Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1267/06-1
Relator: MANSO RAINHO
Descritores: PENHORA
CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO DE USO
HABITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – A casa de morada de família não é bem impenhorável.
II – Penhorado o imóvel, casa de morada de família, e que é bem próprio do cônjuge executado, não goza o outro cônjuge do direito de exigir a restrição da penhora de forma a que esta não contenda com a faculdade de usar a casa de morada de família.
III – O cônjuge do executado que resida na casa de morada de família não é titular de qualquer direito real de habitação, nem é possuidor em nome próprio.
IV – A norma que admite a penhora de imóvel que funcione como casa de morada de família não atenta contra o direito constitucional à habitação.
Decisão Texto Integral: Recurso nº 1267/06
Agravo

Tribunal recorrido: Vara de Competência Mista de Braga. Processo nº 10159/03.


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Acordam em conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães:


A veio, por apenso aos autos de execução instaurados por B. contra C, deduzir oposição a essa mesma execução e á penhora em fracção autónoma nela realizada, peticionando que se ordenasse a suspensão imediata da execução, se reconhecesse o “direito de uso e habitação” da opoente e seu agregado familiar relativamente à fracção penhorada, se determinasse a “relativa impenhorabilidade” de tal bem, “limitando a sua extensão”, e se condenasse a exequente por danos causados à opoente.
Alegou para o efeito, em síntese, que é casada com o executado, que tem dois filhos (um dos quais também filho do executado), e que o casal e filhos têm a sua residência familiar na fracção penhorada. Deste modo, conquanto a fracção penhorada seja bem próprio do executado, a penhora ofende o “direito de uso e habitação” e a posse da opoente, conferida pelo artº 1682º-A do CC, de sorte que tem direito ao que vem peticionar.
A oposição foi recebida e a exequente notificada para contestar.
Contra o assim decidido foi interposto pela exequente recurso, admitido como agravo e com subida diferida.
Contestou a exequente, concluindo pela improcedência da oposição.
Findos os articulados, julgando-se habilitada a conhecer deste logo da oposição, proferiu a Mmª juiz decisão onde a julgou improcedente.

Inconformada com o assim decidido, agrava a opoente.

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Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

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Importa começar pelo agravo interposto contra a decisão que julgou improcedente a oposição, na medida em que se o decidido for confirmado não haverá que conhecer do agravo retido (artº 710º, nº 1, 2ª parte, do CPC, por analogia).


São as seguintes as conclusões que a agravante extrai da sua alegação:

1. A ora recorrente deduz oposição à penhora, na extensão com que foi realizada, pois aí não se protege o seu direito real de gozo.
2. A fracção penhorada em causa, é bem próprio do executado C.
3. A ora Recorrente casou com o dito C a 06 de Dezembro de 2001 e, desde essa data, é na fracção penhorada que tem, juntamente com os seus dois filhos menores, a casa de morada de família.
4. Este Executado, C, onerou a casa de morada de família sem o consentimento do seu cônjuge.
5. Ora, como o direito de uso da casa de família, que se constituiu na data do seu casamento, é anterior à penhora, não caduca com a venda do bem penhorado. Artº 824º do Código Civil.
6. Devendo antes ser reconhecido.
7. A função social do Estado de protecção da família e da casa de morada de família, que se plasmou nos preceitos constitucionais e legais indicados, não pode ser aqui escamoteada, tal como faz a decisão de que se recorre, incorrendo na sua violação
8. Aliás, mal se perceberia que o direito ao arrendamento se mantenha quando o proprietário vende o imóvel arrendado e, ao mesmo tempo, não se mantenha o direito de habitação do agregado familiar do Executado que onerou a casa de morada de família sem o consentimento do seu cônjuge, à revelia do que se prevê no art. 1682°-A do Código Civil. O mesmo valendo para o direito de usufruto.
9. Cite-se o Doutor J. Oliveira Ascensão, em «Locação de bens dados em garantia», pág. 355: "O grande princípio da nossa ordem jurídica é o da analogia, fundado na regra constitucional do tratamento idêntico de casos semelhantes."
E veja-se o Ac. RL de 11/09/2004, em www.dgsi.pt.
10. O que aqui se discute é a protecção da família e da casa de morada de família (art. 1682°-A do Cód. Civil), valores estes indiscutivelmente superiores ao interesse da Exequente em ver liquidado o seu crédito, interesse este que nem se pode dizer afectado pela procedência da presente oposição.
11. A penhora da casa de morada de família viola os preceitos constitucionais e legais que a protegem (assim como protegem a família), na exacta medida em que a sua venda seja ordenada sem o reconhecimento do direito de habitação do agregado familiar.
12. Atente-se no Ac. RL de 07/03/2003 em www.dgsi.pt: “A política de protecção da casa de morada de família «pretende ser global no sentido de que os instrumentos legais em que se traduz devem aplicar-se qualquer que seja o regime de bens do casamento e qualquer que seja o direito através do qual a casa de morada de família é assegurada: direito real (de propriedade, usufruto ou outro) ou direito de crédito (arrendamento» (RLJ, Pereira Coelho, Ano 122, pág. 136). Daqui decorre o seguinte: os instrumentos de protecção da casa de morada de família visam garantir a sua permanência e, portanto, hão-de obstar necessariamente à privação do gozo da coisa contra a vontade dos respectivos beneficiários. Ora, tanto face a eventuais agressões externas como internas, os titulares do direito à utilização da casa de morada de família não podem deixar, em razão desse direito, de dispor dos meios procedimentais adequados (art. 2°/2 CPC)".
13. Desta forma, julga-se que será relevante, para efeitos da decisão, o apuramento dos factos relativos à residência do agregado familiar da ora Recorrente.
14. Nestes termos, deverá ser marcada data para o apuramento dos factos alegados pela ora Recorrente, julgando-se a presente oposição procedente e, em consequência, limitar-se a extensão da penhora realizada através do reconhecimento do direito da ora Recorrente e seu agregado familiar, que onera a fracção penhorada, sob pena de a decisão recorrida violar os preceitos constitucionais e legais de protecção à família e à casa de morada de família (arts. 65° da CRP., 824° e 1682°-A do CC) e o preceito do art. 863°-A do CPC.
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A nosso ver a agravante carece de razão.
Justificando:
Com o presente processo veio a agravante, alegadamente (v. intróito do requerimento inicial), deduzir oposição “à execução”. Mas o que decorre do seu requerimento de oposição é que não apresenta qualquer oposição à execução. O que faz unicamente é deduzir oposição à penhora.
Actua na condição de cônjuge do executado.
Indiscutível é que a agravante podia apresentar oposição quer à execução (com os fundamentos referidos no artº 814º e sgts do CPC) quer à penhora (com os fundamentos referidos no artº 863º-A do CPC), atento o disposto no artº 864º-A do CPC.
Parafraseando Fernando Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 4ª ed., pág. 260), podemos dizer que “tendo em conta que a penhora de bens visa o fim último da sua alienação, também no processo de execução se devem encontrar ambos os cônjuges, sempre que os bens imóveis penhorados só por ambos possam ser alienados. Daí haver necessidade de chamar à execução o cônjuge não demandado, na sequência da penhora de tal tipo de bens. Eis a razão de ser da 1ª parte da alínea a) do nº 3 do artº 864º: penhorados bens imóveis de que o executado não possa dispor livremente, convoca-se o seu cônjuge para acompanhar todo o ritual que conduza ou dificulte a perda desses bens a favor da execução”.
Ora, lendo-se a petição da oposição vê-se que, contra o anunciado pela opoente, nada esta alegou que se subsuma ao primeiro conjunto de normativos. O que significa que a oposição era à partida, enquanto dirigida também à própria execução, uma oposição carecida de fundamentos, logo improcedente.
Mas o que na realidade faz a opoente é vir defender um suposto direito real de habitação e uma suposta posse sobre o bem penhorado, por ser, segundo diz, a casa de morada de família. E a partir daqui defende que a penhora devia ter sido feita com menor extensão (não nos explica porém em que é que consistiria essa menor extensão, nem como é que uma tal penhora se concretizaria na prática).
Como expende Fernando Amâncio Ferreira (ob. cit., pagã. 224 e 225) o que está ínsito na segunda parte da alínea a) do nº 1 do artº 863º-A do CPC são as situações de impenhorabilidade parcial, de penhora de parte especificada de bens indivisos ou de bens compreendidos num património comum ou de uma fracção de qualquer deles, em execução apenas movida contra algum ou alguns dos contitulares, bem como, em caso de penhora de imóveis, a sua extensão a frutos expressamente excluídos ou sobre os quais exista algum privilégio. Em suma, são situações de ilegalidade (ou, como diz Lebre de Freitas [A Acção Executiva, 4ª ed., pág. 280], situações de impenhorabilidade enunciadas na lei processual) da penhora, tal como foi realizada na sua extensão.
Ora, a factualidade apontada pela opoente não se subsume a qualquer situação de impenhorabilidade conforme enunciado na lei processual. Em sítio algum a lei processual impõe relativamente à casa de morada de família uma impenhorabilidade relativa ou uma impenhorabilidade parcial.
O que significa que a fundamentação apresentada pela agravante em ordem a neutralizar a penhora tal como realizada carece de procedência.
De resto, como dizem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, Vol I, 3ª ed., pág. 432), no direito português actual a casa de morada da família não está protegida contra o acto de penhora.
Fala a agravante em ser possuidora em nome próprio (isto em decorrência do direito real de uso de que se arroga).
Mas, a nosso ver, a agravante não pode ser tida como titular de um direito real de habitação.
O poder ou a faculdade que a agravante possa ter de morar na fracção penhorada, por ser casada com o executado e a fracção constituir a casa de morada da família, nada tem a ver juridicamente com o direito real de gozo que é o direito de habitação, e a que se referem os artºs 1484º e sgts do CC. Pois que não há qualquer disposição legal (v. artºs 1485º e 1440º do CC) que confira ao cônjuge do proprietário um tal direito e, vista a questão no plano negocial entre vivos (contrato), pelo direito real de habitação o proprietário da casa de morada cede ao usuário morador o uso (e, em certos casos, também a fruição) atinente a uma casa de morada, demitindo-se consequentemente desse uso e vendo assim constrangido no uso o seu direito de propriedade. Não é, manifestamente, o que se passa com a faculdade ou poder de habitar a casa de morada de família, em que o cônjuge proprietário não se demite de qualquer uso.
Como assim, julgamos que não pode a agravante querer ver-se como titular de qualquer direito de posse (causal) em função desse (inexistente) direito real de gozo, que é o direito de habitação.
Por outro lado, o artº 1682º-A do CC não confere nem pressupõe qualquer posse formal relativamente ao cônjuge do proprietário da casa de morada de família. O cônjuge do proprietário é, na nossa perspectiva, um mero detentor ou possuidor precário, não tendo direito a impedir ou limitar, por razões possessórias, a penhora sobre o imóvel. Dentro desta ordem de ideias, já decidiu a Relação de Coimbra em acórdão de 6.10.93 (v. Col Jur, 1993, IV, pág. 53 e sgts) que o cônjuge do executado não tem direito a embargar de terceiro a penhora da casa de morada de família, bem próprio do executado, pois que o cônjuge carece de qualquer verdadeiro direito subjectivo ao gozo à casa de morada de família, e os bens próprios do devedor não podem deixar de responder pelas suas dívidas. Mas mesmo que assim se não vissem as coisas (e há que reconhecer que já se decidiu – fizeram-no os Ac’s do STJ de 13.3.97 [BMJ 465, pág. 498 e sgts] e de 31.10.91 [BMJ 410, pág. 795 e sgts] – que o cônjuge do proprietário da casa de morada de família é possuidor), cremos que qualquer reacção contra a penhora da fracção teria que ser feita mediante embargos de terceiro, e não mediante o expediente de oposição à penhora. Pois que o que está então em questão é o direito de posse da opoente e a sua ofensa por um acto judicialmente ordenado, e não qualquer questão atinente à legalidade da penhora conforme enunciada na lei processual.
E pelo que fica dito se vê, liminarmente, que o artº 824º do CC, invocado pela agravante, não vem nada ao caso.
E também nos parece que é deslocada a invocação do princípio consignado no artº 1057º do CC, pois que não estamos perante situações paralelas que devam ter o mesmo tratamento. Compreende-se a solução legal no caso da locação (que nem sequer tem de versar um imóvel para habitação), por isso que se trata de salvaguardar uma relação sinalagmática que tem subjacente uma obrigação contratual constituída para se suceder no tempo. Enquanto essa relação contratual não estiver exaurida as obrigações recíprocas, e desde logo a de proporcionar o gozo da coisa, têm que se manter. Não é o que se passa na simples faculdade de habitar a casa de morada da família. Não têm que ter tratamento idêntico, por simples recriação do intérprete ou do aplicador da lei, situações baseadas em pressupostos diferentes.
Traz a agravante à liça o artº 65º da Constituição.
Cremos porém que o que consta desse normativo em nada lhe aproveita. Pois que como observam Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, I, pág. 665 e 666), a norma que admite a penhora de um imóvel onde se situa a casa de habitação do executado e seu agregado familiar não viola o direito que todos têm de haver para si e família uma habitação, tanto porque o direito à habitação não se confunde com o direito a ter uma habitação num imóvel da propriedade do cidadão, como porque a penhora, só por si, não priva de habitação quem na casa de morada de família possa habitar.
Improcede pois o agravo.

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Do agravo retido interposto pela exequente:

Dentro do que acima ficou dito à luz do artº 710º, nº 1 do CPC, conclui-se o agravo interposto pela exequente B não pode ser apreciado. Pois que, confirmada que é a decisão que conheceu da oposição, julgando-a improcedente, carece de lógica aferir da bondade de tal recurso, pois que a recorrente obteve já ganho de causa.
Aliás, nunca o agravo poderia ser provido, atento o disposto no nº 2 do mesmo artº 710º, na medida em que nem a suposta infracção influiu no exame ou decisão da causa, nem o provimento do agravo retido tem qualquer interesse para a agravante.

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Decisão:

Pelo exposto, acordam os juízes nesta Relação em:

a) Negar provimento ao agravo interposto pela opoente A;

b) Julgar prejudicado, por inútil, o conhecimento do agravo interposto pela exequente B.



Regime de Custas:


Custas de recurso pela agravante A.

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Guimarães, 5 de Julho de 2006

Manso Rainho
Rosa Tching
Espinheira Baltar