Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2414/09.1TBFAF.G1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO
CONTRATO DE SEGURO
LEGITIMIDADE
CONTRATO MISTO
DEPÓSITO
EMPREITADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - Sendo o contrato de seguro de responsabilidade civil um contrato a favor de terceiro, pode o lesado demandar directamente a seguradora para exigir o ressarcimento do seu dano na medida do consentido pelo objecto do seguro.
II - A entrega de um automóvel, com as chaves e documentos, para ser levado à inspecção e reparado um espelho retrovisor que se encontrava partido, configura um contrato misto de depósito e empreitada, cabendo ao depositário guardar a coisa depositada.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.


I – A…, casado, reformado, residente na Quinta …, freguesia de …, concelho de Cabeceiras de Basto, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo sumário, contra “B… - Sociedade Reparações Automóveis, Sociedade Unipessoal, Ldª”, com sede no Lugar de …, n.º …, freguesia de … (…), Fafe e “C… – Companhia de Seguros, S.A.” a qual, em 24/1/2011, foi incorporada, por fusão, na C…, S.A. (a qual adquiriu, por essa forma todos os direitos e obrigações da sociedade “C… – Companhia de Seguros, S.A. – art.º 276.º n.º2 do CPC) com sede em Lisboa, peticionando a condenação das RR., solidariamente:
i) A pagar a quantia de EUR. 10 900€, relativa ao valor venal do veículo automóvel, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos, contados desde a data da prática do facto ilícito, nos termos do art.º 805º, n.º 2, al. b) do CC, e vincendos, o que perfaz o montante de EUR. 11 670,47€ (onze mil seiscentos e setenta euros e quarenta e sete cêntimos), até à entrada da presente acção;
ii) A pagar a quantia de EUR. 10 651,80€ relativa às prestações pagas devido ao empréstimo para aquisição do veículo automóvel, acrescida de juros de mora contados desde a citação;
iii). A pagar a quantia de EUR. 2 500€ (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a citação;
iv) Bem como as custas de parte nos termos e para os efeitos do art.º 447.ºD do CPC.
Para tanto alega que o seu veículo de matrícula QF foi levado para a oficina da 1ª R. com a finalidade de ser reparado um vidro retrovisor que se encontrava partido e, posteriormente, inspeccionado.
Contudo, no dia 5 de Março de 2008 o veículo desapareceu da oficina.
Realça que desde essa altura que não tem meio de transporte próprio e que necessitou de se deslocar por transportes público, com despesas acrescidas.
E que liquidou até Outubro de 2009, 523,59€ (quinhentos e vinte e três euros e cinquenta e nove cêntimos) por mês, em virtude de um empréstimo que contraiu junto da financeira “Sofinloc”, não usufruindo do veículo.
Por ter ficado sem veículo automóvel, continuando a liquidar a mensalidade, determinou a que o A. andasse sempre nervoso. Esclarece que as RR. outorgaram um contrato de seguro, sendo, assim, ambas responsáveis pelos danos causados ao A.
Conclui, assim, pelo peticionado.
Citadas, as RR. apresentaram contestação.
A 2ª R. C… – Companhia de Seguros, S.A., alega que não é responsável, porquanto não existiam vestígios de entrada forçada, pelo que não ocorreu furto qualificado, nos termos exigidos pelo acordado entre as partes, no âmbito da condição especial n.º 19 do contrato de seguro.
No mais, impugna, motivadamente, a matéria alegada pelo A.
A 1ª R. B… – Sociedade de Reparações Automóveis, impugnou, motivadamente, a matéria vertida na petição inicial.
Invocou a ilegitimidade do A. para propor a acção, referindo que o mesmo não é proprietário do veículo.
Os autos prosseguiram e, efectuado o julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu:
Pelo exposto:
i) julgo parte ilegítima a R. C…, S.A. absolvendo-a da instância, nos termos dos art.º 288.º n.º1 al. d) e 494.º n.º1 al. e), ambos, do CPC;
julgo parcialmente procedente, a presente acção e, em consequência, condeno a Ré “B… – Sociedade Reparações Automóveis, Sociedade Unipessoal, Ldª, ”a pagar à A. a quantia de € 10.900,00 (dez mil e novecentos euros) acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal, vencidos desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Absolvo a R. “B… – Sociedade Reparações Automóveis, Sociedade Unipessoal, Ldª”, do demais peticionado.

Inconformado o autor interpôs recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
1- É parte legítima passiva quem, face aos termos em que o autor configura a acção (a sua pretensão), tiver interesse em contradizer, pelo prejuízo que da respectiva procedência lhe possa advir – art. 26º nºs 1 a 3 do CPC
2- No caso, o autor, por um lado, imputa à 1.ª Ré a responsabilidade pela verificação do dano que sofreu em consequência directa e necessária da actuação ilícita e culposa, pretendendo ser ressarcido desse dano; e, por outro lado, invoca a existência de um contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre a 1.ª e 2.ª Rés, mediante o qual a primeira transferiu para a segunda a responsabilidade pelos danos provocados no edifício e no recheio que aquela explora no âmbito da sua actividade comercial, pretendendo que, por via de tal contrato, a seguradora seja também condenada a pagar-lhe a indemnização peticionada.
3- Pelo que, apresentados assim a causa de pedir e o pedido formulado pelo autor, é evidente que a ré seguradora (tal como a primeira ré), tinha interesse directo em contradizer o alegado na petição inicial, evidenciando, assim, o caso dos autos uma situação de litisconsórcio voluntário passivo.
4- Acresce que, conforme é jurisprudência maioritária, o contrato de seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro, sendo certo que, em tais casos o terceiro lesado pode demandar directamente a seguradora - neste sentido, i. a., Acórdãos do STJ de 30/03/1989, in BMJ 385/563, da Relação de Lisboa de 20/01/2000, proc. 5127/2008-1, disponível in www.dgsi.pt/jtrl e da Relação do Porto de 06/07/2009, proc. 721/08.0TVPRT-A.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp.
5- Pelo que, se o segurado-lesante (1.ª Ré) celebrou um contrato no qual a seguradora (2.ª Ré) se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário, até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora, sendo esta, estamos convictos, a tese mais consentânea com a natureza e finalidade do contrato de seguro de responsabilidade civil.
6- Pelo que, in casu, o A. sempre tinha a possibilidade de demandar a 1.ª Ré e a sua seguradora, 2.ª Ré, em litisconsórcio voluntário passivo (artigo 27.º do CPC) por duas ordens de razão:
1.º Porque, face aos termos em que a relação controvertida é apresentada/configurada pelo autor, a seguradora é, claramente, parte legítima; 2.º Porque o autor podia demandar directamente a seguradora (acompanhada da responsável civil) por inexistência de impedimento legal para tal.
7- Pelo que, ao decidir a ilegitimidade passiva da Ré, violou a douta sentença apelada o disposto nos arts. 26.º e 27.º do CPC.
8- Por fim, e sem prescindir, sempre o Mm.º Juiz devia ter julgado procedente o pedido de indemnização dos danos não patrimoniais peticionados pelo apelante.
9- Isto porque, atentos à matéria dada por provada, mormente os pontos 6., 7. e 8., é inquestionável que o apelante sofreu danos com gravidade atendível e merecedores de tutela jurídica;
10- E, tendo presente as regras da boa-fé (762.º do CC) e tomando em conta “todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida”, afigurava-se justo e equilibrado que o tribunal “a quo” fixasse o valor dos danos não patrimoniais em €2.500,00.
11- Assim, a douta sentença apelada violou, entre outros, o disposto nos arts. 26.º e 27.º do CPC e o art. 496.º do CC.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que, considerando a 2.ª Ré parte legítima na acção, julgue a acção totalmente procedente, com as legais consequências.

Também a ré B… - Sociedade Reparações Automóveis, Sociedade Unipessoal Ldª, interpôs recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:
1 – Atenta a matéria de facto que o tribunal entendeu dar como provada, a mesma é manifestamente insuficiente para considerar que o A. e a R. celebraram um contrato de empreitada.
2 – De tal matéria, não resulta que o A. tenha tratado com o sócio-gerente da R. os termos de tal contrato de empreitada.
3 – Ou que a filha do A. tenha contratado com o sócio-gerente da R. por incumbência deste tal empreitada, e qual a finalidade dela, prazo para a sua execução e respectivo preço.
4 – Tanto mais que em lado algum da petição inicial, o A. refere qualquer prazo para a execução da empreitada, e mais importante o preço ou sequer o orçamento.
5 – Tratando-se de um contrato de empreitada como o tribunal o caracteriza, e que o mesmo se concretiza por ser bilateral, oneroso e sinalagmático.
6 – Não resultam tais características da matéria fáctica dada como provada.
7 – E em consequência não pode o tribunal considerar que tal contrato foi celebrado entre o A. e a R.
8 – O que tem de determinar a total improcedência da presente acção.
9 – A presente decisão violou o disposto no artº 1207 do Cód. Civil.
Termos em que o presente recurso deve merecer provimento, e em consequência ser revogada a sentença na parte em que condenou a R. a pagar ao A. a quantia de 10.90000€, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 684º, e 685-A do Código de Processo Civil -.


Em 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

1. O Autor é dono de um veículo automóvel de marca Mercedes Benz, modelo C 250, de cor azul escuro metalizado, matrícula …-…-QF.
2. A Ré B… (1ª R.), sociedade reparações automóveis, Sociedade unipessoal, Ldª, é uma empresa que se dedica à reparação de automóveis.
3.º O veículo automóvel QF tem o valor venal de EUR. 10 900€ (dez mil e novecentos euros).
4º Em Janeiro de 2008, a 1ª Ré foi buscar o veículo automóvel a casa do filho do A., para o levar para a sua oficina, de modo a ser levado à inspecção e reparado um vidro retrovisor, que se encontrava partido.
5. A filha do A. entregou a chave e os documentos do veículo automóvel ao sócio gerente da 1ª R.
6. O veículo automóvel esteve na oficina da 1ª R. dois meses para reparação.
7. O veículo desapareceu da oficina da 1ª R. em Março de 2008 e estava guardado com a chave na ignição.
8. O A. apresentou queixa contra desconhecidos, a qual foi arquivada.
9. Foi outorgado o contrato de seguro do ramo Multiriscos, titulado pela apólice n.º … com B… – Sociedade Reparações Automóveis, Sociedade Unipessoal, Ldª.
10. Pelo referido contrato de seguro encontrava-se seguro o edifício e recheio do estabelecimento sito no Lugar de …, S. Gens.
11. O capital seguro contratado ascendia a €315.000,00, dividido nos seguintes itens:
i) Edifício e benfeitorias - € 150.000,00
ii) Equipamento industrial - € 50.000,00
iii) Mercadorias do seu comércio - € 10.000,00.
iv) Viaturas em reparação e reparadas quando recolhidas na oficina -
€100.000,00
12. Estabelece a condição especial n.º 19 que apenas as situações de roubo e furto qualificado se encontram abrangidas pela apólice de seguro.
13. Define a condição especial n.º 19 como furto qualificado: “acto que cometido com destruição ou rompimento de obstáculos ou mediante escalamento ou utilização de outras vias com intenção de cometer crimes que não as destinadas a servir de entrada ao local onde se encontrem os bens cobertos, ou mediante emprego de chave falsa, gazua ou instrumentos semelhantes, desde que a utilização de qualquer destes meios tenha deixado vestígios inequívocos, ou tenha sido constatada por inquérito policial”.
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Na sentença recorrida foi decidido que a ré Companhia de Seguros é parte ilegítima na acção, contra o que se insurge o autor.
Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa que é referido na sentença recorrida, para uns o contrato de seguro celebrado entre o alegado lesante e a respectiva seguradora apenas confere a esta um interesse processual secundário, podendo, é certo, a mesma intervir na própria acção de responsabilidade civil na qual o lesado é demandado, mas apenas por via do incidente de intervenção acessória.
Segundo esta corrente, terá de se entender que a seguradora não é contitular da relação material controvertida, mas sim sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro) que é conexa com a relação material controvertida, razão pela qual, inexistindo qualquer interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre a ré/lesante e a sua seguradora, não poderia esta ser demandada como parte principal, nem poderia ser admitido o incidente de intervenção principal provocada previsto no artigo 325º do CPC, por forma a desencadear uma situação de litisconsórcio sucessivo, apenas se justificando a intervenção acessória da seguradora, à luz do artigo 330º do CPC, como auxiliar da alegada ré/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a ser indemnizada pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.
Outros defendem que, para apurar se a seguradora tem, em relação ao objecto da causa, uma posição igual à do demandado lesante, e não estando em causa qualquer obrigação em que, por lei ou negócio, se exija a intervenção do segurado e da seguradora, há que ponderar sobre as vinculações decorrentes do contrato de seguro”.
A posição defendida na sentença recorrida corresponde à primeira daquelas posições.
Ora, o contrato de seguro é um contrato a favor de terceiro.
Sendo o contrato de seguro de responsabilidade civil um contrato a favor de terceiro, a seguradora, ao celebrar esse acto jurídico, obriga-se, também, para com o lesado a satisfazer a indemnização devida pelo segurado, ficando aquele com o direito de demandar directamente a seguradora, o segurado ou ambos, em litisconsórcio voluntário.
A jurisprudência tem seguido maioritariamente esta orientação, defendendo que o contrato de seguro de responsabilidade civil é um contrato a favor de terceiro, podendo o lesado demandar directamente a seguradora para exigir o ressarcimento do seu dano na medida do consentido pelo objecto do seguro.
Podemos, concluir, que o contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre a 1ª ré e a 3ª ré é fundamento jurídico bastante para permitir ao autor, em acção directa, demandar a própria ré seguradora; a questão da legitimidade processual activa do autor também se verifica atendendo-se que para esse efeito à configuração que o autor dá à acção e, portanto, a relação material controvertida tal como o autor a delineia, assegura a legitimidade da ré seguradora, pelo que tem de se reconhecer interesse em demandar a ré para obter dela o cumprimento da prestação do seguro, reportando a questão de saber se ele tem mesmo esse direito já ao mérito da acção.
E quanto a isso concordamos com a posição da recorrida, uma vez que da matéria de facto nada nos permite concluir que a mesma deva indemnizar o autor.
Com efeito, estava segurado na ré companhia de seguros o roubo ou furto qualificado do veículo do modo como vem descrito nas condições gerais e particulares da apólice, especificamente descrito no artigo 19º, do contrato.
Da matéria de facto provada, nada se pode retirar quanto ao modo como o veículo saiu da oficina, nem exactamente onde o mesmo estava e se ocorreu qualquer uma das situações previstas na cláusula 19 do referido contrato.
Assim sendo, sempre a recorrida companhia de seguros teria que ser absolvida do pedido e, por isso, nesta parte, mantém-se a sentença recorrida.
Também e no que respeita ao pedido de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo recorrente, a sentença deve ser mantida.
É que o recorrente não provou nem demonstrou que tivesse sofrido danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, pelo que mantém-se também nesta parte a sentença recorrida, para cujos fundamentos remetemos.
Alega a recorrente B… - Sociedade de Reparações Automóveis, que não se provou o contrato de empreitada.
Como se refere na sentença recorrida, o contrato em questão deve ser classificado como um contrato misto de depósito e de empreitada.
As diversas alíneas do art. 1187º do Código Civil obrigam o depositário a guardar a coisa depositada - al. a) -, a avisar imediatamente o depositante quando saiba que algum perigo a ameaça ou que um terceiro se arroga direitos sobre ela, sendo o facto desconhecido do depositante - al. b) -, e a restituir a coisa com os seus frutos - al. c).
Cabia assim, à recorrente demonstrar que foi diligente e que não teve culpa no desaparecimento do veículo.
No entanto, e como resultou provado, o veículo encontrava-se estacionado com a chave na ignição.
Assim, concluímos como na sentença recorrida, que a recorrente tinha o dever acessório de guardar o veículo uma vez que este lhe foi entregue para sua reparação.
Improcede deste modo, o recurso.
Em síntese: sendo o contrato em questão, um contrato misto de depósito e empreitada cabia ao depositário guardar a coisa depositada.

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III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em julgar as apelações improcedentes e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Guimarães, 24 de Outubro de 2013
Conceição Bucho
Antero Veiga
Maria Luísa Ramos