil).
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
AA e mulher, BB, instauraram a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra CC e marido DD, pedindo que os réus sejam condenados:
a) a reconhecerem que os autores são donos e legítimos proprietários do prédio identificado nos artigos 1º e 2º da petição inicial e, subsidiariamente, a reconhecerem que os autores são donos e possuidores do aludido prédio por via da usucapião;
b) a reconhecerem que os autores são donos e legítimos possuidores, na proporção de metade, da água identificada nos artigos 15º a 35º da petição inicial, declarando-se que o referido direito foi constituído por usucapião;
c) a respeitar o consignado no documento nº 4 assinado notarialmente pelos antepossuidores de autores e réus, no que respeita aos usos e costumes da fruição da nascente da água;
d) a nada fazerem que impeça, perturbe ou dificulte o acesso dos autores à referida metade da água;
e) a pagar aos autores a quantia de € 5.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento;
f) a pagar aos autores uma indemnização de perdas e danos a liquidar em “execução de sentença”.
Para fundamentar a sua pretensão, os autores alegaram, em síntese, a aquisição derivada e a usucapião para justificar a titularidade do prédio misto sito no lugar de Outeiro, freguesia de Carreiras de São Miguel, Vila Verde, aqui reivindicado, sendo os réus, por sua vez, proprietários do prédio rústico sito no mesmo lugar do Outeiro, o qual adveio à respectiva titularidade através de adjudicação em processo especial de divisão de coisa comum. Afirmam que o seu prédio é desde há mais de 50 anos abastecido por uma fonte de água de nascente explorada no extremo da Leira do Cortelho, integrado no prédio dos autores, água essa que foi explorada pelos antepossuidores dos prédios dos autores e dos réus, sendo que em 1955, o pai do autor e o pai da ré mulher reduziram a escrito num documento com reconhecimento de assinaturas notarial, os termos da exploração conjunta da referida água, tendo declarado que tanto a água ali explorada como a da fonte, ficariam a pertencer em comum a ambos, sucedendo que os réus, aproveitando a circunstância dos autores residirem na freguesia vizinha e de estes trabalharem em outras profissões que não a agricultura, procederam a obras de encaminhamento da água da fonte exclusivamente para o seu prédio, retirando e destruindo as obras que o pai do autor e o pai da ré mulher fizeram a expensas de ambos para encaminharem a água da fonte para o interior dos respectivos prédios, privando os autores da fruição daquela água, o que lhes causou vários prejuízos de que se querem ver ressarcidos.
Os réus contestaram, contrapondo que a água da nascente nunca se encontrou encaminhada para o prédio dos réus, sempre existindo um único encaminhamento para o prédio dos réus, sucedendo que no ano de 2001 a Câmara Municipal de Vila Verde decidiu refazer o muro que suporta a estrada municipal nº 539, o qual foi refeito transversalmente ao encaminhamento subterrâneo da água em causa, tendo o prédio dos réus aluído, o que provocou um enorme buraco, tendo ficado a descoberto o encaminhamento da água, o que levou a que fosse feita uma obra de recuperação no local a expensas da Câmara Municipal de Vila Verde, que também tomou todas as decisões sobre o material a aplicar na obra: Mais negam que a realização de tais obras tenha causado danos aos autores.
Em reconvenção pediram a condenação dos autores a reconhecerem que os réus são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, da água encaminhada para a extrema poente do seu prédio.
Houve resposta, concluindo os autores como na petição inicial e pela improcedência do pedido reconvencional.
Foi proferido despacho saneador tabelar, dispensando-se a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em cujo dispositivo se consignou:
«Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, parcialmente procedente sendo, por outro lado, julgada totalmente procedente a reconvenção deduzida e, em consequência, decide:
a) Condenar os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio id. no artº 1º da p.i.;
b) Absolver os RR. do demais contra si peticionado;
c) Declarar os RR./reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12º da p.i..
d) Condenar os AA./reconvindos a absterem-se de praticar qualquer acto perturbador do direito referido em d).
Custas a cargo de AA. e RR., na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 3/4 e 1/4.»
Inconformados com o assim decidido, apelaram os autores, tendo culminado a respectiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«A) Os recorrentes não se podem conformar com a sentença proferida pelo Tribunal recorrido que julgou parcialmente procedente a demanda sendo, por outro lado, julgada totalmente procedente a reconvenção deduzida nos seguintes termos: Condenar os RR. a reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio id. No art° 1° da p.i.; Absolver os RR. do demais contra si peticionado; Declarar os RR./reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12° da p.i.. Condenar os AA./reconvindos a absterem-se de praticar qualquer acto perturbador do direito referido em d).
B) Apesar da aparente clareza dessa decisão e sem quebra do respeito devido, que aliás é muito, têm os ora Apelantes como certo que o Tribunal a quo não apreciou, nem valorou corretamente a totalidade da prova produzida com relevo para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, nem fez correta interpretação aplicação do Direito ao caso sub judice.
C) Em primeiro lugar, os recorrentes entendem que, desde logo, que a douta sentença proferida pelo Tribunal é nula ao julgar os RR./reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12° da p.i., quando no facto provado em 7 resulta que, passa-se a citar: O descrito em 6 tem vindo a ser feito pelos RR., por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva agua lhes pertence, na proporção de metade.
D) Ao ter-se dado como provado - facto 7 - que os Rr/Reconvintes apenas na proporção de metade detêm o direito à água, não podia a douta sentença Declarar os RR./reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. Em 12° da p.i..
E) Quanto muito, deveria o Tribunal a quo declarar os Rr/Reconvintes donos e legítimos possuidores de metade da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12° da p.i..
F) Ora, nos termos do artigo 668.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
G) Sendo que, de acordo com a factualidade dada como provada e a respectiva fundamentação, o resultado lógico seria ter sido julgado procedente o reconhecimento do direito de propriedade quer dos AA, quer dos RR/Reconvintes, na proporção de metade cada, da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12° da p.i. e não apenas dos RR/Reconvintes.
H) Pelo que, com o devido respeito, que é muito, a decisão recorrida é nula nos termos do disposto no artigo 668.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, pois os próprios fundamentos invocados pela Meritíssima Juiz a quo deveriam logicamente conduzir ao resultado oposto ao expresso na sentença.
I) Sendo certo que, verifica-se a nulidade por oposição entre fundamentos e decisão tipificada na alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º do C.P.Civil, quando os factos provados e fundamentos invocados conduzirem logicamente, não ao resultado final expresso na decisão, mas a resultado oposto ou mesmo preferente.
J) Por outro lado, a douta sentença é completamente omissa na apreciação dos documentos que foram juntos à petição inicial, mormente o documento nº 2, documento esse que não foi sequer impugnado pelos RR/Reconvintes.
K) Naquele documento com reconhecimento notarial de assinaturas, no ano de 1955, junto aos autos como doc nº 2, os antepossuidores do prédio dos AA/Recorrentes e dos RR/Recorridos declararam: que a expensas de ambos, procederam à exploração da água nas extremas dos seus prédios denominados de Campo do Cortelho e Capo do laranjal, no lugar de subouteiro, da referida Freguesia de Carreiras são Miguel.
L) Mais ali declararam os antepossuidores do prédio dos AA e dos RR que: “(…) convencionam que tanto a água ali explorada como a da fonte, fica a pertencer aos dois em comum, devendo, no entanto, cada um servir-se e utilizar-se dela tapando-a de vinte em vinte e quatro horas, começando sempre o giro às doze horas de cada dia. (…) que se obrigam a respeitar o contrato tal como estipularam de princípio.(…).
M) Tal documento tem força probatória plena, e, não foi impugnado pelos RR/Reconvintes aqui recorridos.
N) O referido documento junto à petição inicial como documento nº 4 tem o valor probatório pleno nos mesmos termos em que ele se justifica para a confissão.
O) A força probatória plena do documento particular significa que o facto não carece de outra prova e que tem de considerar-se verdadeiro.
P) O documento particular cuja autoria seja reconhecida, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento – artº 376º nº1, do Código Civil.
Q) Os Rr /Reconvintes não arguiram qualquer falsidade do documento, pelo que faz o mesmo prova plena - artº 376º nº1, do Código Civil
R) O tribunal a quo não se pronunciou sobre o teor de tal documento – doc nº 4 junto á petição inicial -, tendo feito tábua rasa ao seu conteúdo, resultando assim na modesta opinião dos recorrentes, nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, conforme disposto no n.º 2 do art. 660.º do CPC, nos termos do qual "[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação,(…)
S) Do mesmo modo, entendem humildemente os recorrentes existir uma patente falta de fundamentação da sentença, á luz dos princípios estruturantes do Direito, dos preceitos legais aplicáveis e das melhores doutrina e jurisprudência, afigurando inequívoco aos recorrentes que, in casu, a douta sentença não respeitou a exigência legal de fundamentação, pois que do seu teor não resulta qualquer exercício minimamente adequado a produzir o seu convencimento nem sequer a demonstrar o processo de raciocínios lógicos que conduziu a eventual decisão justa.
T) Não se tendo, respeitado o dever de fundamentação que impendia sobre o Tribunal a quo, verifica-se a sua nulidade – o que expressamente se alega e invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do C.P.C., ex vi do nº 3 do artigo 666º do mesmo Código, mais violando o preceituado no nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa.
U) Entendem também os recorrentes que foram incorretamente julgados os factos constantes da matéria de facto dada como não provados, mormente os ali descritos em a), b), c) e d), atento ao facto da prova produzida impor sobre esses concretos pontos da matéria de facto impugnados uma decisão diversa da recorrida concretamente, ou seja, deviam ter sido dados como provados.
V) O tribunal recorrido ao ter dado como não provados os factos ali vertidos em a), b), c) e d) quando os deveria ter dado como provados, incorreu num erro de julgamento quanto a esses concretos pontos de facto (cfr. artigo 685.°-B, n.º 1 al. a) do C.P.Civil).
W) Os concretos meios probatórios que impunham que se dessem como provados os factos que o tribunal a quo deu como não provados – mormente o facto a) e b) c- resulta da prova constante nos depoimentos das testemunhas dos recorrentes Joaquim … de 11:13:29 a 11: 15: 29 e 11: 23:00 a 11:53:43 do dia 27-06-2014; da Testemunha dos Autores Domingos … de 11:54:39 a 12:11:13 do dia 27-06-2014; da Testemunha dos Autores José … de 12:12:44 a 12:35:20 do dia 27-06-2014 DEPOIMENTO da Testemunha dos Réus Júlia … de 15:51:11 a 16:04:46 do dia 27-06-2014 concretamente, nas passagens da gravação da prova supra devidamente transcritas na motivação do presente recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
X) Quanto aos factos c) e d) dados como não provados, os concretos meios probatórios que impunham que se dessem como provados resultam da prova documental constante do documento nº 4 junto á petição inicial, e, a constante nos depoimentos das testemunhas dos recorrentes Joaquim … de 11:13:29 a 11: 15: 29 e 11: 23:00 a 11:53:43 do dia 27-06-2014; da Testemunha dos Autores Domingos … de 11:54:39 a 12:11:13 do dia 27-06-2014; da Testemunha dos Autores José … de 12:12:44 a 12:35:20 do dia 27-06-2014 DEPOIMENTO da Testemunha dos Réus Júlia … de 15:51:11 a 16:04:46 do dia 27-06-2014 concretamente, nas passagens da gravação da prova supra devidamente transcritas na motivação do presente recurso que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
Y) O tribunal recorrido ao ter dado como não provados os factos descritos em a) b) c) e d), da forma como o fez, incorreu num erro de julgamento sobre os aludidos concretos pontos de facto, os quais poderão ser alterados por este Tribunal Superior (cfr. artigo 685.°-B, n.º 1 als. a) e b) e 712.°, n.ºs 1 al. a) e 2 do C.P.Civil), pois as aludidas provas testemunhal e documental necessariamente imponham uma decisão diversa.
Z) O recurso que venha a ser interposto da sentença abrange, obviamente, a decisão proferida sobre a matéria de facto (cfr. artigo 712.° do C.P.Civil), quer haja ou não reclamação, não ficando precludido esse mesmo legítimo direito.
AA) Pelo exposto, após analisada somente a matéria de facto que a nossa modesta opinião, foi incorrectamente julgada, concretamente, os factos dados como não provados nas alíneas a), b) c) e d), pelo que devem ser dados como provados na sua totalidade ou parcialmente».
Terminam os autores pedindo que a sentença seja revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido de reconhecimento de propriedade dos autores, na proporção de metade da água em discussão nos autos.
Os réus contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do julgado, suscitando ainda a existência de um erro de escrita na sentença.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), consubstancia-se em saber:
- se é nula a sentença;
- se deve ser alterada a matéria de facto;
- se deve ser declarado que os autores são proprietários da água em discussão nos autos, na proporção de metade.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1. O prédio misto sito no Lugar de Outeiro, freguesia de Carreiras S. Miguel, concelho de Vila Verde, composto por casa de dois pavimentos, com quintal e eido de lavradio, vidonho, denominado Leira do Cortelho, a confrontar do Norte e Nascente com Joaquim Barbosa (Herdeiros), do Sul com José Gonçalves Raro e do Poente com caminho para o Outeiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o nº … e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo … urbano e … rústico, encontra-se inscrito a favor dos autores, por partilha da herança.
2. O prédio rústico sito no Lugar de Outeiro, freguesia de Carreiras S. Miguel, concelho de Vila Verde, denominado Eido do Queimado, a confrontar do Norte com José Gonçalves, de Poente com caminho para o Outeiro, do Sul com José Gonçalves e outros e de Nascente com limites de Carreiras Santiago, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o nº … e inscrito na matriz predial sob o artigo …, adveio à titularidade dos réus, por adjudicação em acção divisão de coisa comum que correu termos neste Tribunal sob o nº 13-A/91 do 1º Juízo.
3. Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos, que os réus, por si e antepossuidores, detêm e fruem o referido prédio, ocupando-o, zelando-o, procedendo as obras conservação e limpeza, mantendo-o cuidado e suportando os respectivos encargos fiscais, recentemente ali habitando na respectiva moradia entretanto erigida.
4. O descrito em 3. tem vindo a ser feito pelos réus, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence.
5. O pai do autor marido (Joaquim …) e o pai da ré mulher (Joaquim …), a expensas de ambos, acordaram por escrito datado de 17.09.1955, na exploração conjunta de uma fonte de água de nascente, de corrente permanente e contínua, que desagua no extremo dos prédios ids. em 1. e 2., comprometendo-se cada um a servir-se a utilizar-se dela tapando-a de vinte e quatro em vinte e quatro horas, começando sempre o giro às doze horas de cada dia.
6. Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio id. em 2. é abastecido pela água descrita em 5., quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas.
7. O descrito em 6 tem vindo a ser feito pelos réus, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade.

E foi considerada não provada a seguinte factualidade:
a) Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos, que os autores, por si e antepossuidores, detêm e fruem o prédio id. em 1. dos factos provados, habitando-o, colhendo os seus frutos, ocupando-o, zelando-o, procedendo as obras conservação e limpeza, mantendo-o cuidado e suportando os respectivos encargos fiscais.
b) O descrito em a) tem vindo a ser feito pelos autores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence.
c) Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio id. em 1. dos factos provados é abastecido pela água descrita em 5., quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas e cuidados com animais.
d) O descrito em c) tem vindo a ser feito pelos autores, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade.
e) Os réus, aproveitando-se do facto de os autores residirem na freguesia vizinha, sem o consentimento ou conhecimento dos mesmos, procederam a obras de encaminhamento da água da fonte exclusivamente para o prédio id. em 2., retirando e destruindo as obras levadas a cabo na decorrência do acordo descrito em 5. dos factos provados, e, assim, privando o prédio id. em 1. da referida água tal como referido em c).
f) Apesar de interpelados para o efeito pelos autores, os réus escusaram-se a repor a situação existente anteriormente às referidas obras.
g) O que causou e tem vindo a causar aos autores graves prejuízos, mormente impedindo-os de produzir o que quer que seja no respectivo prédio, cujo solo se apresenta, em consequência da referida falta de água, seco e agreste, bem como de efectuar as obras necessárias na reconstrução da casa de habitação ali existente.
h) Na decorrência do sucedido, os autores sentem-se publicamente vexados, humilhados, revoltados e transtornados.
i) Ainda, por força da referida privação do uso da água levada a cabo por conduta dos réus, os autores perderam a oportunidade de alienar o prédio id. em 1..

O DIREITO
Questão prévia
Como se assinalou supra, os réus/recorridos suscitaram nas contra-alegações a existência de um erro de escrita na sentença, o qual alegadamente consistiu em terem sido dados como não provados todos os factos relativos à utilização da água por parte dos autores, julgando a acção improcedente nessa parte, e, por outro lado, ter sido dada como provada a utilização da água pelos réus, na proporção de metade, julgando-se procedente na totalidade a reconvenção, pelo que nunca a convicção da Mm.ª Juíza poderia ter sido outra que não dar como provada a utilização da água por parte dos réus na totalidade e não apenas na proporção de metade.
Quando o decisor se “engana”, tal pode ter como causa o erro material, o lapso manifesto ou o erro de julgamento.
O primeiro, na sua modalidade escrita (‘lapsus calami’) consiste na inexactidão, na expressão da vontade do julgador, por lapso notório, mais frequentemente traduzido em erros de escrita ou de cálculo.
Mas é necessário que resulte evidente do texto essa decisão.
Haverá, pois, uma divergência, clara e ostensiva, entre a vontade real do decisor e o que veio a ser exarado no texto.
É um tipo de erro, tal como o descrito na lei substantiva (artigo 249.° do Código Civil) “...revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita...’.
Já no erro de julgamento (ou erro judicial) ocorre uma divergência entre a verdade fáctica ou jurídica e a afirmada na decisão.
O erro material – artigo 614º do CPC – é corrigível por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Mas nunca interfere, decisivamente, com o mérito da decisão, tanto mais que terá de ser evidenciado pelo seu contexto cuja leitura atenta o torna perceptível face às premissas do silogismo judiciário[1].
Já o erro de julgamento, por contender com o mérito, só pode ser motivador de recurso (impugnação perante instância superior).
Ora, no caso concreto, o julgador de 1ª instância teve já oportunidade de esclarecer nos autos que a sentença não enferma de qualquer lapso de escrita[2], o que esta Relação tem de aceitar, não podendo substituir-se àquele julgador e declarar a existência de um hipotético erro material, como defendem os réus/recorridos, pois não há a menor dúvida que é o juiz que profere a sentença quem melhor do que ninguém sabe se aquilo que escreveu na sentença correspondeu ou não à sua vontade real.

Da nulidade da sentença
A sentença, como acto jurisdicional, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, e então torna-se passível de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
De acordo com a alínea c) do nº 1 deste preceito, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Fundamento esse, de nulidade da sentença, que bem se compreende, pois que os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, funcionam na estrutura expositiva e argumentativa em que se traduz a mesma, como premissas lógicas necessárias para a formação do silogismo judiciário. Pelo que constituirá violação das regras necessárias à construção lógica da sentença que os fundamentos da mesma conduzam logicamente a conclusão diferente da que na mesma resulta enunciada.
Defendem os recorrentes que é o que se passa com a sentença recorrida, pois ao dar-se como provado no ponto 7 do elenco dos factos provados que os réus apenas detêm a água em discussão nos autos, na proporção de metade, não podia a sentença julgar totalmente procedente a reconvenção e declarar os réus/reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do seu prédio, pelo que os fundamentos da sentença estão em oposição com a decisão.
Tal como acima se enunciou, a nulidade em apreço, resulta apenas dos fundamentos invocados pelo juiz conduzirem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto[3], e não da eventual circunstância de o conteúdo decisório da sentença revelar que o seu autor não teve em consideração determinados factos – que poderão ser notórios - ou que não teve em consideração circunstâncias factuais a que fez menção no despacho de fundamentação das respostas à matéria de facto. Tais deficiências poderão, quando muito, implicar erro de julgamento, o qual, porém, se mostra sanável, não por via da arguição de nulidade da sentença, mas apenas pela via do recurso de mérito.
No caso em apreço, porém, não é esta última situação que se verifica, existindo efectivamente oposição entre os fundamentos e a decisão, o que torna a sentença nula.
Senão vejamos.
Nos pontos 6 e 7 do elenco dos factos provados, deu-se como provado que:
«6. Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio id. em 2. é abastecido pela água descrita em 5., quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas.
7. O descrito em 6 tem vindo a ser feito pelos réus, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade.»
Escreveu-se, por sua vez, na fundamentação de direito o seguinte:
«No que toca, entretanto, ao pedido reconvencional formulado, atenta a factualidade apurada – nos termos da qual, desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio pertencente aos RR. é abastecido pela água em causa, quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas, o que tem vindo a ser feito por aqueles, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade - entendemos ser pois de proceder.
Do que vem de se dizer, resulta dever a presente acção ser julgada parcialmente procedente, sendo totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido» (sublinhado nosso).
E na parte dispositiva da sentença escreveu-se:
«Em conformidade com o exposto, julga o Tribunal a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, parcialmente procedente sendo, por outro lado, julgada totalmente procedente a reconvenção deduzida e, em consequência, decide:---
a) (…);
b) (…);
c) Declarar os RR./reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio id. em 12º da p.i.
d) Condenar os AA./reconvindos a absterem-se de praticar qualquer acto perturbador do direito referido em d).»
Além do evidente lapso de escrita da sentença acima sublinhado, o certo é que a decisão de julgar totalmente procedente a reconvenção e “declarar os réus/reconvintes donos e legítimos possuidores da água encaminhada para a extrema poente do prédio identificado em 12º da p.i.,”, isto é, o prédio dos réus, está claramente em oposição com os fundamentos de facto e de direito, onde se considerou que os réus utilizavam a água em causa apenas na proporção de metade.
Contradição, aliás, reforçada quando na sentença se considerou não provada a factualidade das alíneas c) e d):
«c) Desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio id. em 1. dos factos provados é abastecido pela água descrita em 5., quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas e cuidados com animais.
d) O descrito em c) tem vindo a ser feito pelos autores, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade.»
Quer dizer. Se não se provou que os autores tenham adquirido por usucapião a propriedade da água em causa, na proporção de metade, mal se compreende que se tenha dado como provado que os réus adquiriram essa mesma água por usucapião, na proporção de metade, e na parte dispositiva da sentença se declare que os réus são titulares dessa água na sua totalidade.
Em suma, os fundamentos fácticos da sentença estão em oposição com a decisão, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC. Contudo, deve esta Relação conhecer do objecto da apelação, em observância ao disposto no artigo 665º, nº 1, do CPC.
Antes, porém, de conhecer do objecto da apelação, importa apreciar as restantes nulidades de que, no entender dos recorrentes, enferma a sentença recorrida.
Segundo os recorrentes a sentença é também nula porque o tribunal a quo não se pronunciou sobre o teor do documento nº 4 junto com a petição inicial, a fls. 22-23 dos autos.
De acordo com a alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, temos que a sentença é nula “Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do n.º 2 do art. 608.º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Por outro lado, como é jurisprudência unânime, não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido[4].
Questões submetidas à apreciação do tribunal identificam-se com os pedidos formulados, com a causa de pedir ou com as excepções invocadas, desde que não prejudicadas pela solução de mérito encontrada para o litígio.
Coisa diferente são os argumentos, as razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista, que não constituem questões no sentido do art. 668.º, n.º 1, al. d), do CPC. Daí que, se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este se não pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
Ora, sem prejuízo do que se dirá infra a propósito da impugnação da matéria de facto e do valor probatório do documento em causa, podemos adiantar, desde já, que não corresponde minimamente à verdade que a Mm.ª Juíza “tenha feito tábua rasa” do seu conteúdo, desde logo porque foi um dos documentos que aquela mencionou na fundamentação da decisão de facto.
Se o documento foi ou não correctamente apreciado, é algo que tem a ver com o mérito da decisão de facto, o que veremos de seguida a propósito da impugnação da matéria de facto, sem que exista por isso qualquer omissão de pronúncia in casu.
Por último, entendem os recorrentes existir “uma patente falta de fundamentação da sentença”.
O art. 615º, nº 1, al. b), do CPC prevê a nulidade da sentença que “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A nulidade prevista na citada al. b), tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente[5].
Constitui também jurisprudência absolutamente dominante que a falta de motivação, a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC (anterior artigo 668º), é a total omissão dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito em que assenta a decisão, e não a sua motivação deficiente, errada ou incompleta, sendo certo, outrossim, que uma fundamentação, apenas, incompleta ou insuficiente, não afecta o valor legal da sentença ou do acórdão[6].
No caso em apreço, não há a menor dúvida que a sentença especificou os fundamentos de facto em que assentou a sua decisão, analisando criticamente a prova, e indicou as normas jurídicas nas quais fez assentar a sua decisão.
Daqui se poder concluir, sem quaisquer outros considerandos, que a sentença não enferma do vício de falta de fundamentação que lhe apontam os recorrentes.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do art. 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto – documentos, depoimento de parte do autor e depoimentos testemunhais registados através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nºs 1 e 2, do CPC.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorrecta avaliação da prova testemunhal cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Presente deve ter-se, outrossim, que o sistema legal, tal como está consagrado, com recurso à gravação sonora dos meios probatórios oralmente produzidos, não assegura a fixação de todos os elementos susceptíveis de condicionar ou influenciar a convicção do julgador perante o qual foram produzidos os depoimentos em causa, sofrendo a apreciação da matéria de facto pela Relação, naturalmente, a limitação que a inexistência da imediação de forma necessária acarreta.
Feitas estas breves considerações, vejamos então a factualidade posta em causa pela recorrente e o que se afere dos meios de prova que na 1ª instância estiveram na base da decisão de facto proferida.
Estão em causa os factos dados como não provados na sentença sob as alíneas a), b), c) e d) que, no entender dos recorrentes, deveriam ser dados como provados.
Antes de mais, importa salientar que o Tribunal a quo «formou a sua convicção, para a determinação da matéria de facto dada como provada e não provada, no teor conjugado dos documentos juntos a fls. 21 (certidão de registo), 22/23 (declaração), 24-24 (missiva escrita e registo), 27-34, 67 e 69 (registos fotográficos), do resultado da inspecção judicial realizada nos autos e das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento», sendo que, «com respeito à inspecção judicial levada a cabo no início da audiência de julgamento, foi possível observar ambos os prédios e respectivas extremas onde desagua a água em sujeito».
Começaremos a nossa análise pelo documento de fls. 22-23 acima referido e sobre o qual, dizem os recorrentes, fez a Mm.ª Juíza “tábua rasa do seu conteúdo”.
O documento em causa, intitulado “Declaração”, corresponde ao acordo escrito a que se alude no ponto 5 do elenco dos factos provados do seguinte teor:
«O pai do autor marido (Joaquim …) e o pai da ré mulher (Joaquim …), a expensas de ambos, acordaram por escrito datado de 17.09.1955, na exploração conjunta de uma fonte de água de nascente, de corrente permanente e contínua, que desagua no extremo dos prédios ids. em 1. e 2., comprometendo-se cada um a servir-se a utilizar-se dela tapando-a de vinte e quatro em vinte e quatro horas, começando sempre o giro às doze horas de cada dia
Uma vez que não foram impugnadas a letra e assinatura de tal documento particular, as mesmas consideram-se verdadeiras (nº 1 do art. 374º do CC) e, dado que aquele documento não foi arguido de falsidade, faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores (nº 1 do art. 376º do CC).
Importa, porém, sublinhar que só quer dizer que «torna indiscutível que a pessoa a quem é atribuído fez as declarações que dele constam mas saber se as declarações feitas vinculam o seu autor, é já um problema que não respeita à força probatória do documento, mas sim à eficácia da declaração. Essa matéria está regulada no nº 2 do artigo 376º, que lhe aplica os princípios da confissão; os factos consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante e a declaração é indivisível»[7].
Por isso «enquanto os documentos autênticos fazem prova plena, qualquer que seja o facto representado (art. 371 nº1), o documento particular, cuja veracidade esteja reconhecida, só tem essa força probatória quanto aos factos, nele referidos, que sejam contrários ao interesse do declarante, o que se exprime pela enunciação da regra de que o documento autêntico prova plenamente erga omnes e o documento particular apenas prova inter partes»[8].
Assim, apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; nas relações com terceiros, essa declaração somente valerá como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal, tal como sucede relativamente à confissão extrajudicial (cfr. nºs 2 e 4 do art. 358º).
Nem seria «razoável atribuir maior valor intrínseco, ou veracidade, a qualquer declaração constante de documento particular, do que a uma declaração confessória»[9].
Importa, agora, fazer o confronto do regime probatório explanado no citado art. 376º do CC com o documento em causa.
Trata-se de um documento datado de 17 de Outubro de 1955, no qual o pai do autor marido (Joaquim …) e o pai da ré mulher (Joaquim …), declaram que a expensas de ambos, acordaram proceder à exploração conjunta de uma fonte de água de nascente, de corrente permanente e contínua, que desagua no extremo dos prédios de autores e réus, comprometendo-se «cada um servir-se ou utilizar-se dela tapando-a de vinte e quatro em vinte e quatro horas, começando sempre o giro às doze horas de cada dia
Tal documento, perante a sua não impugnação, apenas prova o que dele consta escrito, e não que «desde há mais de 10, 20, 30, 40 e mais anos que o prédio id. em 1. dos factos provados é abastecido pela água descrita em 5., quer para consumo doméstico, quer para limpezas, quer para regas e cuidados com animais», e que isso « tem vindo a ser feito pelos autores, por si e antepossuidores, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição ou turbação de ninguém, na intenção e convicção de que o direito ao uso da respectiva água lhes pertence, na proporção de metade» - alíneas c) e d) dos factos não provados.
Isto para dizer que ao documento em causa, que note-se não foi emitido pelos autores e réus e, por conseguinte, não se pode sequer recorrer ao regime do citado nº 2 do art. 376º do CC.
E sendo assim, tal documento devia ter sido complementado com a prova testemunhal. Se o foi ou não, é o que veremos de seguida.
Depois de ouvirmos integralmente os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas na audiência de discussão e julgamento, podemos afirmar que a decisão da matéria de facto se mostra, no essencial, correcta, excepto no que diz respeito à utilização da água pelos réus, na proporção de metade, o que só não pode atribuir-se a um lapso do julgador pelas razões acima expostas.
A testemunha Joaquim …, de 77 anos, residente na freguesia de Carreiras de S. Miguel, disse conhecer os prédios que actualmente pertencem a autores e réus desde os seus 15 anos de idade, bem como os anteriores proprietários dos mesmos, respectivamente o pai do autor marido e o pai da ré mulher, tendo esclarecido que a mina que encaminha a água em causa foi construída por aqueles, tendo ambos suportando os respectivos custos, com vista a cada um dos prédios, em partes iguais – o que está em consonância, aliás, com o teor da declaração de fls. 22-23 supra referida -, o que terá sido feito pelo menos até 1986/87. Referiu também a testemunha que o caminho público ali existente foi objecto de obras pela Câmara Municipal, há cerca de 8-10 anos, altura em que a configuração da mina – que se situaria a meio de ambos os terrenos - e o encaminhamento da água se terão alterado. No final do seu depoimento, admitiu a testemunha que só no tempo dos pais do autor marido e da ré mulher é que viu ser utilizada a água, portanto há mais de 40 anos.
A testemunha Domingos …, de 71 anos, disse ter sido caseiro (arrendatário) do prédio actualmente pertencente aos autores por um período de 2 anos, entre 1967-1969, altura em que imigrou para França. Tudo o que se passou depois desta data, nomeadamente o uso que foi feito da água em discussão nos autos, não é do seu conhecimento.
A testemunha José …, de 84 anos de idade, residente em Moure mas natural da freguesia de Carreiras S. Miguel e proprietário do prédio onde nasce a água que desagua junto à extrema dos prédios de autores e réus, não teve dúvidas em afirmar que a água pertencia aos dois, querendo com isso referir-se aos pais do autor marido e da ré mulher, os quais pediram ao pai da testemunha que os deixasse explorar a água, o que aquele consentiu, quando a testemunha tinha os seus 14 anos, ou seja, há cerca de 70 anos, sendo que depois disso esteve imigrado na Venezuela durante mais de 30 anos, vindo a Portugal de 2 em 2 anos, tendo regressado de vez há cerca de 20 anos, e só se desloca ao local, como disse, “para tomar conta do que é meu”.
A testemunha Maria …, de 55 anos, disse ter cultivado o prédio actualmente pertencente aos autores durante um período de 2/3 anos, há cerca de 23 ou 24 anos, onde plantava e colhia batatas, referindo que nunca fez uso da água em discussão, nem isso sequer foi falado com o autor marido quando este lhe permitiu cultivar o terreno em causa, não recordando a existência aí de alguma poça ou fonte. Esclareceu ainda que quando cultivou o prédio dos autores a casa já estava como hoje, ou seja, sem telhado e com as paredes a cair.
Já a testemunha Miguel …, de 41 anos, agricultor, que nasceu e vive na freguesia de Careiras de S. Miguel, disse ter preparado o terreno dos autores para cultivo com o tractor, quando era a testemunha Maria de Lurdes que trabalhava no mesmo, recordando-se de quando era pequeno ali existir uma mina, não sabendo, porém, quem fazia uso da água nem como. Referiu, por último, que o terreno dos autores se encontrava há muito abandonado, e a respectiva casa em ruínas, estando tudo coberto de silvas até há cerca de 4 ou 5 anos, altura em que foi limpo, tendo nessa altura ouvido falar do interesse dos autores em vender o seu prédio.
A testemunha Artur …, Presidente da Junta de Freguesia de Carreias S. Miguel desde 2001, disse que foi no primeiro ano do seu primeiro mandato que ocorreu o desabamento do muro de suporte de terras da estrada principal, que fez ruir parcialmente a mina existente por baixo do caminho, o que levou à intervenção daquela Câmara e à colocação de aduelas na mina, referindo que ninguém, nem mesmo os réus, interferiram na realização da obra, tendo sido realizada apenas uma reconstrução do que existia anteriormente, sendo que na altura já o prédio dos autores se encontrava abandonado e a casa em ruínas, estando tudo coberto de silvas.
A testemunha José …, de 61 anos de idade, residente na casa situada em frente à casa dos réus, disse bem conhecer desde sempre a mina ali existente, não se recordando de alguma vez ter visto os autores ou os seus antecessores a utilizarem a água da mesma, mas apenas os réus e os seus antecessores. Referiu ainda a testemunha que desde o ano de 1977, nunca viu ninguém a viver ou trabalhar no prédio dos autores, com excepção da testemunha Maria de Lurdes.
Também a testemunha Júlia …, de 61 anos, que actualmente cuida da mãe da ré mulher, disse conhecer a mina, mas não se recordar de alguma vez ter visto os autores ou seus antecessores a fazerem uso da água da mesma.
Todos estes depoimentos, que se pesam caso a caso, no contexto em que se inserem, e tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência, são insuficientes para sustentar uma alteração da matéria de facto dada como não provada nas alíneas a), b, c) e d) dos factos não provados, pois resulta demonstrado não terem os autores exercido durante um largo período de tempo quaisquer actos de posse sobre o prédio registado a seu favor e sobre a água em discussão, que permitisse a sua aquisição por usucapião.
Resulta, pois, do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida no que se refere à factualidade impugnada, mas sim uma correcta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido.
No entanto, resulta evidente da prova produzida e também da fundamentação da decisão de facto, que o prédio dos réus é, desde há mais de 40 anos abastecido pela água em causa, de forma contínua e ininterrupta, à vista e com o conhecimento de todos, sem a oposição de quem quer que seja e na convicção de que essa água lhes pertence, mas na totalidade e não em metade, como erradamente se fez constar no ponto 7 do elenco dos factos provados, pelo que se impõe eliminar daquele ponto a expressão “na proporção de metade”, ficando assim sanada a contradição entre os fundamento e a decisão que geraram a nulidade da sentença nos termos supra referidos.

Do mérito da sentença
Permanecendo incólume a decisão do tribunal a quo quanto à matéria de facto dada como não provada, nenhuma censura há a fazer à decisão sindicanda, onde foi feita, correcta e devidamente, a subsunção dos factos provados ao direito, nada havendo a acrescentar ao que se escreveu na sentença.
Na verdade, com a factualidade dada como provada não pode obviamente declarar-se que os autores são proprietários da água em discussão nos autos, na proporção de metade, nem que os mesmos adquiriram o seu prédio por usucapião, beneficiando os autores, neste último caso, apenas da presunção registal, como corretamente se ajuizou na sentença.
Improcedem assim todas as conclusões em sentido contrário dos recorrentes.

Sumário:
I – Verifica-se a nulidade da sentença prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, quando os fundamentos invocados pelo juiz conduzem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
II - Não há que confundir questões colocadas pelas partes à decisão, com os argumentos ou razões, que estas esgrimem em ordem à decisão dessas questões neste ou naquele sentido.
III - Se na apreciação de qualquer questão submetida ao conhecimento do julgador, este não se pronuncia sobre algum ou alguns dos argumentos invocados pelas partes, tal omissão não constitui qualquer nulidade da decisão por falta de pronúncia.
IV - A nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC, tal como é pacificamente admitido, exige a ausência total de fundamentação de facto ou de direito e não se basta com uma fundamentação meramente incompleta ou deficiente.
V – Nos documentos particulares, apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; nas relações com terceiros, essa declaração somente valerá como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal, tal como sucede relativamente à confissão extrajudicial (cfr. nºs 2 e 4 do art. 358º do Código Civil).

IV - DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em:
a) alterar o ponto 7 do elenco dos factos provados, eliminando do mesmo a expressão “na proporção de metade”.
b) julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
*
Custas pelos recorrentes.

Guimarães, 14 de Maio de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
__________________________________
[1] Cfr. Ac. do STJ de 12.02.2009 (Sebastião Póvoas), proc. 08A2680, in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. despacho de fls. 277.
[3] Cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 141.
[4] Cfr., inter alia, Ac. do STJ de 08.02.2011 (Moreira Alves), proc. 842/04.8TBTMR.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[5] Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, em anotação ao citado art. 668º.
[6] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 04.05.2010 (Helder Roque), proc. 2990/06.0TBACB.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ac. do STJ de 30.06.1977, BMJ, 268º-204. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 12.07.2011 (Tavares de Paiva), proc. 3128/06.0TBOER. L1.S1, in www.dgsi.pt.
[8] Ibidem.
[9] Cfr. Ac. do STJ de 30.06.1977 supra citado.