Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
419/11.1TBCMN.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/13/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.- Sendo a declaração de insolvência requerida por um credor, este, na petição inicial, para além de justificar a natureza e o montante do seu crédito, nos termos do artº. 25º., nº. 1, do CIRE, deverá alegar, e provar, factos que consubstanciem algum dos “factos-índice” referidos nas alíneas a) a h) do nº. 1 do artº. 20º., do mesmo Código.
II.- Não tendo o devedor deduzido oposição consideram-se assentes os factos invocados pelo credor.
III.- Assim, não tendo o credor de provar que o devedor está impossibilitado de satisfazer as suas obrigações vencidas, é de declarar a insolvência perante a prova sumária de factos que consubstanciem pelo menos um dos “factos-índice” acima referidos.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES -
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A) RELATÓRIO
I.- “MB, Ldª.”, sociedade comercial com sede em Paredes, requereu, no Tribunal Judicial de Caminha, a insolvência de “CV, Ldª.”, sociedade comercial com sede em Moledo, alegando, em síntese, que tem um crédito sobre esta do montante de € 9.832,05, titulado por quatro cheques, que, apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão. Instaurada acção executiva, não foram penhorados quaisquer bens, tendo-se verificado que as portas da sede da Requerida estavam fechadas. Solicitado o sócio-gerente para as abrir, a fim de se proceder à penhora dos bens que aí se encontrassem, alegou que não tinha a chave do imóvel e que os bens tinham sido vendidos.
Foi citada a Requerida e não deduziu oposição nem, tampouco, prestou as informações referidas no artº. 24º., nº. 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Foram notificados os Serviços de Finanças e a Segurança Social para informarem se têm créditos sobre a Requerida, havendo estes informado como consta de fls. 55 e 50/51, respectivamente.
Foi proferida sentença que, embora reconhecendo estarem confessados os factos invocados pela Requerente, entendeu serem eles insuficientes para demonstrarem a impossibilidade da Requerida cumprir as suas obrigações, indeferindo, por isso, o pedido de declaração de insolvência.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pretendendo a Recorrente que ela seja revogada e substituída por outra que declare a Requerida insolvente, prosseguindo o processo os seus termos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Recorrente formula as seguintes conclusões:
1. – Nos termos do art. 30.º, nº 5 do CIRE, se o devedor não deduzir oposição não tendo a sua audiência sido dispensada, consideram-se confessados os factos alegados no requerimento inicial.
2.- Com a matéria dada como provada e supra referida tinha o tribunal ao seu dispor elementos bastantes para decretar a insolvência da requerida.
3.- Não tinha a requerente que ir mais além do que aquilo que alegou e que se mostrou provado, para decretar a insolvência pelo menos com o preenchimento legal do facto índice da alínea b) do art. 20.º do CIRE.
4.- Merecendo toda a censura a decisão recorrida, o tribunal “a quo” violou, entre outros, as disposições legais b) e c) do art. 20.º do CIRE.
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São as conclusões que definem e delimitam o objecto do recurso, como se extrai do disposto nos artº.s 684º., nº. 3; 685º.-A, nº.s 1 e 3, e 685º.-C, nº. 2, alínea b), todos do C.P.Civil, e vem sendo invariavelmente reafirmado pela jurisprudência.
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B) FUNDAMENTAÇÃO
III.- Relativamente à matéria de facto, a sentença impugnada não discrimina os factos que foram considerados provados – cfr. artº. 659º., nº. 2, do C.P.Civil.
Sem embargo, havendo considerado que “atenta a falta de oposição da requerida, consideram-se confessados os factos alegados no requerimento inicial” (cfr. sexto parágrafo de fls. 91), o Meritíssimo Juiz a quo acaba por referir-se a três deles - a instauração da execução e o inêxito da apreensão de bens “numa só diligência de penhora”; o montante da dívida da requerida, de € 10.519,05; e que as portas da sede da requerida se encontravam fechadas no dia da diligência da penhora (cfr. fls. 93, dois últimos parágrafos e 94) - para concluir não serem suficientes para preencherem os “factos-índice” referidos nas alíneas b), c) e e), do nº. 1 do artº. 20º., do CIRE.
Acresce que, muito embora os Serviços de Finanças e a Segurança Social tenham vindo, no cumprimento da notificação que lhes foi feita, informar dos seus créditos sobre a devedora – cfr. fls. 39 e 51 e 55 – a existência destes créditos não foi mencionada na sentença, donde se deduz não ter sido ponderada na decisão.
Sem embargo, não se considera padecer, a referida sentença, do vício referido na alínea b) do nº. 1 do artº. 668º., do C.P.Civil, nem de insuficiência da análise das provas, a que se alude no nº. 2 do artº. 653º., do mesmo Cód., por os trechos acima mencionados preencherem os mínimos exigíveis já que os factos neles referidos foram os únicos considerados para fundamentar a decisão.
Porque o acórdão da Relação obedece à mesma estrutura da sentença, como dispõe o nº. 2 do artº. 713º., do referido Código, e porque, nos termos do artº. 712º., nº. 1, alínea b) a decisão do tribunal da 1ª. instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, e ainda porque o artº. 11º. do CIRE, consagrando o princípio do inquisitório, permite ao o juiz fundar a decisão em actos que não tenham sido alegados pelas partes, na matéria de facto que infra se vai discriminar incluir-se-ão os dois créditos referidos bem como outros factos que interessam à decisão e estão documentalmente comprovados nos autos (v.g. a informação de fls. 78 sobre a inexistência de imóveis e veículos automóveis registados em nome da Requerida).
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IV.- Assim, com relevância para a decisão, considerados os factos confessados e os que se encontram documentalmente comprovados nos autos, tem-se por provado que:
a) – A Requerente dedica-se à comercialização de madeiras.
b) A Requerida dedica-se à exploração de carpintaria. Fabrico, comércio, importação e exportação de produtos em madeira, nomeadamente mobiliário e portas. Colocação na obra dos trabalhos de carpintaria por si executados. Indústria de construção civil.
c) Para pagamento de uma dívida, que reconheceu, do montante de € 9.832,05, a Requerida entregou à Requerente três cheques no valor de € 1.000 cada e um cheque no valor de € 6.832,05.
d) – Estes cheques foram apresentados a pagamento e foram devolvidos por falta de provisão.
e) – A Requerente instaurou contra a Requerida acção executiva e deu à execução os referidos três cheques no valor de € 1.000 cada.
f) – No dia 11/07/2011, pelas 15:30 horas, tentou-se proceder à penhora em bens da Requerida o que não foi conseguido por a respectiva sede se encontrar fechada e o seu sócio-gerente se escusar a abrir a porta informando que “não tinha a chave e os bens tinham sido vendidos”.
g) – Ainda na mesma altura tentou-se obter um acordo de pagamento da dívida mas o sócio-gerente da Requerida limitou-se a referir que “quando lhe fosse possível efectuaria o pagamento”.
h) A Requerida não tem prédios ou veículos automóveis registados em seu nome - cfr. informação prestada pela Direcção-Geral dos Impostos, constante de fls. 78, que se dá aqui por reproduzida.
i) – O crédito da Requerente era, à data em que a presente acção foi proposta, do montante de € 10.519,05.
j) – A Requerida não paga as contribuições à Segurança Social desde Maio de 2008 estando em dívida, até ao mês Junho do ano em curso, a quantia total de € 12.628,32 – cfr. Docs. de fls. 50 e 51, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzidos.
k) – A Requerida não pagou o IRC relativo ao ano de 2009, tendo sido instaurada contra si uma execução fiscal com vista a obter o pagamento daquele imposto, no valor de € 17,73 e dos juros de mora liquidados por € 9,70 – cfr. a informação constante de fls. 55, cujo teor se dá por reproduzida na íntegra.
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V.- Como se extrai das conclusões o thema decidenduum é se a facticidade provada, acima transcrita, é ou não suficiente para fundamentar a declaração de insolvência da Requerida.
Escreveu-se no segundo parágrafo do ponto 3 do preâmbulo do Dec.-Lei 53/2004, de 18 de Março (que aprova o CIRE), “Quem intervém no tráfego jurídico, e especialmente quando aí exerce uma actividade comercial, assume por esse motivo indeclináveis deveres, à cabeça deles o de honrar os compromissos assumidos. A vida económica e empresarial é vida de interdependência, pelo que o incumprimento por parte de certos agentes repercute-se necessariamente na situação económica e financeira dos demais”.
Assumidamente, o CIRE pretende fornecer aos credores “meios idóneos para fazer face à insolvência dos seus devedores”.
Assim é que, nos termos do artº. 3º., nº.s 1 e 2, deve ser considerado em situação de insolvente o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Relativamente às pessoas colectivas e aos patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.
Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, “De há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas.
O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante” (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Reimpressão, pág. 72. Cfr., v.g. Ac. da Rel. do Porto de 17/12/2008, in C.J., ano XXXIII, Tomo V/2008, págs. 198 e sgs).
O CIRE, no artº. 30º., nº. 5, estabelece um efeito cominatório semi-pleno - à semelhança do disposto no artº. 484º., do C.P.Civil, se o devedor não contestar/não se opuser, consideram-se confessados os factos alegados na petição inicial, mas não há uma automática condenação no pedido, devendo o tribunal apurar se tais factos preenchem alguma das hipóteses constantes das alíneas a) a h) do nº. 1 do artº. 20º..
A Relação de Évora, no Ac. de 25/10/2007, considerou ser este um dos casos excepcionais “em que a lei atribui valor declarativo ao silêncio (art. 218º do CC)” e, por isso, julgou demonstrada a impossibilidade de o devedor cumprir as obrigações vencidas “pela confissão … decorrente da sua falta de oposição” (in C. J., ano XXXII, Tomo IV/2007, pág. 261).
É através dos factos constantes das alíneas do nº. 1 do artº. 20º., acima referidas – “factos-índice” - que, regra geral, a insolvência se manifesta, e por isso é que a verificação de qualquer um deles faz presumir a situação de insolvência do devedor.
Como resulta do disposto no artº. 350º., nº. 1 do C.P.Civil, os credores apenas terão de alegar e provar a ocorrência de qualquer um daqueles “factos- índice” e não também a impossibilidade do o devedor cumprir com as suas obrigações vencidas. Este é que, querendo, poderá elidir a presunção, fazendo a prova de que não está insolvente – cfr. nº. 2 daquele artº. 350º..
Assim, os credores apenas têm de alegar e provar que ocorreram e se verificaram factos que consubstanciam, pelo menos, um dos factos-índice, mas não tem de provar que o devedor está impossibilitado de satisfazer as suas obrigações, sendo certo que também quanto àqueles factos-índice será bastante a prova sumária (cfr. neste sentido o Ac. do S.T.J. de 31/01/2006, in www.dgsi.pt, proferido no Procº. nº. 05A3706), o que se aceita por, regra geral, os credores não terem acesso ao conjunto do passivo do devedor.
A alínea b) reporta-se à “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
E, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, “uma vez que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, o requerente deve então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada” (ob. cit. pág. 135).
Ora, na situação sub judicio a Requerente alegou, e, atenta a não contestação, ficou assente, que o próprio sócio-gerente da Requerida reconheceu não ter possibilidades para pagar o crédito daquela. Quando se tentou obter um acordo de pagamento ele esquivou-se a assumir qualquer compromisso, limitando-se a referir que “quando lhe fosse possível efectuaria o pagamento” (cfr. supra em IV, alínea g)).
E esta atitude esquiva não se ficou por aqui, já que se escusou a abrir as portas da sede da Requerida dizendo que «não tinha a chave» (como se lhe fora impossível ir ou mandar alguém buscá-la) e ainda que «os bens tinham sido vendidos» (cfr. supra em IV, alínea f)).
Acresce que, conforme foi alegado (cfr. item 9 da p.i.) foi já invocando “dificuldades económicas” que a Requerida solicitou, e a Requerente acedeu, a substituição, pelos quatro cheques acima referidos, do (único) cheque que titulava a dívida (que a Requerida havia emitido e entregue à “N, Ldª.”, que o endossou à Recorrente), substituição essa que lhe permitia o pagamento faseado da dívida.
Ora, aquele comportamento do sócio-gerente da Requerida, conjugado com a sua confissão sobre as dificuldades económicas desta, e tendo ainda em atenção o montante da dívida, justificam que se conclua pelo seu estado de insolvência.
De resto, e mau grado a Requerida não ter dado satisfação à notificação que lhe foi feita para apresentar uma lista dos seus cinco maiores credores, consta dos autos a existência de dois créditos – um à Segurança Social, do montante de € 12.628,32, e outro ao Fisco, no valor de € 27,43 (cfr. supra em IV, alíneas j) e k) e fls. 51 e 55).
E se o montante daquele crédito é já considerável, só não paga a quantia irrisória da dívida ao Fisco quem se encontra mesmo na penúria.
Acresce que mal se compreende que a Requerida, dedicando-se à actividade de carpintaria, que pressupõe a necessidade de transportar as madeiras e os móveis fabricados, (já) não possua qualquer veículo, como informa a Direcção-Geral dos Impostos a fls. 78.
Sem embargo, há a juntar ainda o facto de na execução que a Recorrente moveu à Requerida não terem sido penhorados quaisquer bens por não terem sido encontrados – a sede desta encontrava-se vazia como observou a Srª. Solicitadora de Execução, e fez constar a fls. 71 – pelo que se perfilam duas hipóteses: ou a Requerida anda a fugir com os bens aos credores ou então já não tem meios que lhe permitam continuar a desenvolver a sua actividade comercial. O que, igualmente, aponta para uma situação de total impossibilidade de satisfazer as suas obrigações.
Do exposto se conclui estarem verificados os pressupostos legalmente exigidos para declarar a Requerida insolvente.
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C) - DECISÃO
Nos termos que acima se deixam expostos, e na procedência das conclusões formuladas pela Recorrente, decide-se conceder provimento ao recurso e, revogando-se a decisão impugnada, nos termos do disposto no artº. 36º., do CIRE, declara-se em estado de insolvência a sociedade comercial “CV, LDª.”, com sede em Caminha, e, consequentemente:
i) – nomeia-se administrador da insolvência o indicado pela Requerente, Dr.;
ii) – determina-se que o representante legal da Requerida entregue imediatamente ao administrador da insolvência os documentos referidos no nº. 1 do artº. 24º., do CIRE.;
iii) – decreta-se a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade e de todos os bens da Requerida;
iv) – declara-se aberto o incidente de qualificação de insolvência, com carácter pleno;
v) – fixa-se em 30 dias o prazo para a reclamação dos créditos.
Oportunamente dar-se-á cumprimento ao disposto na alínea n) do artº. 36º., do CIRE.
Custas da acção pela massa insolvente.
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Sem custas a apelação.
Notifique.
Guimarães, 13/Dezº./2011 (às 14:30 horas)
Fernando F. Freitas – relator
Purificação Carvalho - Adjunta
Eduardo José Oliveira Azevedo – Adjunto