Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
346/13.8TBBCL-A.G1
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para apreciar uma acção baseada no incumprimento de contratos de fornecimento de água para consumo público e de recolha de efluentes, celebrados entre uma concessionária desses serviços e um município.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção civil do Tribunal da Relação de Guimarães
***
Com data de 26/05/2013 foi proferido o seguinte despacho saneador:
“Atenta a simplicidade da causa e porque apenas se impõe a selecção da matéria de facto, dispensa-se a realização da audiência preliminar, passando-se a proferir despacho saneador.
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Despacho saneador
I. Pressupostos processuais e regularidade da instância
O tribunal é competente em razão da nacionalidade.
O Réu arguiu a incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria, com os seguintes fundamentos:
1- O Tribunal é incompetente em razão da matéria, verificando-se, pois, a sua incompetência absoluta – arts. 66º a contrario, 67º, 101º e 102º do CPC, 18.º da LOFTJ, 1º/1 e 4º/1/e) e f) e j) do ETAF, e 212º/3 da CRP.
2- É verdade aquilo que consta dos itens 1º, 2º, 3º e 4º (até “mês”, inclusive) da p.i.
3- Não obstante, verifica-se a incompetência deste Tribunal em razão da matéria.
4- Com efeito, atentando-se na decisão proferida pelo TAF de Braga, logo se intui que a mesma incorreu em manifesto lapso.
5- Começa tal decisão proferida por enunciar que “Águas do Noroeste, S. A., vem instaurar a presente acção administrativa comum, com processo na forma ordinária, contra António Mota Frago, pedindo que seja o R. condenado a pagar à Autora quantias relativas aos serviços contratados de abastecimento de água e saneamento, prestados pela Autora ao Réu”. – cfr. p. 1/5 da mesma.
6- Na mesma página lê-se ainda a seguinte passagem: “Desta forma, impõe—se apreciar, neste momento, concretamente, a questão da competência material deste tribunal para conhecimento da questão de cobrança de créditos a particulares de forma a impedir a prolação de uma decisão inútil …”.
7- Depois, na p. 2/5 lê-se: “O pedido da Autora, de condenação do Réu a pagamento de serviços prestados está excluído do âmbito da jurisdição administrativa porque a pretensão da Autora assenta no invocado direito de crédito, cuja origem se encontra na celebração de um contrato de prestação de serviços com um particular e surge por incumprimento por parte do particular da sua contraprestação, inequívoca questão cível relativa a matéria exclusivamente cível”.
8- Finalmente, na p. 4/5 lêem-se as seguintes passagens: “Ora, nos presentes autos, a actuação de ambas as partes litigantes não foi executada ao abrigo, ou aplicando normas de direito administrativo, a questão a dirimir traduz-se na cobrança de um crédito por parte da Autora a um particular” e “O crédito que a Autora pretende apurar não surge conectado com qualquer relação jurídica administrativa mas antes com uma relação de direito privado – incumprimento de uma obrigação resultante da celebração de um contrato de prestação de serviços”.
9- Toda a lógica da decisão proferida pelo TAF assentou, pois, numa relação estabelecida entre a Autora e um particular (justamente, o referido António Mota Frago) com a celebração de um contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e de recolha de resíduos e girou à volta do incumprimento da contraprestação a que o particular se obrigou e do consequente crédito daí resultante para a Autora.
10- É um facto que a Mª. Juíza que proferiu a decisão, mais tarde veio rectificar o nome do Réu. – doc. 1.
11- Todavia, não atentou em que isso alterava toda a lógica da situação de facto apreciada e que nada tinha a ver com a situação constante da injunção instaurada pela Autora.
12- Na verdade, o Réu não era nenhum particular, mas antes o Município de Valença, que é uma pessoa colectiva territorial de direito público.
13- E também o litígio não assentava, simplesmente, num mero contrato de prestação de serviços, mas antes num contrato de fornecimento contínuo de água “em alta” e de recolhe de efluentes, celebrado entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho e Lima (mais tarde, do Noroeste).
14- Ele assentava, essencialmente, num Protocolo celebrado entre as partes outorgantes no mesmo, a então concessionária Águas do Minho e Lima, S. A. e o Município de Valença, com direitos e obrigações de diferente natureza nele estabelecidos e abrangendo matérias variadas, nomeadamente o desenvolvimento dos projectos de execução das redes de distribuição de água e de recolha de efluentes em “baixa” do Município Réu, com a promoção dos respectivos procedimentos pré-contratuais públicos de acordo com o regime previsto para a contratação pública, o desenvolvimento do Plano de Acção para a realização das redes de distribuição de água e de recolhe de efluentes em “baixa” de todo o Sistema, incluindo as do Município Réu, com a definição dos montantes totais do investimento, o cronograma de desenvolvimento e as prioridades, de modo a poderem ser objecto de candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN que vigoraria entre 2007 e 2013, a transferência para o Município dos projectos de execução desenvolvidos no âmbito do Protocolo, a forma do seu pagamento, etc., etc. – cfr. doc. 6.
15- Por outro lado, a Autora foi constituída pelo DL. 41/2010, de 29 de Abril, que simultaneamente criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, integrando como utilizadores originários os municípios de Amarante, Amares, Arcos de Valdevez, Barcelos, Cabeceiras de Basto, Caminha, Celorico de Basto, Esposende, Fafe, Felgueiras, Guimarães, Lousada, Maia, Melgaço, Monção, Mondim de Basto, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Póvoa de Lanhoso, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Terras do Bouro, Trofa, Valença, Viana do Castelo, Vieira do Minho, Vila do Conde, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Famalicão, Vila Verde e Vizela, sendo que o mesmo veio substituir o sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do norte da área do Grande Porto, criado pela alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto -Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho - Lima, criado pelo Decreto –Lei n.º 158/2000, de 25 de Julho (no qual o Réu se integrava), e o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Vale do Ave, criado pelo Decreto -Lei n.º 135/2002, de 14 de Maio. – cfr. artigos 1º, 2º e 4º.
16- A Autora é, aliás, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, constituída mediante a fusão das sociedades Águas do Cávado, S. A., Águas do Minho e Lima, S. A., e Águas do Ave, S. A. – artigo 4º/1.
17- Nos termos do artigo 10º, o membro do Governo responsável pela área do ambiente ficou autorizado a celebrar em nome e representação do Estado o contrato de concessão do sistema com a Autora, a ser outorgado no prazo máximo de dois meses contados da data de entrada em vigor do diploma, retroagindo os seus efeitos ao 1.º dia útil do mês seguinte àquele em que se viesse a operar a fusão das sociedades, prevista no n.º 3 do artigo 4.º do mesmo.
18- E sendo ainda que, nos termos do artigo 11.º, a articulação entre o sistema explorado e gerido pela concessionária (isto é, pela Autora) e o sistema correspondente de cada um dos municípios utilizadores seria assegurada através de contratos de fornecimento e recolha a celebrar entre a concessionária e cada um dos municípios.
19- E a verdade é que a Autora veio a celebrar com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de Junho de 2010, a referida concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a conceção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, ficando, em consequência, investida em várias prerrogativas de direito público, incluindo o direito de recorrer ao instituto das expropriações por utilidade pública.
20- E foi nessa qualidade de concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste que a Autora (e a sua antecessora, Águas do Minho e Lima, S.A., que também ela tinha celebrado com o Estado Português um contrato de concessão semelhante), estabeleceram relações com o Réu e com os restantes municípios por ele abrangidos, seja no que respeita ao Protocolo de Espinho, que adiante se fará referência, seja em relação aos fornecimentos de água em “alta” e de recolha de efluentes, que constituía sua obrigação nos termos da concessão já referida.
21- Estamos, assim, claramente, no domínio de relações de duas entidades que prosseguem interesses públicos relevantes e que nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos.
22- Por isso, as relações entre si estabelecidas são relações administrativas e a resolução dos respectivos conflitos compete, claramente, aos tribunais da jurisdição administrativa, e jamais aos tribunais judiciais.
23- E mesmo os contratos de aquisição de serviços ou de prestação de serviços (na óptica do prestador) celebrados pelo Município, seja com um particular, seja, por maioria de razão, com um concessionário de serviço público ou de exploração de bens do domínio público, são sempre contratos de direito administrativo, como claramente são definidos nos artigos 1º/6, 278º e 450º do Código dos Contratos Públicos.
24- Está, pois, em causa matéria que se integra no âmbito da jurisdição administrativa.
25- Pelo que se verifica a invocada incompetência material deste Tribunal.
26- A incompetência absoluta do Tribunal constitui excepção dilatória que expressamente se invoca. – arts. 101.º, 105.º, 493º/1 e 2, 494º/a) e 495º do CPC.
27- O Tribunal encontra-se, assim, impossibilitado, de conhecer do mérito da causa, motivo pelo qual se impõe a absolvição da instância do R. Município de Valença.
A Autora responde alegando o seguinte:
1. Alega o R. a incompetência material deste tribunal para a presente causa.
2. É certo que se tem entendido, maioritariamente, que para a matéria como a que neste processo se discute são competentes os Tribunais Administrativos.
3. Por essa razão, indicou a A., anteriormente à propositura desta acção e como tribunal competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga
4. Todavia, tem vindo a ser entendido, e cada vez mais frequentemente, que os competentes serão os Tribunais Tributários (cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo nº 15/12, de 02/05/2012) e, também cada vez com mais insistência, que o são os Tribunais Comuns.
5. Na verdade, alterações legislativas relativamente recentes têm vindo a dar cada vez maior consistência à tese da competência dos Tribunais Comuns, entre outras razões pelas seguintes: “A prestação dos serviços de águas e resíduos, enquanto serviços públicos essenciais, é feita ao abrigo de um contrato de consumo, regendo-se consequentemente, pelo direito privado. No que não esteja previsto nas normas especiais da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (lei nº23/96 de 26 de Julho, alterada e republicada pela Lei 12/2008 de 26 de Fevereiro) e do regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento de água e saneamento e águas residuais de gestão dos resíduos urbanos (Decreto-Lei nº 194/2009 de 20 de Agosto), serão aplicáveis as normas gerais de direito privado. Assim, estando em causa preços e não taxas, a competência para o conhecimento de processos relativos às questões dos contratos de fornecimento de água, quer relativos às ligações, quer às quantias mensais do consumo, afigura-se pertencer aos Tribunais comuns”.1
6. Por outro lado, são inúmeras as decisões proferidas pelos Tribunais Comuns relativas a diferendos entre serviços municipalizados de abastecimento e saneamento, ou empresas públicas ou privadas concessionárias daqueles serviços, e aqueles a quem eles são prestados, nomeadamente municípios, algumas das quais percorrendo todas as instâncias sem que a questão da competência – que é de conhecimento oficioso e em primeiro lugar – tenha sequer chegado a levantar-se, antes tendo a competência sido declarada expressamente e sem qualquer impugnação, do que são exemplos o processo nº 9737/02, constante da Base de Dados do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no respectivo site com o nº convencional JSTJ000, o processo nº 424457/09.0YIPRT.P1.S1, publicado na base de dados da DGSI, em que como nº convencional consta “2ª Secção”, cujos doutos Acórdãos foram proferidos, respectivamente, aos 27.03.2003 e aos 10.05.2012.
424457/09.0YIPRT.P1.S1 – João Bernardo

7. Em tais decisões entendeu-se, ou não se pôs em causa, que os contratos como o sub iudice são normais contratos de prestação de serviços (ou de fornecimento ou, ainda, de consumo) que se regem pelo direito privado.
8. Entre outras razões porque Lei das Finanças Locais (Lei 2/2007 de 15.01), no seu artigo 16º, respeitante ao abastecimento público de água, contrariamente ao que sucedia com a Lei 42/98 de 06.08 que a antecedeu, deixou de, ao lado dos “preços”, referir “tarifas”,
9. O que há-de conjugar-se com o que dispõe o DL 194/2009 de 20.08, que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas 1 Cfr. Acórdão do STA, de 02.05.2012, DGSI , nº convencional JSTA000P14082, processo 015/12. residuais e de gestão de resíduos urbanos, a qual trata de modo unitário as relações de todas as entidades gestoras daqueles serviços públicos com os consumidores,
10. Diploma esse que, inclusivamente, utiliza para essas relações jurídicas terminologia própria das relações de direito comercial, como seja “facturação” (art. 67º), bem diferente e, mesmo, contrastante com a expressão “liquidação”, própria dos actos que definem dívidas de natureza tributária.
11. A A. é uma sociedade anónima de direito comercial, sendo o R. uma pessoa colectiva de direito público, que, nas suas relações com aquela, age sem qualquer supremacia ou jus imperii , antes em plena igualdade do ponto de vista contratual.
12. A questão destes autos assenta, entre outros com ela conexos, instrumentais ou complementares, numa prestação de serviços, a qual constitui matéria cível.
13. Assim, não cabe em qualquer das previsões do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002 de 19.02).
14. É certo que, dado que tem vindo a ser decidido serem competentes para questões análogas à dos autos, quer os Tribunais Comuns, quer os Tribunais Administrativos, sempre poderia a aqui A. haver recorrido do despacho proferido pelo TAF de Braga, doc. 1 junto com a inicial, tendo, no entanto, optado por, ao abrigo e nos termos do disposto no artigo 289º CPC intentar a presente acção.
15. São, pois, competentes os Tribunais Comuns, e é-o especificamente este Tribunal para julgar o presente diferendo, devendo a alegada excepção ser julgada improcedente.
Cumpre apreciar e decidir:
Com os fundamentos jurídicos e jurisprudenciais alegados pela Autora na réplica, com os quais se concorda e que, por economia processual aqui se dão por reproduzidos, julga-se este Tribunal competente em razão da matéria.
O Tribunal é competente também em razão da hierarquia.
O processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem de todo.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, estando regularmente representadas e patrocinadas.
Inexistem outras nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Excepciona o Réu a prescrição de alguns créditos e a caducidade do direito de acção com os seguintes fundamentos:
1- Verifica-se a excepção peremptória de prescrição relativamente aos valores a que se referem as notas de débito nºs. 2300000044, 2300000159, 2300000160, 2300000161, 2300000162, 2300000163 e 2300000236, referidas pela Autora no item 11º do seu articulado.
2- Com efeito, as mesmas tiveram origem no fornecimento de água e recolha de efluentes, águas residuais e resíduos.
3- Que são serviços públicos essenciais para os efeitos da Lei nº. 23/96, de 26.07, alterada pelas Leis nºs. 12/2008, de 26 de Fevereiro e 24/2008, de 2 de Junho– cfr. artigo 1º/2/a) f) e g).
4- Trata-se de notas de débito do ano de 2010, ou seja, com muito mais de 6 meses – artigo 10º/1 da citada lei.
5- Se a obrigação se encontra, como na verdade sucede, prescrita, prescritos estão igualmente os eventuais juros de mora respectivos.
6- Sendo que se trata de prescrição de natureza extintiva, que expressamente se invoca e que tem como efeito a absolvição do Município do pedido – artigos 493º/1 e 3 do CPC.
7- No limite, e se porventura assim se não entendesse, pelo menos haveria que considerar-se que já caducou o direito por parte da Autora à instauração da acção, nos termos do artigo 10º/4 do mesmo diploma, pois que sempre decorreram muito mais do que seis meses contados do pagamento inicial.
8- A caducidade do direito de acção constitui excepção dilatória, que expressamente se invoca e que tem como causa a absolvição do Réu da instância, nos termos dos arts. 494º/corpo, 493º/1 e 2, 495º, 288º/1/e) e 289º, todos do CPC.
A Autora responde a estas excepções nos seguintes termos:
1- Alega o R. a prescrição das notas débito que constituem os doc.s 3 a 11 da inicial.
2- Sucede, porém, que o DL 319/94, de 24 de Dezembro, que consagra o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, republicado pelo DL 195/2009, de 20 de Agosto, e aplicável ao caso sub judice, estipula no n.º 3 da Base XXXI, que as dívidas dos utilizadores em mora prescrevem ao fim de dois anos após a emissão das respectivas facturas.
3- É este o regime aplicável às peticionadas dívidas do R. à A., e não o regime previsto na Lei 23/96 de 26 de Julho, o qual visa a defesa do consumidor final, isto é, daqueles que adquirem os bens para seu consumo próprio – veja-se, a este propósito Ac. de 19.01.2012 do Tribunal Central Administrativo do Sul, P. nº 6933/10 in www.dgsi.pt.
4- Acresce que, na presente acção o que se peticiona, relativamente às referidas notas de débito, é o pagamento de juros de mora.
5- Ora, não havendo na lei disposição em contrário, os juros convencionais ou legais prescrevem ao fim de cinco anos. 6- Assim, e ao contrário do que o Réu pretende fazer crer, não estão os créditos em causa prescritos.
Da caducidade
7- O referido DL 319/94, de 24 de Dezembro, não estipula qualquer prazo de caducidade para a propositura da acção ou injunção pelo prestador do serviço,
8- Pelo que não caducou o direito da A. de instaurar a presente acção.
Cumpre apreciar e decidir:
Em tudo tem razão a Autora, pelo que com os fundamentos pela mesma invocados e que, por brevidade aqui dou por reproduzidos e quanto ao prazo de prescrição dos juros com fundamento no disposto no art. 310º alª d) do Cód. Civil, julgo improcedentes as excepções peremptórias de caducidade do direito de ação e da prescrição dos créditos invocadas pelo Réu.
Inexistem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
O Réu invoca a excepção dilatória de violação de convenção de arbitragem, com os seguintes fundamentos:
1- Verifica-se esta excepção, pelo menos quanto ao que se refere à tentativa de cobrança da quantia de € 66.787,28 a que se refere a nota de débito nº 2300000222.
2- Com efeito, a Autora veio exigir ao Réu o pagamento de tal quantia ao abrigo do designado “Protocolo de Espinho”, celebrado entre a ex-Águas do Minho e Lima, S.A. e o Município de Valença em 5 de Junho de 2006. – cfr. docs. 2 a 6.
3- Nos termos da cláusula 9ª do mesmo, foi expressamente previsto que, em caso de desacordo ou litígio relativamente à interpretação ou execução do Protocolo, as partes diligenciariam no sentido de alcançar, por acordo amigável, uma solução adequada e equitativa e, não sendo a mesma possível, as partes deveriam recorrer à arbitragem, cujos termos, inclusivamente, previram nos nºs. 3, 4 e 5 da mesma cláusula.
4- Ora, a Autora, mais uma vez, desconsiderou de todo o texto do Protocolo que celebrou.
5- E decidiu recorrer ao presente meio, em vez de recorrer à arbitragem conforme foi convencionado entre as partes.
6- Verifica-se, assim, a violação de convenção de arbitragem, que constitui uma excepção dilatória, que expressamente se invoca e que tem como causa a absolvição do Réu da instância, nos termos dos arts. 494º/j), 493º/1 e 2, 495º, 288º/1/e) e 289º, todos do CPC.
A Autora responde a esta excepção nos seguintes termos:
1- Estipula a cláusula 9º do protocolo junto aos autos que cada uma das partes poderá a todo o momento recorrer a arbitragem.
2- O referido protocolo, ao contrário do que pretende o R., não impõe às partes o recurso, em caso de litígio, a Tribunal Arbitral,
3- Limitando-se a consagrar tal faculdade.
4- Tendo sido o recurso ao Tribunal Arbitral clausulado como uma faculdade, e não como uma obrigação,
5- Qualquer dos outorgantes, em caso de diferendo, poderia optar por recorrer aos tribunais do Estado ou a um tribunal arbitral, devendo, neste último caso, ser ele constituído de acordo com o mais clausulado no protocolo junto aos autos.
6- Ora, limitou-se a A. a optar pelo recurso a Tribunal do Estado.
7- Nestes termos, carece de razão o R. ao alegar a exceção de preterição de tribunal arbitral.
8- Na verdade, caso a vontade das partes houvesse sido a de dotar a jurisdição arbitral de competência exclusiva, teriam formulado cláusula que traduzisse essa vontade por emprego de termos como deverá cada uma das partes ou terá cada uma das partes de recorrer a arbitragem, ou ainda recorrerá.
Cumpre apreciar e decidir:
Também aqui a Autora tem razão. O Protocolo junto a fls 49 a 58 consagra a faculdade e não a obrigatoriedade do recurso à arbitragem.
Pelo exposto, julgo improcedente esta excepção.
Inexistem outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
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As questões a decidir são de facto e de direito, não habilitando os autos a que se conheça desde já do seu mérito.
II. Matéria de Facto Assente:
A) A Autora é uma empresa que se dedica, com o intuito lucrativo, à construção, gestão e exploração de sistemas multimunicipais de abastecimento de água e de saneamento na região noroeste do país.
B) Foi constituída pelo DL 41/2010 de 29 de Abril de 2010 e, nos termos do art. 4º, nº 1 do referido diploma, resulta da fusão das sociedades “ÁGUAS DO MINHO E LIMA, S.A.”, ÁGUAS DO CÁVADO, S.A.” e “ÁGUAS DO AVE, S.A.”, em cujos direitos e obrigações sucedeu (nº 3 do mesmo preceito).
C) “A ÁGUAS DO MINHO E LIMA, S. A.”, era uma empresa com fim e objecto idênticos aos da A.
D) No exercício das respectivas actividades e funções, a “ÁGUAS DO MINHO E LIMA, S. A.” elaborou, para o R., diversos projectos de execução de redes de distribuição de água e de recolha de efluentes “em baixa”, no valor de € 55.196,10, a que acresce o IVA à taxa então em vigor, num total de € 66.787,28, tudo conforme nota de débito nº 2300000222, de 30.12.2010 junta a fls 7 verso, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
E) Ainda no exercício da sua actividade, tanto a “ÁGUAS DO MINHO E LIMA, S. A.” antes da fusão, como a A., posteriormente a ela, prestaram ao R. os serviços de recolha e tratamento de efluentes no período compreendido entre Janeiro e Outubro de 2010, correspondentes às facturas com os números, os valores e datas de vencimento constantes dos anexos às notas de débito nº 2300000044, nº 2300000159, nº 2300000160, nº 2300000161, nº 2300000162, nº 2300000163 e nº 2300000236 emitidas, a primeira aos 31/03/2010, a última aos 30/12/2010 e todas as restantes aos 30/11/2010, facturas aquelas no valor global de € 269.178,76, docs. 3 a 9 juntos com a petição inicial e que aqui se dão por reproduzidos.
F) As facturas aludidas em E) foram pagas nas datas que respectivamente constam no quadro a fls 16 verso e que aqui se dá por reproduzido.
G) Dá-se por reproduzido o teor do Protocolo junto a fls 49 a 58.
H) O Regulamento Específico “Ciclo Urbano da Água” “Vertente em Baixa – Modelo Não Verticalizado” nada refere relativamente à não elegibilidade de Estudos e Projectos, sendo que, pelo contrário, na alínea i) do ponto 1 do artigo 6º - Tipologia de operações -, se consagra que “1. São elegíveis as seguintes tipologias de operações” … i) Estudos, projectos e assessoria (excluem-se os Planos Gerais, os Planos Directores e o próprio DEE)”.
I) Também o Regulamento Específico “Rede Estruturante de Abastecimento de Água e Saneamento”, nada refere à não elegibilidade de Estudos e Projectos, sendo que, pelo contrário, na alínea i) do artigo 10º, Despesas Elegíveis”, lê-se que são elegíveis a co-financiamento comunitário “i) Estudos, Projectos e Assessorias, excluindo-se Planos Gerais, Planos e Estudos Directores e o próprio Documento de Enquadramento Estratégico”.
J) O Regulamento Geral FEDER enuncia as despesas que não são consideradas elegíveis no seu Anexo, nada constando do mesmo, no entanto, relativamente à não elegibilidade de projectos que não integrem simultaneamente a execução física das obras correspondentes.
III. Base Instrutória:
A sociedade Águas do Minho e Lima, SA não promoveu a constituição de qualquer grupo de trabalho, pelo menos não o comunicou ao Município, nem deu a hipótese ao mesmo de designar qualquer seu representante que pudesse acompanhar o procedimento précontratual, que pudesse participar na definição das peças de tal procedimento, na definição do critério de adjudicação, na avaliação das propostas, na adjudicação?
Assim impediu o Município de poder zelar pelos seus interesses financeiros e controlar a regularidade, a bondade, o valor da adjudicação, a escolha do co-contratante?
A Autora e a sua antecessora entenderam unilateralmente proceder conforme muito bem entenderam, escolhendo quem quiseram, com o critério que quiseram e pelo preço que entenderam?
Impedindo o Município de se pronunciar, de defender os seus interesses, de adoptar medidas de racionalização e controlo de custos?
O pressuposto que foi utilizado para convencer os vários Municípios a celebrar Protocolos, todos de idêntico conteúdo ao referido em G), foi que os custos do projecto seriam objecto de uma candidatura a fundos comunitários, pelo que cada um dos Municípios – Réu incluído, – apenas teria de suportar o pagamento correspondente à componente nacional do financiamento, no valor de 25% daqueles custos?
Foi com base nesse pressuposto que então foi adiantado e garantido pela então Águas do Minho e Lima, S.A., que o Réu celebrou o citado Protocolo?
A Autora vem agora proceder à cobrança da totalidade dos custos da elaboração dos projectos?
Para o Réu tal pressuposto foi absolutamente determinante para aceitar assumir a sua obrigação de pagamento dos custos de elaboração dos projectos?
Não fora esse pressuposto e jamais o Município teria aceite arcar com o pagamento da totalidade dos referidos custos?
10º
Verificou-se um investimento de confiança do Réu em relação a todos os efeitos normais e previsíveis por qualquer declaratário de inteligência e diligência medianas resultantes do pressuposto que lhe foi garantido pela Autora e o levou a assinar o Protocolo referido?
11º
Como é óbvio, o Réu confiou plenamente na palavra e comportamento, pressuposto e garantia dada pela antecessora da Autora?
12º
Qualquer destinatário medianamente avisado, inteligente, diligente e prudente teria criado a convicção de que assim seria e de que, por isso, ninguém lhe exigiria outro pagamento que não fosse o correspondente a 25% dos custos da elaboração dos projectos?
13º
A posição ultimamente adoptada pela Autora é a de que os Regulamentos do QUREN não contemplam a comparticipação nos custos de estudos e projetos que não integram simultaneamente a execução física das obras correspondentes?
14º
Por isso não teria a mesma apresentado a respectiva candidatura?
15º
Competia à Sociedade Águas do Minho e Lima, S.A., apresentar a candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN, o que não fez?
16º
A referida sociedade nunca cumpriu o disposto na cláusula 11º do Protocolo referido em G)?
17º
Nunca tendo notificado o Réu da obtenção de qualquer autorização do Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.
*
Notifique, nos termos do art. 512º do CPC.”

Desta decisão interpôs recurso a Ré Município de Valença, terminando com as seguintes conclusões:
I. Salvo o devido respeito, o douto despacho recorrido é nulo por total falta de fundamentação, porquanto a M.ª Juiz a quo se limitou a transcrever as alegações das partes relativamente às excepções de incompetência material do tribunal, prescrição de créditos, caducidade do direito de acção e violação de convenção de arbitragem, para concluir que concordava com os fundamentos da A., aderindo na íntegra aos mesmos.
II. No douto despacho recorrido fica-se apenas a saber qual foi a conclusão a que a M.ª Juiz a quo chegou, mas não o raciocínio lógico que o julgador levou a cabo para chegar à conclusão a que chegou, que argumentos, elementos e normas legais que ponderou, que interpretações jurídicas é que fez, que efeitos jurídicos é que se podem retirar dessas interpretações, que jurisprudência e doutrina é que considerou e, acima de tudo, porque decidiu no sentido em que o fez e não noutro qualquer, omitindo por completo a exposição das razões da sua decisão num discurso próprio, assente numa análise e ponderação também próprias.
III. Existe total omissão dos fundamentos de direito em que radica a decisão, sendo que a análise, a ponderação e a fundamentação das premissas que permitem concluir pela improcedência das excepções em causa, teriam que estar perfeitamente claras no texto do douto despacho recorrido, pelo que foram violadas as normas dos arts. 205.º/1 da CRP, 158.º e 659º/2 do CPC e valendo o despacho na parte em que apreciou as excepções como sentença, verifica-se a nulidade do mesmo, nos termos do art. 668.º/1/b) do CPC.
IV. Em todo o caso, o Tribunal a quo decidiu incorrectamente a matéria relativa à excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria.
V. Anteriormente à propositura desta acção a A. instaurou contra o R. injunção, indicando como tribunal competente, para o caso de a injunção vir a dar lugar a acção judicial, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, sendo que à injunção foi deduzida oposição, pelo que o processo foi remetido para aquele Tribunal, onde deu lugar ao processo nº 1866/12.7BEBRG, onde foi decidida a incompetência material do TAF, por ter sido entendido que a competência pertencia aos tribunais comuns, face ao que foi decidida a absolvição do R. da instância, decisão que transitou em julgado, sendo que, todavia, e sempre ressalvado o devido respeito, o Tribunal Judicial de Barcelos é incompetente em razão da matéria para a apreciação do litígio, verificando-se, pois, a sua incompetência absoluta.
VI. Atentando-se na douta decisão proferida pelo TAF de Braga, logo se intui que a mesma incorreu em manifesto lapso, sendo que toda a lógica da decisão assentou numa relação pretensamente estabelecida entre a A. e um particular (o Sr. António Mota Frago) com a celebração de um contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e de recolha de resíduos e girou à volta do incumprimento da contraprestação a que o particular se obrigou e do consequente crédito daí resultante para a A.
VII. É um facto que a Mª. Juíza que proferiu a decisão, mais tarde veio rectificar o nome do R., sendo que, não atentou, todavia, em que isso alterava toda a lógica da situação de facto apreciada e que nada tinha a ver com a situação constante da injunção instaurada pela A., porquanto o R. não era nenhum particular, mas antes o Município de Valença, que é uma pessoa colectiva territorial de direito público e também o litígio não assentava, simplesmente, num mero contrato de prestação de serviços, mas antes num contrato de fornecimento contínuo de água “em alta” e de recolhe de efluentes, celebrado entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho e Lima (mais tarde, do Noroeste).
VIII. Ele assentava, essencialmente, num Protocolo celebrado entre as partes outorgantes no mesmo, a então concessionária Águas do Minho e Lima, S. A. e o Município de Valença, com direitos e obrigações de diferente natureza nele estabelecidos e abrangendo matérias variadas, nomeadamente o desenvolvimento dos projectos de execução das redes de distribuição de água e de recolha de efluentes em “baixa” do Município Réu, com a promoção dos respectivos procedimentos pré-contratuais públicos de acordo com o regime previsto para a contratação pública, o desenvolvimento do Plano de Acção para a realização das redes de distribuição de água e de recolhe de efluentes em “baixa” de todo o Sistema, incluindo as do Município Réu, com a definição dos montantes totais do investimento, o cronograma de desenvolvimento e as prioridades, de modo a poderem ser objecto de candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN que vigoraria entre 2007 e 2013, a transferência para o Município dos projectos de execução desenvolvidos no âmbito do Protocolo, a forma do seu pagamento, etc., etc.
IX. Por outro lado, a A. foi constituída pelo DL. 41/2010, de 29 de Abril, que simultaneamente criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, integrando como utilizadores originários os municípios de Amarante, Amares, Arcos de Valdevez, Barcelos, Cabeceiras de Basto, Caminha, Celorico de Basto, Esposende, Fafe, Felgueiras, Guimarães, Lousada, Maia, Melgaço, Monção, Mondim de Basto, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Póvoa de Lanhoso, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Terras do Bouro, Trofa, Valença, Viana do Castelo, Vieira do Minho, Vila do Conde, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Famalicão, Vila Verde e Vizela, sendo que o mesmo veio substituir o sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do norte da área do Grande Porto, criado pela alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto -Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho -Lima, criado pelo Decreto –Lei n.º 158/2000, de 25 de Julho (no qual o Réu se integrava), e o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Vale do Ave, criado pelo Decreto -Lei n.º 135/2002, de 14 de Maio.
X. A A. é, aliás, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, constituída mediante a fusão das sociedades Águas do Cávado, S. A., Águas do Minho e Lima, S. A., e Águas do Ave, S. A., sendo que, nos termos do artigo 10º, o membro do Governo responsável pela área do ambiente ficou autorizado a celebrar em nome e representação do Estado o contrato de concessão do sistema com a A., a ser outorgado no prazo máximo de dois meses contados da data de entrada em vigor do diploma, retroagindo os seus efeitos ao 1.º dia útil do mês seguinte àquele em que se viesse a operar a fusão das sociedades, prevista no n.º 3 do artigo 4.º do mesmo e, nos termos do artigo 11.º, a articulação entre o sistema explorado e gerido pela concessionária (isto é, pela A.) e o sistema correspondente de cada um dos municípios utilizadores seria assegurada através de contratos de fornecimento e recolha a celebrar entre a concessionária e cada um dos municípios.
XI. A A. veio a celebrar com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de Junho de 2010, a referida concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a concepção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, ficando, em consequência, investida em várias prerrogativas de direito público, incluindo o direito de recorrer ao instituto das expropriações por utilidade pública, tendo sido nessa qualidade de concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste que a A. e ora recorrida (e a sua antecessora, Águas do Minho e Lima, S.A., que também ela tinha celebrado com o Estado Português um contrato de concessão semelhante), estabeleceram relações com o R. e com os restantes municípios por ele abrangidos, seja no que respeita ao Protocolo de Espinho, que adiante se fará referência, seja em relação aos fornecimentos de água em “alta” e de recolha de efluentes, que constituía sua obrigação nos termos do a concessão já referida.
XII. Estamos, assim, claramente no domínio de relações entre duas entidades que prosseguem interesses públicos relevantes e que nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos, daí que as relações entre si estabelecidas são relações administrativas e a resolução dos respectivos conflitos compete, claramente, aos tribunais da jurisdição administrativa, e jamais aos tribunais judiciais.
XIII. E mesmo os contratos de aquisição de serviços ou de prestação de serviços (na óptica do prestador) celebrados pelo Município, seja com um particular, seja, por maioria de razão, com um concessionário de serviço público ou de exploração de bens do domínio público, são sempre contratos de direito administrativo, como claramente são definidos nos artigos 1º/6, 278º e 450º do Código dos Contratos Públicos, pelo que, ao contrário daquilo que a A. alega e que o despacho recorrido subscreve, não estamos perante relações de direito privado nem perante contratos de prestação de serviços no âmbito do direito privado, nem muito menos as partes se encontram numa posição de igualdade do ponto de vista contratual.
XIV. Aliás, a própria A. no ponto 2. da réplica que apresentou nos autos, vem admitir que “É certo que se tem entendido, maioritariamente, que para a matéria como a que neste processo se discute são competentes os Tribunais Administrativos” Por essa razão, indicou a A., anteriormente à propositura desta acção e como tribunal competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga”, pelo que dúvidas não podem existir de que o Tribunal competente para apreciar o presente litígio é o TAF de Braga.
XV. Sem prescindir do acima alegado, sempre se dirá que o douto despacho recorrido, na parte em que julgou improcedentes as excepções peremptórias de prescrição e de caducidade do direito de acção relativamente aos valores a que se referem as notas de débito nºs. 2300000044, 2300000159, 2300000160, 2300000161, 2300000162, 2300000163 e 2300000236, decidiu incorrectamente porquanto as mesmas se verificam efectivamente, o que impunha a absolvição do R. da instância.
XVI. Os valores peticionados pela A. relativos àquelas notas de débito tiveram origem no fornecimento de água e recolha de efluentes, águas residuais e resíduos, que são serviços públicos essenciais para os efeitos da Lei nº. 23/96, de 26.07, alterada pelas Leis nºs. 12/2008, de 26 de Fevereiro e 24/2008, de 2 de Junho, pelo que, face ao disposto na alínea a) e f) do n° 2 do artigo 1º da mesma, e considerando que se trata de contratos de fornecimento de água e de recolha de efluentes os existentes entre a A. e o R., ter-se-á que entender que se aplica às relações entre os mesmos o regime legal previsto na citada Lei, porquanto à recorrente no âmbito do protocolo celebrado são - lhe prestados serviços públicos essenciais.
XVII. Nos termos do disposto no art. 1.º/3 do diploma citado, é utente toda "a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo”, sendo que o âmbito de aplicação da Lei 23/96 não se restringe aos meros consumidores finais, sendo, por isso, o Município de Valença utente para efeitos da mesma e sendo-lhe esta aplicável, e não o referido DL n.º 319/94 de 24 de Dezembro, como o douto despacho recorrido entendeu.
XVIII. O art. 10.º/ 1 da Lei n.º 23/96, dispõe que o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação, pelo que, tratando-se de notas de débito do ano de 2010, ou seja, com muito mais de 6 meses, a obrigação encontra-se prescrita assim como prescritos estão também os eventuais juros de mora respectivos, nos termos da Lei n.º 23/96, não sendo, por isso, aplicável ao caso o disposto no art. 310.º/d) do C.C.
XIX Trata-se de prescrição de natureza extintiva, que tem como efeito a absolvição do R. do pedido. – arts. 493º/1 e 3 do CPC.
XX. No limite, e se porventura assim se não entendesse, pelo menos haveria que considerar-se que já caducou o direito por parte da A. à instauração da acção, nos termos do artigo 10º/4 do mesmo diploma, pois que sempre decorreram muito mais do que seis meses contados do pagamento inicial.
XXI. O douto despacho recorrido, na parte em que julgou improcedente a excepção de violação de convenção de arbitragem, decidiu incorrectamente, porquanto a mesma se verifica efectivamente.
XXII. A A. veio exigir ao R. o pagamento de quantia de € 66.787,28 a que se refere a nota de débito nº. 2300000222 ao abrigo do “Protocolo de Espinho”, celebrado entre a ex-Águas do Minho e Lima, S.A. e o Município de Valença em 5.06.2006, resultando do texto da cláusula 9.º/1 do mesmo que “Em caso de desacordo ou litígio relativamente à interpretação ou execução deste Protocolo, as partes diligenciarão no sentido de alcançar, por acordo amigável, uma solução adequada e equitativa” e do n.º 2 da mesma que “No caso de não ser possível uma solução negociada e amigável nos termos previstos no número anterior, cada uma das partes poderá a todo o tempo recorrer a arbitragem, nos termos dos números seguintes”.
XXIII. O facto de a cláusula do protocolo dizer que as partes podem recorrer a Tribunal Arbitral, mas não impondo tal obrigação, é perfeitamente inócua, porquanto não nos podemos socorrer exclusivamente do texto e da interpretação literal da estipulação convencionada para concluir que a presente acção foi correctamente instaurada no Tribunal Judicial de Barcelos, tal como parece ter feito o douto despacho recorrido, sendo necessário atender a que a convenção de arbitragem está submetida às regras de interpretação do negócio jurídico consagradas no C.C., e, por isso, atender à vontade das partes aquando da celebração do Protocolo.
XXIV. Ora, de um declaratário médio ou normal não seria de esperar, sem que tal compromisso de competência concorrente dos tribunais arbitrais e estaduais estivesse objectiva e suficientemente consagrado na referida cláusula ou em qualquer outra, ainda que de forma menos perfeita, extrair uma interpretação no sentido de que as partes que celebraram o Protocolo, tivessem querido estipular uma cláusula que contemplasse a competência do tribunal arbitral concorrente com a dos tribunais da ordem judiciária comum, no caso, o Tribunal de Barcelos.
XXV. Não só nada permite concluir nesse sentido, já que nada vem assim expresso ou, sequer, referido indirectamente pelas partes, como tudo aponta em sentido contrário, ou seja, que foi da vontade das partes subordinar exclusivamente ao tribunal arbitral qualquer “desacordo ou litígio relativamente à interpretação ou execução deste Protocolo”.
XXVI. A pormenorizada e exaustiva regulamentação que no aludido protocolo se faz da cláusula 9.ª (especialmente os n.ºs 3, 4 e 5 da mesma), sem qualquer alusão a tribunal não arbitral para a decisão de direito nas referidas matérias, indicia claramente que ambas as partes orientaram a vontade contratual no sentido da exclusividade de competência da jurisdição arbitral.
XXVII. Em nenhum dos números da cláusula 9.ª do protocolo é feita qualquer referência à ordem jurisdicional estatal, pelo que, dúvidas não restam de que da redacção da cláusula compromissória resulta um sentido claro de opção das partes contratuais, pela atribuição de competência exclusiva ao tribunal arbitral e não de uma competência concorrente com a da ordem judiciária comum.
XXVIII. Por outro lado, dado que no caso presente, o negócio jurídico celebrado é um negócio formal, na medida em que a lei prescreve a forma escrita para a convenção de arbitragem – art. 2.º da Lei n.º 31/86 de 29 de Agosto - , tal circunstância reforça mais ainda o entendimento supra exposto.
XXIX. O termo “poderá”, inserto na cláusula 9.º do Protocolo não se conexiona directamente com a opção pela competência jurisdicional clausulada, mas apenas com a condição (constante do n.º 1) de as partes tentarem uma via conciliatória (acordo amigável, como consta do texto), antes de enveredarem pela contenciosa, e só em caso de frustração de tal via, ficarem livres para (poderem) enveredar pela via contenciosa por recurso à arbitragem, como se colhe da expressão: “ No caso de não ser possível uma solução negociada e amigável … cada uma das partes poderá a todo o tempo recorrer a arbitragem, nos termos dos números seguintes”, ou seja, a palavra “podem” não significa mais do que permissão de recurso à segunda fase, litigiosa, ultrapassada, sem êxito, a tentativa amigável de resolução do litígio.
XXX. Neste mesmo sentido, decidiu o douto Acórdão do STJ de 20.01.2011 (Processo 2207/09.6 TBSTB.E1.S1), in www.dgsi.pt, relativamente à interpretação de cláusula compromissória inserta em contrato de prestação de serviços, com redacção em tudo idêntica à cláusula ora em análise.
XXXI. Salvo o devido respeito, foram violadas as normas dos arts. 205.º/1 da CRP, 158.º/1/2 e 659.º/2 por analogia do CPC (quanto falta de fundamentação do despacho recorrido), arts. 66º a contrario, 67º, 101º, 105.º, 288.º/1/a), 493.º/2, 494.º/a), 212º/3 da CRP, 18.º da LOFTJ, 1.º/1 e 4º/1/e) e f) e j) do ETAF e 1º/6, 278º e 450º do CCP (Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo DL. n.º 18/2008 de 29 de Janeiro) (quanto à incompetência do tribunal em razão da matéria), arts. 288.º/1/e, 493.º/3 do CPC, 1.º/2/a) e f), 1.º/3 e 10.º/1/4 da LEI n.º 23/96 de 26.07 na redacção actual (quanto à prescrição e caducidade do direito de acção) e arts. 108.º, 288.º/1/e), 493.º/2, 494.º/j) do CPC (quanto à preterição de tribunal arbitral).
PEDIDO:
TERMOS EM QUE, E NOS DO DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXªS., UMA VEZ RECEBIDO O RECURSO, DEVE SER-LHE DADO PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA:
A) SER DECLARADA A NULIDADE DO DOUTO DESPACHO RECORRIDO POR TOTAL FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO, NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS;
B) QUANDO TAL PEDIDO NÃO VENHA A PROCEDER, DEVERÁ REVOGAR-SE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO NA PARTE CORRESPONDENTE E SUBSTITUIR-SE POR NOVA DECISÃO QUE JULGUE PROCEDENTE A EXCEPÇÃO DE INCOMPETENCIA DO TRIBUNAL EM RAZÃO DA MATERIA E, CONSEQUENTEMENTE, ABSOLVA O RÉU DA INSTÂNCIA;
C) QUANDO TAL PEDIDO NÃO VENHA A PROCEDER, DEVERÁ REVOGAR-SE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO NA PARTE CORRESPONDENTE E SUBSTITUIR-SE POR NOVA DECISÃO QUE JULGUE PROCEDENTES AS EXCEPÇÕES DE PRESCRIÇÃO E DE CADUCIDADE DO DIREITO DE ACÇÃO RELATIVAMENTE AOS VALORES A QUE SE REFEREM AS NOTAS DE DÉBITO NºS. 2300000044, 2300000159, 2300000160, 2300000161, 2300000162, 2300000163 E 2300000236, E, CONSEQUENTEMENTE, ABSOLVA O R. DO PEDIDO NA PARTE CORRESPONDENTE;
D) QUANDO TAL PEDIDO NÃO VENHA A PROCEDER, DEVERÁ REVOGAR-SE O DOUTO DESPACHO RECORRIDO NA PARTE CORRESPONDENTE E SUBSTITUIR-SE POR NOVA DECISÃO QUE JULGUE PROCEDENTE A EXCEPÇÃO DE PRETERIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL NO QUE SE REFERE À TENTATIVA DE COBRANÇA DA QUANTIA DE € 66.787,28 A QUE SE REFERE A NOTA DE DÉBITO Nº. 2300000222 E, CONSEQUENTEMENTE ABSOLVA O R. DA INSTÂNCIA, COMO É, ALIÁS, DE INTEIRA JUSTIÇA.
JUSTIÇA.
Respondeu a Ré terminando do seguinte modo:
CONCLUSÕES
1. O despacho em crise não padece de nulidade.
2. Na verdade, dele constam expressamente os fundamentos legais e jurisprudenciais que motivaram a decisão de julgar o tribunal competente em razão da matéria.
3. A questão da incompetência material constitui matéria de direito,
4. sendo certo que se tem entendido largamente que, tratando-se de matéria de direito e por razões de economia processual, pode a decisão ser feita por mera remissão para os articulados.
5. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga considerou-se incompetente em razão da matéria, por haver entendido serem, para os autos em apreço, competentes os tribunais comuns.
6. Tal decisão transitou em julgado, sendo certo que a aqui Rec.da, entendendo, à semelhança do que tem vindo a ser cada vez mais entendido pela jurisprudência, que os contratos como o dos autos são normais contratos de prestação de serviços, ou de fornecimento, que se regem pelo direito privado, com ela se conformou.
7. Como se diz no Acórdão do STA, de 02.05.2012, base de dados da DGSI , nº convencional JSTA000P14082, processo 015/12 “A prestação dos serviços de águas e resíduos, enquanto serviços públicos essenciais, é feita ao abrigo de um contrato de consumo, regendo-se consequentemente, pelo direito privado. (…) Assim, estando em causa preços e não taxas, a competência para o conhecimento de processos relativos às questões dos contratos de fornecimento de água, quer relativos às ligações, quer às quantias mensais do consumo, afigura-se pertencer aos Tribunais comuns”.
8. Ora, a questão em análise nos autos, entre outros com ela conexos, instrumentais ou complementares, assenta numa prestação de serviços, a qual constitui matéria cível, a qual não cabe em qualquer das previsões do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002 de 19.02), sendo que
9. a competência do Tribunal da Comarca de Barcelos decorre do disposto nos artigos 74º, 1 do CPCiv e 774º do CCiv.
10. Alega o Rec.te a nulidade do despacho saneador por total ausência de fundamentação, na parte atinente à decisão de improcedência da prescrição e da caducidade.
11. Ora, também nesta parte o despacho se encontra fundamentado, dele constando expressamente os fundamentos legais e jurisprudenciais que motivaram a decisão – (…) com fundamento no disposto no art. 310º al,ª d) do Cód. Civil, julgo improcedente as excepções peremptórias de caducidade do direito de ação e da prescrição dos créditos invocadas pelo R.
12. Ao contrário do que alega o Rec.te, o regime aplicável às peticionadas dívidas deste à Rec.da não é o regime previsto na Lei 23/96 de 26 de Julho.
13. Este visa a defesa do consumidor final, isto é, daqueles que adquirem os bens para seu consumo próprio.
14. O regime aplicável ao caso sub Júdice, como bem decidiu o despacho em apreço, é o constante do DL 319/94, de 24 de Dezembro, o qual consagra o regime jurídico da concessão da exploração e gestão dos sistemas multimunicipais de captação, tratamento e abastecimento de água para consumo público, republicado pelo DL 195/2009, de 20 de Agosto, e que estipula no n.º 3 da Base XXXI, que
15. as dívidas dos utilizadores em mora prescrevem ao fim de dois anos após a emissão das respetivas facturas.
16. Acresce que os juros convencionais ou legais prescrevem ao fim de cinco nos.
17. Também no tocante à questão da violação de arbitragem, não padece o despacho saneador de nulidade.
18. A competência atribuída a tribunal arbitral pode ser exclusiva ou concorrente com a do tribunal estadual legalmente competente.
19. A preterição de tribunal arbitral resulta da infração da competência convencional de um tribunal arbitral que tem competência exclusiva para apreciar determinado objeto.
20. Para que haja violação de convenção de arbitragem é necessário que seja intentada em tribunal comum ação cujo objeto as partes convencionaram submeter exclusivamente a tribunal arbitral.
21. Nos termos da cláusula 9ª Protocolo de Espinho junto aos autos, cada uma das partes poderá a todo o momento recorrer a arbitragem.
22. Atenta a terminologia usada pelas partes, a competência do tribunal arbitral foi estabelecida concorrencialmente à dos tribunais comuns.
23. O recurso a tribunal arbitral foi clausulado como uma faculdade e não como uma obrigação, pelo que qualquer das partes, em caso de diferendo, poderia optar, ou pelo recurso aos tribunais do Estado, ou a tribunal arbitral.
24. Não merece censura o despacho recorrido.
TERMOS EM QUE
pelo exposto, pelo mérito dos autos e pelo que doutamente será suprido deve ao presente recurso ser negado provimento, assim se fazendo J U S T I Ç A !
Cumpre agora decidir.
*
O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil.
Das conclusões formuladas pelos Apelantes resulta que as questões a dirimir são as seguintes:
- nulidade do despacho por falta de fundamentação
- Incompetência do tribunal judicial em razão da matéria
- Prescrição dos créditos e respectivos juros de mora
- Caducidade do direito de acção
- Violação da convenção de arbitragem
***
Vejamos então

1. Nulidade do despacho por falta de fundamentação
Sustenta o recorrente Município de Valença que “o despacho recorrido é nulo por total falta de fundamentação, porquanto a M.ª Juiz a quo se limitou a transcrever as alegações das partes relativamente às excepções de incompetência material do tribunal, prescrição de créditos, caducidade do direito de acção e violação de convenção de arbitragem, para concluir que concordava com os fundamentos da A., aderindo na íntegra aos mesmos”.
Alega para tanto que “No douto despacho recorrido fica-se apenas a saber qual foi a conclusão a que a M.ª Juiz a quo chegou, mas não o raciocínio lógico que o julgador levou a cabo para chegar à conclusão a que chegou, que argumentos, elementos e normas legais que ponderou, que interpretações jurídicas é que fez, que efeitos jurídicos é que se podem retirar dessas interpretações, que jurisprudência e doutrina é que considerou e, acima de tudo, porque decidiu no sentido em que o fez e não noutro qualquer, omitindo por completo a exposição das razões da sua decisão num discurso próprio, assente numa análise e ponderação também próprias, pelo que Existe total omissão dos fundamentos de direito em que radica a decisão, sendo que a análise, a ponderação e a fundamentação das premissas que permitem concluir pela improcedência das excepções em causa, teriam que estar perfeitamente claras no texto do douto despacho recorrido, pelo que foram violadas as normas dos arts. 205.º/1 da CRP, 158.º e 659º/2 do CPC e valendo o despacho na parte em que apreciou as excepções como sentença, verifica-se a nulidade do mesmo, nos termos do art. 668.º/1/b) do CPC”.
Recordemos aqui o despacho recorrido:
“Cumpre apreciar e decidir:
Com os fundamentos jurídicos e jurisprudenciais alegados pela Autora na réplica, com os quais se concorda e que, por economia processual aqui se dão por reproduzidos, julga-se este Tribunal competente em razão da matéria”.
Como é sabido, a falta de fundamentação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC é a total omissão de facto ou de direito em que assenta a decisão, não afectando o valor desta que seja incompleta ou deficiente a respectiva fundamentação. Este entendimento de que só uma falta absoluta de fundamentação, que não uma deficiente ou insuficiente densidade fundamentadora representa causa de nulidade da decisão, é sufragado uniformemente pela jurisprudência, podendo ver-se, por todos, Acórdão do STJ de 26/02/2004, in www.dgsi.pt., em que se diz “Entende a jurisprudência, de modo praticamente uniforme, que só uma falta absoluta de fundamentação, que não uma deficiente ou insuficiente densidade fundamentadora, representa (nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 668) causa de nulidade de decisão” (Ac. do STJ de 26-02-2004, Revista n.º 3798/03 - 7.ª Secção Araújo de Barros (Relator))”.
Ora, no caso dos autos, não se verifica essa ausência de fundamentação, uma vez que vem referido o dispositivo legal aplicável, com transcrição do seu teor, faz-se remissão para a factualidade descrita
Ora, na verdade, desde logo por imperativo constitucional (art. 205.º, nº 1 da CRP) as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido, devem ser sempre fundamentadas – art. 158.º.
Prendendo-se tal necessidade de fundamentação, desde logo, com a legitimação da decisão judicial em si mesma.
A decisão é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que a justificam – art. 668.º, nº 1, al. b).
Verificando-se, porém, apenas tal nulidade quando haja absoluta falta de fundamentos e não quando tal justificação seja apenas deficiente ( Ac. do STJ de – 10/12/2009, Proc. 63/02.0TBVCD.S1 2º SECÇÃO, Relator Serra Baptista .
Ora, lendo a sentença recorrida, constata-se que não há absoluta falta de fundamentação, tendo a senhora juíza, embora de forma demasiado sintética a nosso ver, explanado as razões de facto e de direito em que alicerçou a sua impugnada decisão, remetendo para os fundamentos doutrinais e jurisprudenciais explanados pela Autora na réplica.
Assim, entende-se que não ocorre a referida nulidade.


2. Incompetência do tribunal judicial em razão da matéria
Sustenta o recorrente Município de Valença que o Tribunal a quo decidiu incorrectamente a matéria relativa à excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria.
Fundamente essa posição nos seguintes termos:
Anteriormente à propositura desta acção a A. instaurou contra o R. injunção, indicando como tribunal competente, para o caso de a injunção vir a dar lugar a acção judicial, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, sendo que à injunção foi deduzida oposição, pelo que o processo foi remetido para aquele Tribunal, onde deu lugar ao processo nº 1866/12.7BEBRG, onde foi decidida a incompetência material do TAF, por ter sido entendido que a competência pertencia aos tribunais comuns, face ao que foi decidida a absolvição do R. da instância, decisão que transitou em julgado, sendo que, todavia, e sempre ressalvado o devido respeito, o Tribunal Judicial de Barcelos é incompetente em razão da matéria para a apreciação do litígio, verificando-se, pois, a sua incompetência absoluta.
Atentando-se na douta decisão proferida pelo TAF de Braga, logo se intui que a mesma incorreu em manifesto lapso, sendo que toda a lógica da decisão assentou numa relação pretensamente estabelecida entre a A. e um particular (o Sr. A…) com a celebração de um contrato de prestação de serviços de fornecimento de água e de recolha de resíduos e girou à volta do incumprimento da contraprestação a que o particular se obrigou e do consequente crédito daí resultante para a A.
É um facto que a Mª. Juíza que proferiu a decisão, mais tarde veio rectificar o nome do R., sendo que, não atentou, todavia, em que isso alterava toda a lógica da situação de facto apreciada e que nada tinha a ver com a situação constante da injunção instaurada pela A., porquanto o R. não era nenhum particular, mas antes o Município de Valença, que é uma pessoa colectiva territorial de direito público e também o litígio não assentava, simplesmente, num mero contrato de prestação de serviços, mas antes num contrato de fornecimento contínuo de água “em alta” e de recolhe de efluentes, celebrado entre a concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho e Lima (mais tarde, do Noroeste).
Ele assentava, essencialmente, num Protocolo celebrado entre as partes outorgantes no mesmo, a então concessionária Águas do Minho e Lima, S. A. e o Município de Valença, com direitos e obrigações de diferente natureza nele estabelecidos e abrangendo matérias variadas, nomeadamente o desenvolvimento dos projectos de execução das redes de distribuição de água e de recolha de efluentes em “baixa” do Município Réu, com a promoção dos respectivos procedimentos pré-contratuais públicos de acordo com o regime previsto para a contratação pública, o desenvolvimento do Plano de Acção para a realização das redes de distribuição de água e de recolhe de efluentes em “baixa” de todo o Sistema, incluindo as do Município Réu, com a definição dos montantes totais do investimento, o cronograma de desenvolvimento e as prioridades, de modo a poderem ser objecto de candidatura aos fundos comunitários previstos para o QREN que vigoraria entre 2007 e 2013, a transferência para o Município dos projectos de execução desenvolvidos no âmbito do Protocolo, a forma do seu pagamento, etc., etc. Por outro lado, a A. foi constituída pelo DL. 41/2010, de 29 de Abril, que simultaneamente criou o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, integrando como utilizadores originários os municípios de Amarante, Amares, Arcos de Valdevez, Barcelos, Cabeceiras de Basto, Caminha, Celorico de Basto, Esposende, Fafe, Felgueiras, Guimarães, Lousada, Maia, Melgaço, Monção, Mondim de Basto, Paredes de Coura, Ponte da Barca, Ponte de Lima, Póvoa de Lanhoso, Póvoa de Varzim, Santo Tirso, Terras do Bouro, Trofa, Valença, Viana do Castelo, Vieira do Minho, Vila do Conde, Vila Nova de Cerveira, Vila Nova de Famalicão, Vila Verde e Vizela, sendo que o mesmo veio substituir o sistema multimunicipal de captação, tratamento e abastecimento de água do norte da área do Grande Porto, criado pela alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto -Lei n.º 379/93, de 5 de Novembro, o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Minho -Lima, criado pelo Decreto –Lei n.º 158/2000, de 25 de Julho (no qual o Réu se integrava), e o sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Vale do Ave, criado pelo Decreto -Lei n.º 135/2002, de 14 de Maio.
A A. é, aliás, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, constituída mediante a fusão das sociedades Águas do Cávado, S. A., Águas do Minho e Lima, S. A., e Águas do Ave, S. A., sendo que, nos termos do artigo 10º, o membro do Governo responsável pela área do ambiente ficou autorizado a celebrar em nome e representação do Estado o contrato de concessão do sistema com a A., a ser outorgado no prazo máximo de dois meses contados da data de entrada em vigor do diploma, retroagindo os seus efeitos ao 1.º dia útil do mês seguinte àquele em que se viesse a operar a fusão das sociedades, prevista no n.º 3 do artigo 4.º do mesmo e, nos termos do artigo 11.º, a articulação entre o sistema explorado e gerido pela concessionária (isto é, pela A.) e o sistema correspondente de cada um dos municípios utilizadores seria assegurada através de contratos de fornecimento e recolha a celebrar entre a concessionária e cada um dos municípios.
A A. veio a celebrar com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de Junho de 2010, a referida concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a concepção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste, ficando, em consequência, investida em várias prerrogativas de direito público, incluindo o direito de recorrer ao instituto das expropriações por utilidade pública, tendo sido nessa qualidade de concessionária do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste que a A. e ora recorrida (e a sua antecessora, Águas do Minho e Lima, S.A., que também ela tinha celebrado com o Estado Português um contrato de concessão semelhante), estabeleceram relações com o R. e com os restantes municípios por ele abrangidos, seja no que respeita ao Protocolo de Espinho, que adiante se fará referência, seja em relação aos fornecimentos de água em “alta” e de recolha de efluentes, que constituía sua obrigação nos termos do a concessão já referida.
Estamos, assim, claramente no domínio de relações entre duas entidades que prosseguem interesses públicos relevantes e que nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocos, daí que as relações entre si estabelecidas são relações administrativas e a resolução dos respectivos conflitos compete, claramente, aos tribunais da jurisdição administrativa, e jamais aos tribunais judiciais.
E mesmo os contratos de aquisição de serviços ou de prestação de serviços (na óptica do prestador) celebrados pelo Município, seja com um particular, seja, por maioria de razão, com um concessionário de serviço público ou de exploração de bens do domínio público, são sempre contratos de direito administrativo, como claramente são definidos nos artigos 1º/6, 278º e 450º do Código dos Contratos Públicos, pelo que, ao contrário daquilo que a A. alega e que o despacho recorrido subscreve, não estamos perante relações de direito privado nem perante contratos de prestação de serviços no âmbito do direito privado, nem muito menos as partes se encontram numa posição de igualdade do ponto de vista contratual.
Aliás, a própria A. no ponto 2. da réplica que apresentou nos autos, vem admitir que “É certo que se tem entendido, maioritariamente, que para a matéria como a que neste processo se discute são competentes os Tribunais Administrativos” Por essa razão, indicou a A., anteriormente à propositura desta acção e como tribunal competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga”, pelo que dúvidas não podem existir de que o Tribunal competente para apreciar o presente litígio é o TAF de Braga.
A recorrida Águas do Noroeste S.A. discorda com os seguintes fundamentos:
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga considerou-se incompetente em razão da matéria, por haver entendido serem, para os autos em apreço, competentes os tribunais comuns.
6. Tal decisão transitou em julgado, sendo certo que a aqui Rec.da, entendendo, à semelhança do que tem vindo a ser cada vez mais entendido pela jurisprudência, que os contratos como o dos autos são normais contratos de prestação de serviços, ou de fornecimento, que se regem pelo direito privado, com ela se conformou.
7. Como se diz no Acórdão do STA, de 02.05.2012, base de dados da DGSI , nº convencional JSTA000P14082, processo 015/12 “A prestação dos serviços de águas e resíduos, enquanto serviços públicos essenciais, é feita ao abrigo de um contrato de consumo, regendo-se consequentemente, pelo direito privado. (…) Assim, estando em causa preços e não taxas, a competência para o conhecimento de processos relativos às questões dos contratos de fornecimento de água, quer relativos às ligações, quer às quantias mensais do consumo, afigura-se pertencer aos Tribunais comuns”.
8. Ora, a questão em análise nos autos, entre outros com ela conexos, instrumentais ou complementares, assenta numa prestação de serviços, a qual constitui matéria cível, a qual não cabe em qualquer das previsões do art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002 de 19.02), sendo que
9. a competência do Tribunal da Comarca de Barcelos decorre do disposto nos artigos 74º, 1 do CPCiv e 774º do CCiv.
Da decisão da senhora juíza, como acima vimos, por tão sintética, nada podemos colher.
Cumpre pois decidir.
Para dilucidar esta questão iremos transcrever a parte interessante para o caso de um recente Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 10/04/2013, no Processo 015/12, Relator Valente Torrão.
A questão foi suscitada pelo Juiz Conselheiro Presidente do TAF de Braga, e era a seguinte:
“No processo de oposição à execução fiscal n.º 484/11.1.BEBRG do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga foi suscitada pela Meritíssima Juíza a questão da competência dos tribunais tributários para o conhecimento de processos relativos a cobrança coerciva, através de processo de execução fiscal, de dívidas derivadas de prestação de serviços públicos de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos efectuada por uma empresa municipal, nos seguintes termos: A prestação dos serviços de águas e resíduos, enquanto serviços públicos essenciais, é feita ao abrigo de um contrato de consumo, regendo-se, consequentemente pelo direito privado. No que não esteja previsto nas normas especiais da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, alterada e republicada pela Lei n.º 12/2008, de 26 de Fevereiro) e do regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos (Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto), serão aplicáveis as normas gerais de direito privado. Assim, estando em causa preços e não taxas, a competência para o conhecimento de processos relativos às questões dos contratos de fornecimento de água, quer relativas às ligações, quer às quantias mensais do consumo, afigura-se pertencer aos Tribunais comuns”.
A questão foi solucionada pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA nos seguintes termos:
“(…)
IV. Comecemos por fazer uma passagem pela legislação que foi sendo aplicável nesta matéria.
IV.1. A Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, estabelecia no seu artº 4º, nº 1, alínea h) que constituíam receitas do município: o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços pelo município. O artº 11º do mesmo diploma indicava depois as taxas que os municípios podiam cobrar, regulando o artº 12º as tarifas, indicando o seu nº 1 que estas respeitavam às seguintes actividades:
a) Abastecimento de água;
b) Recolha, depósito e tratamento de lixos, bem como ligação, conservação e tratamento de esgotos;
c) Transportes urbanos colectivos de pessoas e mercadorias.
O nº 2 do mesmo artigo estabelecia que as tarifas a fixar pelos municípios … não deviam ser inferiores aos respectivos encargos previsionais de exploração e de administração, acrescidos do montante necessário à reintegração do equipamento, sob pena de ter de inscrever obrigatoriamente como despesa o montante correspondente à indemnização compensatória (nº 3).
O artº 23º, nº 5 do mesmo diploma estabelecia ainda que competia aos tribunais tributários de 1ª instância a cobrança coerciva de dívidas às autarquias locais provenientes de impostos, derramas, taxas e encargos de mais-valias, aplicando-se com as necessárias adaptações, os termos estabelecidos no CPCI. (É de notar que não estão aqui incluídas as tarifas e preços atrás referidos pelo que, à primeira vista, seríamos levados a concluir pela não cobrança desses em execução fiscal; adiante veremos que não era esta a conclusão retirada pela jurisprudência deste STA).
IV.2. O artº 16º da Lei nº 42/98, de 6 de agosto, veio determinar na sua alínea d) que constituíam receitas dos municípios: o produto da cobrança de taxas, tarifas e preços resultantes da prestação de serviços pelo município.
O artº 19º indicava depois e também como a anterior Lei, as taxas que os municípios podiam cobrar, dizendo o artº 20º quanto a tarifas e preços o seguinte:
“1- As tarifas e preços a cobrar pelos municípios respeitam, designadamente, às actividades de exploração de sistemas públicos de:
a) Distribuição de água;
b) Drenagem de águas residuais;
c) Recolha, depósito e tratamento de resíduos sólidos;
d) Transportes colectivos de pessoas e mercadorias;
e) Distribuição de energia eléctrica em baixa tensão.
2 - Os municípios podem ainda cobrar tarifas por instalação, substituição ou renovação dos ramais domiciliários de ligação aos sistemas públicos de distribuição de água e de drenagem de águas residuais.
3 - As tarifas e os preços, a fixar pelos municípios, relativos aos serviços prestados e aos bens fornecidos pelas unidades orgânicas municipais e serviços municipalizados, não devem, em princípio, ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com o fornecimento dos bens e com a prestação dos serviços”.
Relativamente à cobrança coerciva o nº 4 do artº 30º veio manter a execução fiscal nos seguintes termos:
“4- Compete aos órgãos executivos, à excepção dos municípios de Lisboa e do Porto, em que a competência coerciva das dívidas às autarquias locais provenientes de taxas, encargos de mais-valias e demais receitas de natureza tributária que aquelas devam cobrar, aplicando-se o Código de Processo Tributário, com as necessárias adaptações”. (É de notar que também neste diploma se faz apena referência às taxas e não às tarifas e preços).
IV.3. O artº 10º, nº 1 da Lei nº 2/2007 de 15 de janeiro, veio determinar na sua alínea c) que constituíam receitas dos municípios: o produto da cobrança de taxas e preços resultantes da concessão de licenças e da prestação de serviços pelo município, de acordo com o disposto nos artigos 15º. e 16º.
Assim, os municípios podiam criar taxas nos termos do regime geral das taxas das autarquias locais, ficando esta criação subordinada aos princípios da equivalência jurídica, da justa repartição dos encargos públicos e da publicidade, incidindo sobre utilidades prestadas aos particulares, geradas pela actividade dos municípios ou resultantes da realização de investimentos municipais (artº 15º).
Relativamente a preços, o artº 16º estabelecia no seu nº 3 que os mesmos poderiam incidir sobre actividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de:
a) Abastecimento público de água;
b) Saneamento de águas residuais;
c) Gestão de resíduos sólidos;
d) Transportes colectivos de pessoas e mercadorias;
e) Distribuição de energia eléctrica em baixa tensão.
Quanto à fixação dos preços os nºs 1 e 2 do mesmo artigo estabeleciam o seguinte:
“1- Os preços e demais instrumentos de remuneração a fixar pelos municípios relativos aos serviços prestados e aos bens fornecidos em gestão directa pelas unidades orgânicas municipais ou pelos serviços municipalizados não devem ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com a prestação desses serviços e com o fornecimento desses bens.
2 - Para efeitos do número anterior, os custos suportados são medidos em situação de eficiência produtiva e, quando aplicável, de acordo com as normas do regulamento tarifário em vigor”.
O nº 4 do mesmo artigo estabelecia ainda que, relativamente às actividades mencionadas no número anterior, os municípios deviam cobrar preços nos termos de regulamento tarifário a aprovar.
Relativamente à cobrança coerciva das dívidas, esta Lei continha no seu artº 56º, nº 3, norma semelhante às anteriores leis e do seguinte teor:
“3- Compete aos órgãos executivos a cobrança coerciva das dívidas às autarquias locais provenientes de taxas, encargos de mais-valias e outras receitas de natureza tributária que aquelas devam cobrar, aplicando-se o Código de Procedimento e de Processo Tributário, com as necessárias adaptações”.
IV.4. Cabe ainda aqui referir que, anteriormente à publicação da Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro (mas para entrar em vigor na mesma data daquela), tinha sido publicada a Lei nº 53-E/2006, de 29 de dezembro que aprovou o regime geral das taxas das autarquias locais.
Deste diploma e para a questão que nos ocupa, relevam as seguintes normas:
“As taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei (artº 3º).
“1- As taxas municipais incidem sobre utilidades prestadas aos particulares ou geradas pela actividade dos municípios, designadamente:
a) Pela realização, manutenção e reforço de infra-estruturas urbanísticas primárias e secundárias;
b) Pela concessão de licenças, prática de actos administrativos e satisfação administrativa de outras pretensões de carácter particular;
c) Pela utilização e aproveitamento de bens do domínio público e privado municipal;
d) Pela gestão de tráfego e de áreas de estacionamento;
e) Pela gestão de equipamentos públicos de utilização colectiva;
f) Pela prestação de serviços no domínio da prevenção de riscos e da protecção civil;
g) Pelas actividades de promoção de finalidades sociais e de qualificação urbanística, territorial e ambiental;
h) Pelas actividades de promoção do desenvolvimento e competitividade local e regional.
2- As taxas municipais podem também incidir sobre a realização de actividades dos particulares geradoras de impacto ambiental negativo. (artigo 6º).
“2- As dívidas (resultantes de taxas) que não forem pagas voluntariamente são objecto de cobrança coerciva através de processo de execução fiscal, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário. (artº 12º).
V. Aqui chegados parece que poderíamos concluir, em face das normas legais acima transcritas, que a execução fiscal apenas poderia servir para cobrança coerciva das taxas, impostos ou outras receitas de natureza aduaneira, nas quais se não incluiriam as tarifas e os preços.
Importa, por isso, reflectir um pouco sobre a natureza das tarifas e dos preços previstos nas normas citadas.
V.1. No Acórdão deste STA, de 30.05.2001- Processo nº 026109- AP DR 8.08.2003 - pág. 1588 e segs., relativo a dívida por fornecimento de água, e no âmbito de vigência da Lei nº 42/98, ficou escrito, para além do mais, o seguinte:
“Logo na alínea d) do seu artº. 16º da Lei nº 42/98 estatui que, entre outras, constituem receitas dos municípios ”o produto da cobrança de taxas, tarifas e preços resultantes da prestação de serviços pelo município”.
E no artº 20º, nº 1 a mesma lei esclarece relativamente a quais actividades é que os municípios podem cobrar as tarifas e preços, prescrevendo:
”1- As tarifas e preços a cobrar pelos municípios respeitam, designadamente, às actividades de exploração de sistemas públicos de:
a) Distribuição de água;
b) Drenagem de águas residuais;
c) Recolha, depósito e tratamento de resíduos sólidos;
d) Transportes colectivos de pessoas e mercadorias;
e) Distribuição de energia eléctrica em baixa tensão”.
Quer isto dizer que, da óptica da lei, os municípios tanto poderão optar pela instituição de tarifas como pela de preços pela utilização por banda dos interessados dos bens propiciados pelo município através das actividades de exploração dos sistemas públicos que identifica, entre elas se contando a da distribuição de água em cuja categoria se insere a receita exequenda.
Estamos aqui perante o fornecimento de bens por parte dos municípios que visam satisfazer essencialmente necessidades privadas, mas porque, segundo a concepção política dominante na sociedade se entende que esses bens deverão ser propiciados segundo uma lógica independente da do mercado, "fundando-se em razões distintas, como a justa distribuição dos encargos públicos, ou em considerações de ordem política, como a de facilitar ou dificultar o acesso a certos bens ou serviços”, o legislador confere a possibilidade aos municípios de subtraírem a fixação das contraprestações pela utilização desses serviços ou bens à lógica ou às regras do mercado e submeterem-nas a critérios diferentes, fixando-as autoritariamente, se bem que, - e aqui apela-se a um elemento comum na formação do preço na lógica do mercado -, não “devam, em princípio, ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com o fornecimento dos bens e com a prestação dos serviços”, segundo se manda no nº 3 daquele artº 20º da Lei nº 42/98. Mas isso não impede que os municípios não possam fornecer esses bens segundo o regime de preços de mercado, assente essencialmente na regra da oferta e da procura, traduzida juridicamente num acordo de vontades e que dá origem a uma obrigação voluntária em vez de uma obrigação autoritária ou de fonte legal, como ali acontece, e ainda que esses preços não possam ser sujeitos a condicionamentos na sua determinação (preços tabelados, preços condicionados à demonstração dos elementos da sua formação, preços públicos e preços políticos).
Se a receita corresponde a um preço autoritariamente estabelecido pela utilização individual dos referidos bens que atenta aquela concepção são bens semipúblicos- tendo a sua contrapartida numa actividade dos municípios (do Estado ou de outros entes públicos) especialmente dirigida ao obrigado ao pagamento estamos perante uma tarifa; de contrário, estamos perante um preço.
Mas tarifa, aqui equivale-se totalmente, na perspectiva da sua natureza, a taxa, correspondendo a denominação apenas a um simples nomen especificamente atribuído pelo legislador das finanças locais quando ela respeita à utilização de certos bens semipúblicos -precisamente os indicados no nº 1 do artº 20º da citada Lei nº 42/98 e com correspondência em preceitos similares das leis anteriores”.
Isto porque, tal como se salienta no mesmo aresto e o Tribunal Constitucional também afirmou nos seus acórdãos nºs 1139/96 (D.R., II Série, de 10/02/1997) e 76/88 (DR, II Série, de 21/04/1988), “uma tarifa, no campo das finanças locais, se não delineia como uma figura em absoluto nova, ou seja, como uma espécie de tercium genus entre taxa e imposto”, apresentando-se de «de facto, e sob todos os aspectos», como uma simples taxa, embora taxa sui generis «cuja especial configuração lhe advém apenas da particular natureza dos serviços a que se encontra ligada”, sendo que a «tarifa, se ao nível da lei ordinária pode ter significação própria, não releva, porém, numa perspectiva constitucional, pelo que, nesta óptica, ela constitui apenas uma modalidade especial de taxa e nada mais».
Deste modo entendia-se que a tarifa pelo fornecimento de água cabia, como taxa sui generis, na previsão do nº 4 do citado artº. 30º da Lei nº 42/98, onde se atribui a competência para a sua cobrança coerciva aos próprios órgãos executivos dos municípios que sejam delas credoras, salvo os de Lisboa e Porto.
V.2. Em jurisprudência, quer anterior (v., entre outros, os acórdãos de 15.06.2000 – Processo nº 024153 e de 09.10.1996- Processo nº 019322- Apêndice ao DR, de 28.12.1998, págs. 2759 e segs.), quer posterior (v., entre outros, os acórdãos de 22.05.2002 -Processo nº 026472 e de 31.03.2004- Processo nº 01921/03), este Supremo Tribunal reafirmou o mesmo entendimento de que a tarifa não constitui um tertium genus entre o imposto e a taxa, não tendo verdadeira autonomia conceitual, caracterizando-se, afinal, por não dever ser inferior ao preço do serviço prestado.
V.3. Casalta Nabais, por sua vez, reportando-se ao conceito de tarifas, diz-nos o seguinte (Cadernos de Justiça Administrativa, nº 6, 1997, págs. 48 e segs.):
“…no concernente às tarifas, é de referir que elas integram um conceito polissémico, relativamente ao qual é possível detectar, pelo menos, quatro sentidos, que podemos designar por sentido normativo, sentido financeiro, sentido tributário e sentido fiscal (ou melhor, aduaneiro). …Em sentido financeiro, por seu turno, as tarifas significam, ou podem significar, duas coisas. Umas vezes, referem-se elas aos quadros donde constam, de um lado, as unidades de consumo e, de outro, os respectivos preços: se em tais quadros figura apenas uma unidade de consumo por cada quadro, temos tarifas unitárias; se neles figuram mais do que uma unidade de consumo, então temos tarifas múltiplas. Nesta versão, as tarifas constituem quadros de unidades de consumo dos serviços públicos e dos correspondentes
preços, ou seja, tabelas ou listas de preços (s) . A maioria das vezes, porém, as tarifas em sentido financeiro referem-se, não aos mencionados quadros, listas ou tabelas, mas aos preços dos serviços públicos prestados pelas administrações públicas ou pelos concessionários, sejam os mesmos preços públicos ou privados, ou seja, trate-se de tarifas públicas ou privadas. Neste caso, as tarifas reconduzem-se aos preços dos serviços públicos, relativamente aos quais se põe o problema de saber qual o exacto âmbito dessa figura financeira, ou seja, se abarcam todos e quaisquer preços dos serviços públicos, sejam estes voluntariamente estabelecidos ou autoritariamente fixados, se dizem respeito apenas aos preços voluntariamente estabelecidos, ou se integram somente os preços autoritariamente fixados. Enquanto na primeira hipótese as tarifas constituem uma figura complexa, pois integram, de um lado, um especial tipo de taxas ou preços públicos e, de outro, os preços, na segunda temos unicamente preços, e, na terceira, deparamo-nos com uma figura tributária em sentido estrito, ou seja, com um tributo bilateral ou uma taxa.
E aqui temos as tarifas em sentido tributário, constituídas assim pelos preços dos serviços públicos autoritariamente fixados. Em nossa opinião, este devia ser o sentido reservado para as tarifas, um sentido que, como vamos ver, de algum modo está subjacente à Lei das Finanças Locais (arts. 11º e 12º). Neste último sentido as tarifas, como dissemos, constituem um especial tipo de taxas ou preços públicos. Um especial tipo de taxas que tem de específico o facto de não dizerem respeito a serviços públicos que sejam por essência da titularidade do Estado, uma vez que não correspondem às funções institucionais fundamentais próprias da Administração Pública nem visam, por conseguinte, a realização dos fins estaduais primários. Por isso, podem tais serviços ser objecto de oferta e procura e susceptíveis, assim, de uma avaliação em termos de mercado. Por outras palavras, trata-se de taxas equivalentes, de taxas cujo montante não deve, assim, ser inferior ao efectivo custo do correspondente serviço. Um sentido que, acentue-se, está patente no mencionado artº. 12º da Lei das Finanças Locais, ao dispor, no nº 1, que as tarifas respeitam às actividades de abastecimento de água, de recolha, tratamento e depósito de lixos, de ligação, conservação e tratamento de esgotos e de transportes urbanos colectivos de pessoas e de mercadorias, e ao estabelecer, no n° 2, o princípio de que os montantes das tarifas não devem ser inferiores aos respectivos encargos provisionais de exploração e de administração, acrescidos do montante necessário à reintegração do equipamento. Assim as tarifas equiparam-se, de algum modo, às redevances do direito francês, aos precios publicos do direito espanhol, etc".
Temos então que, segundo este autor, as tarifas não passam de taxas que revestem as seguintes particularidades:
a) não dizem respeito a serviços públicos que sejam por essência da titularidade do Estado, uma vez que não correspondem às funções institucionais fundamentais próprias da Administração Pública nem visam, por conseguinte, a realização dos fins estaduais primários;
b) por outro lado, podendo tais serviços ser objecto de oferta e procura e susceptíveis, assim, de uma avaliação em termos de mercado, o seu montante não deve, em princípio, ser inferior ao efectivo custo do correspondente serviço. (Sobre esta questão v. também António Malheiro de Magalhães – O Regime Jurídico dos Preços Municipais, Almedina 2012 que aqui seguiremos de perto e, entre outros, Teixeira Ribeiro -Noção Jurídica de Taxa- R.L.J., ano 117º, nº 3727, págs., 292/293 e Lições de Finanças Públicas, 2ª edição, págs. 206, Sousa Franco, Direito Financeiro e Finanças Públicas e Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, págs. 54 e 55)
V.4. Acontece, porém, que, como acima se referiu, a nova Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, deixou de considerar as tarifas entre as receitas dos municípios (ao contrário do que sucedia nas Leis nºs 1/87, de 6 de janeiro - artº 4º e 42/98, de 6 de agosto - artº 16º), limitando-se a referir apenas no artº 10º, alínea c) “cobrança de taxas e preços resultantes da concessão de licenças e da prestação de serviços pelo município, de acordo com o disposto nos artigos 15º e 16º”. Se a isto acrescentarmos que o artº 16º, nº 3, refere que os preços e demais instrumentos de remuneração a cobrar pelos municípios respeitam, designadamente, às actividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de abastecimento público de água e que os preços devem obedecer a regulamento tarifário a aprovar, parece que seríamos levados a concluir no sentido de que tais preços deixaram de ser considerados taxas, ficando, por isso, a cobrança das respectivas dívidas sujeita ao foro comum.
Será assim?
V.5. Acompanhando António Malheiro de Magalhães, Ob. citada, diremos que os agora designados “preços” cobrados por serviços prestados e bens fornecidos pelos Municípios não perdem o sentido e o alcance que anteriormente lhes eram assacados pela doutrina e pela jurisprudência em face da Lei das Finanças Locais aprovada pela lei nº 42/98, já que mantêm a mesma natureza das “tarifas e preços” a que se referia o artº 20º daquele diploma.
Com efeito, apesar da supressão do termo “tarifa”, quer as taxas quer os preços agora previstos como receitas municipais nos artºs 15º e 16º, respectivamente, da Lei nº 2/2007, continuam a integrar o conceito de “taxa lato sensu” porque autoritariamente fixados pela prestação de bens semi-públicos, integrando-se, por isso, no conceito dado pelo artº 4º da LGT.
Aliás, já Marcello Caetano - Manual de Direito Administrativo, Vol. II, págs. 1067 a 1084 ensinava que de acordo com o critério do objeto os serviços públicos se classificavam como serviços públicos económicos, sociais ou de segurança social e culturais, sendo serviços públicos económicos aqueles que visam a satisfação das necessidades colectivas de caráter económico produzindo bens materiais, facilitando a circulação das pessoas, das coisas ou das ideias ou fornecendo bens para consumo, incluindo no primeiro grupo, nomeadamente, os serviços de produção e distribuição de água.
E acrescentava ainda que podendo alguns desses serviços ser gratuitos ou onerosos, o pagamento de um preço pelos serviços prestados a título oneroso por pessoas colectivas de direito público revestia a natureza de taxa, nessa qualidade ficando sujeito ao regime da cobrança das recitas fiscais. E justificava ainda a fixação autoritária de tais “preços” porque os mesmos não podiam ser adaptados pelo empresário no decurso da exploração às vicissitudes da procura, às conveniências da oferta ou aos encargos imprevisto, tal como pode suceder com os preços do mercado.
E não se diga que, no caso concreto, estamos em face de um contrato entre consumidor e prestador do serviço (artºs 59º, 63º e 64º do DL nº 194/2009) pois que isso não é suficiente para afastar o conceito de taxa.
Na verdade, a autonomia da vontade negocial da entidade gestora e do consumidor final nada ou pouco interfere na denominação do respectivo conteúdo e grau de vinculação da relação contraída, pelo que a respectiva contrapartida reveste natureza coativa (Aliás, o artº 69º do DL nº 194/2009, de 24 de Agosto, constitui um bom exemplo da inexistência da autonomia contratual ao impor que todos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de concepção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respectivos sistemas públicos, sob pena da aplicação da coima prevista no 72º, nº 2, alínea a).) Conforme salienta Sérgio Vasques -Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, págs. 208 e segs., ainda que as taxas sejam exigidas em virtude da prestação de bens ou serviços, dando corpo a uma relação de troca com os contribuintes, elas não deixam de possuir natureza coativa, característica de todos os tributos públicos. E acrescenta o mesmo autor que dois critérios materiais relevantes para a distinção entre preços e taxas são o do regime económico em que é realizada a prestação administrativa e o da indispensabilidade que essa prestação administrativa reveste para o particular.
Assim, estaremos perante uma taxa quando, por razões de direito ou de facto, não se encontrem no mercado prestações sucedâneas daquelas que a administração realize e o particular se veja por isso verdadeiramente coagido ao seu consumo (ou, por outras palavras, quando o aproveitamento da prestação administrativa se revela imprescindível para a sobrevivência condigna do particular, atentos os padrões sociais de cada momento e da cada lugar); já, pelo contrário, estaremos perante preço se o particular dispuser de liberdade de escolha entre prestações asseguradas pelo sector público e pelo sector privado (isto quando a administração realize essas prestações em condições de concorrência), ou por outras palavras também, quando o particular possa prescindir da prestação administrativa sem sacrifício relevante para a sua qualidade de vida.
Ora, não restam dúvidas, no caso que nos ocupa, quanto à indispensabilidade do serviço de abastecimento de água, tendo aliás, a Assembleia Geral da ONU reconhecido como direito fundamental do cidadão o abastecimento de água potável e o saneamento básico, enquanto realização do direito à saúde e a um nível de vida adequado.
Por outro lado, embora, como adiante se dirá, a gestão da água possa até ser efectuada por várias entidades (entre elas privadas. em regime de concessão), a verdade é que não existe concorrência para que os particulares possam optar por outro fornecedor.
Em face do que ficou dito concluímos então no sentido de que, não obstante a Lei nº 2/2007 (Lei da Finanças Locais) ter eliminado a expressão “tarifas” como receitas das autarquias, que a doutrina e a jurisprudência qualificavam como taxas, a expressão “preços” constante do seu artº 16º, nº 3, reportada a abastecimento público de água e saneamento de águas residuais, mantém o mesmo sentido e alcance das mencionadas “tarifas”.
VI. Aqui chegados, parece então que podemos concluir que as dívidas não pagas podem coercivamente ser cobradas em processo de execução fiscal, “ex vi” artigos12º, nº 2 da Lei nº 53-E/2006, de 29 de dezembro e 56º, nº 3 da Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro.
Porém, ainda se pode suscitar a questão da aplicação da Lei nº 23/96, de 26 de julho (alterada e republicada pela Lei nº 12/2008, de 26 de fevereiro, com a última alteração introduzida pela Lei nº 10/2013, de 28 de janeiro).
Com efeito, o artº 1º daquela Lei diz o seguinte:
“1 - A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.
2 - São os seguintes os serviços públicos abrangidos:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados;
d) Serviço de comunicações electrónicas;
e) Serviços postais;
f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais;
g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos.
3 - Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo”.
4 - Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão”.
O decreto-lei nº 194/2009 estabeleceu o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, dizendo o seu artº 3º que a exploração e gestão daqueles sistemas municipais consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público.
A gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios e pode ser por eles prosseguida isoladamente ou através de associações de municípios ou de áreas metropolitanas, mediante sistemas intermunicipais (artigo 6º, nº 1).
A gestão daqueles serviços pode ser efectuada de acordo com um dos seguintes modelos de gestão:
a) Prestação directa do serviço;
b) Delegação do serviço em empresa constituída em parceria com o Estado;
c) Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local;
d) Concessão do serviço (artº 7º, nº 1).
No modelo de gestão direta o serviço pode ser prestado através de serviços municipais, de serviços intermunicipais, de serviços municipalizados ou de serviços intermunicipalizados (artº 14º, nº1).
No modelo de gestão em parceria podem ser estabelecidas parcerias entre o Estado e os municípios, as associações de municípios ou as áreas metropolitanas com vista à exploração e gestão de sistemas municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos (artº 16º, nº 1).
No modelo de delegação do serviço em empresa do sector empresarial local o serviço é prestado por empresa municipal delegatária constituída nos termos previstos no regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei n.º 53 -F/2006, de 29 de Dezembro (artºs 17º e 18º).
No modelo de gestão concessionada a concessão dos serviços municipais, a realizar de acordo com este diploma e, subsidiariamente, com o Código dos Contratos Públicos, inclui a operação, a manutenção e a conservação do sistema, previstas no n.º 1 do artigo 2.º, e pode incluir ainda a construção, a renovação e a substituição de infra-estruturas, instalações e equipamentos (artºs 31º e 32º).
Sendo então o abastecimento de água efectuado por várias entidades - podendo ser entidades privadas em regime de concessão – ainda que se aceite que no caso de a gestão ficar a cargo dos municípios ou empresas municipais possa ser usado o processo de execução fiscal, subsiste a questão quando a gestão estiver a cargo de concessionárias.
Ora, quanto a estas acompanhamos António Malheiro de Magalhães (Ob. Citada), quando escreve que o processo de execução fiscal é um meio jurisdicional específico contemplado na lei apenas ao dispor do Estado e outras pessoas colectivas de direito público para procederem à cobrança coerciva de tributos bem como de outras dívidas quando a lei assim o previr.
Por isso, quando uma entidade privada - neste caso uma concessionária - desenvolve uma actividade materialmente administrativa traduzida na prestação de um serviço público essencial previsto na Lei nº 23/96, está excluído o âmbito do processo de execução fiscal, com o recurso aos meios de execução comuns.
Deste modo, o processo de execução fiscal continua a ser o meio próprio para cobrança coerciva de dívidas por abastecimento de água e saneamento, quando o serviço for prestado pelo Município ou por empresa municipal.
Sendo o serviço prestado por concessionário, e como refere Pedro Gonçalves – A Concessão de Serviços Públicos, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 320, “ em caso de incumprimento do utente, a nota de cobrança emitida pelo concessionário está desprovida de força executiva, não podendo portanto, dar lugar a um imediato processo de execução fiscal”.
Este entendimento em nada colide com o regime da Lei nº 23/96, já que, tratando-se da cobrança de dívidas aos municípios ou empresas municipalizadas, a “propositura da acção” a que se refere o artº 10º tem de entender-se como reportada à instauração da execução fiscal, devendo noutras matérias aplicar-se a LGT (suspensão da prescrição, por exemplo, como bem se refere no Parecer do Provedor de Justiça acima identificado).
Esta cobrança coerciva pelos próprios serviços, como se escreveu no acórdão deste STA, de 30.05.2001- Processo nº 026109, acima parcialmente transcrito, situa-se “na linha de atribuição legislativa do poder de auto tutela administrativa dos efeitos jurídicos pecuniários estatuídos pelos seus próprios actos administrativo-tributários, mais não representa do que uma simples adaptação do regime que vigora para a cobrança de outras dívidas de natureza tributária em relação à administração tributária (arts. 149º e segs.). Consubstanciando-se a execução forçada do acto tributário essencialmente em tarefas administrativas, que dão assim expressão à força jurídico-imperativo-vinculante que os efeitos do acto administrativo tributário importa, entendeu o legislador atribuir essa tarefa à própria administração, embora sob o directo controlo do tribunal, dada a natureza apertada do regime jurídico a que essa execução está sujeita, quase que diríamos estritamente vinculada, desonerando o tribunal de levar a cabo tarefas de cariz meramente executivo. É essa visão das coisas que está afirmada no artº 103º da LGT. Mas isso não impede, mas antes é sugerido em virtude da diferente natureza das dívidas de que sejam credoras, que essa actividade de auto-tutela seja levada a cabo pela diversa administração que leva a cabo a gestão dos interesses públicos a que respeitam as receitas a cobrar coercivamente. É nesta linha que se posiciona a competência da administração tributária dependente da Direcção-Geral dos Impostos que está prevista na al. f) do nº 1 do artº 10º do CCPT de ”instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes” pelas receitas cuja arrecadação deva garantir. É ainda o mesmo princípio axiológico que justifica a opção recente do legislador de cometer aos Centros Regionais de Segurança Social, através de secção de processos, a cobrança coerciva dos valores relativos às cotizações e às contribuições (artº. 63º da Lei nº 17/2000, de 8 de Agosto, já entrado em vigor – artº. 119º da mesma Lei).
VII. Para concluir e dar então uma resposta à questão, há que referir que, nos casos acima referidos em que seja instaurada execução fiscal, o tribunal tributário é competente para apreciar as questões colocadas no processo de execução fiscal, por força do disposto no artº 151º do CPPT.
VIII. Em face de todo o exposto, ao abrigo do disposto no artº 93º do CPTA, e relativamente à questão: «No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos?»
Acordam os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário em responder à mesma pela forma seguinte:
No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n.º 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal”.
Concorda-se inteiramente com esta bem fundamentada decisão.
Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 212º, nº 3, da Constituição).
A regra da competência dos tribunais da ordem judicial, segundo o chamado princípio do residual, é a de que são da sua competência as causas não legalmente atribuídas aos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigos 66º do Código de Processo Civil e 18º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro – LOFTJ).
No caso em apreço, poderemos afirmar que a Autora, Águas do Noroeste S.A, é uma concessionária de serviço público, por via da celebração com o Estado Português, em Guimarães, em 30 de Junho de 2010, de um “Contrato de concessão, mediante a qual lhe foi atribuído, em exclusivo, a concessão, gestão e exploração, que abrangia a concepção, construção das obras e equipamentos, bem como a sua exploração, reparação, renovação e manutenção, do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Noroeste”, que abrangia o Município de Valença, por força do Protocolo celebrado entre a então Águas do Minho e Lima S.A., então antecessora da Águas do Noroeste S.A., e o Município de Valença.
Tendo o contrato celebrado entre o Município e a ora autora por objecto a concessão da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e de recolha, tratamento e drenagem de águas residuais, encontramo-nos perante um típico contrato administrativo – arts. 179º, nº, e 178º, nº2, al. c), do CPA –, sujeito ao regime do direito público, pelo que, aceitar-se-á, sem mais, a competência dos tribunais administrativos em razão da matéria para as acções respeitantes à interpretação, validade e execução tais contratos (Cfr., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do TRP de 15.11.2011, relatado por Ondina Carmo Alves (proc. 425824/10.1YIPRT.P1), de 27.10.2011, relatado por Filipe Caroço (Proc. n.º 338995/10.4YIPRT.P1, de 22.11.2011, relatado por Fernando Samões (proc. n.º 425825/10.0YIPRT.P1), e de 21/05/2013, relatado por Maria João Areias (Proc. n.º 148811/12.0YIPRT.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.).
Quanto a esta Relação de Guimarães são já vários os Acórdãos que consideram o tribunal administrativo o competente, embora para os casos de cobrança de consumos de água a particulares e pessoas colectivas (cfr. Ac. de 13-06-2013, proc. n.º 206886/12.6YIPRT.G1, relator Manuel Bargado, de 30/05/2013 proc. n.º 99302/12.3YIPRT.G1 Relator Rita Romeira, de 2/05/2013, proc. n.º 99306/12.6YIPRT.G1, Relator Carvalho Guerra, de 4/04/2013, proc. n.º 142872/12.9YIPRT.G1, Relator Manso Rainho, entre outros). Em sentido contrário, entre outros, o mais recente é o de 23/04/2013, proc. n.º 45692/12.3YIPRT.G1, (Relatora Ana Cristina Duarte), para além do proferido em 19/02/2013, no proc. 353418/10.0YIPRT.G1, Relator Beça Pereira, mas com voto de vencido do Desembargador Edgar Gouveia Valente).
Ora, no caso vertente, trata-se de questão relativa ao contrato de concessão de fornecimento de água em “alta” e de recolha de efluentes, entre duas entidades que prosseguem interesses públicos relevantes e que nessa qualidade assumiram direitos e obrigações recíprocas.
Por isso afigura-se-nos ser indubitável que são competentes para dela conhecer os tribunais administrativos e fiscais e não os tribunais comuns.
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Atenta a posição agora assumida fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
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Sumariando:
O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para apreciar uma acção baseada no incumprimento de contratos de fornecimento de água para consumo público e de recolha de efluentes, celebrados entre uma concessionária desses serviços e um município, impróprios de relações de natureza tipicamente privada, como é o sistema multimunicipal de contínuo abastecimento de água e de saneamento, por pertencerem à jurisdição administrativa.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, e, na revogação da decisão recorrida, julgam procedente a incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns, máxime do Tribunal Judicial de Barcelos, com a consequente absolvição da ré da instância.
Custas, aqui e na 1.ª instância, pela autora, aqui apelada.
Guimarães, 23 de Janeiro de 2014.
José Estelita de Mendonça
Conceição Bucho
Antero Veiga