Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4926/13.3TBBRG.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
ORDEM PÚBLICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – Nos termos do disposto no Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, os motivos de recusa da declaração de executoriedade de decisão proferida num Estado-Membro apenas podem abranger um dos motivos especificados nos artºs 34º e 35º do Regulamento.
2 - Ao juiz de 1ª instância não cabe a sindicância destes motivos.
3 – As decisões estrangeiras não podem ser objeto de revisão de mérito.
4 – Estando assente na sentença que se executa que a ré foi ouvida, contestou e apresentou prova, bem como certificada a notificação da decisão e o seu trânsito em julgado, não pode concluir-se pela ausência do contraditório e revelia do réu, de forma a revogar a declaração de executoriedade nos termos do artigo 34.º n.ºs 1 e 2 daquele Regulamento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
J…, com sede na Roménia, veio, ao abrigo do disposto no Regulamento (CE) n.º 44/2001, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, requerer a declaração de executoriedade da sentença n.º 303 proferida no processo n.º 2406/105/2009 pelo Tribunal de Prahova, secção comercial e de contencioso administrativo, na Roménia, contra P…, SA, com sede em Braga.
Foi proferida sentença do seguinte teor:
«J…, com sede em …, Roménia, veio propor processo especial para reconhecimento e declaração de executoriedade de decisão proferida pelo Tribunal de Prahova, secção comercial e de contencioso administrativo, na Roménia, contra P…, SA, com sede na Rua…, Braga, Portugal.
A requerente juntou os documentos referidos no artigo 53.º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro.
Deste modo, ao abrigo do disposto nos artigos 33.º, n.º 1, 34.º, 35.º e 41.º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro, declaram-se reconhecidas e executórias as decisões judiciais cujas cópias certificadas constam de fls. 16 a 27 e 54 a 56 dos autos.
Custas a cargo da requerente.
Registe e notifique – artigo 42.º do Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro».

Discordando da sentença, dela interpôs recurso a requerida, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. A decisão de reconhecimento e declaração de executoriedade da sentença do Tribunal de Prahova é nula por ter sido proferida sem ter em conta a revelia absoluta do réu.
2. É motivo de recusa do reconhecimento e declaração da executoriedade da sentença previsto no Regulamento 44/2001 do Conselho, a revelia absoluta do réu.
3. O réu nunca foi notificado de qualquer decisão proferida pelo Tribunal de Prahova, na Roménia.
4. Na jurisprudência da União Europeia, está salvaguardado o direito à defesa enquanto direito fundamental consagrado pela Carta Europeia dos Direitos do Homem, pelo que havendo revelia do réu, o Estado requerido pode e deve recusar o reconhecimento das decisões, sob pena de se aniquilarem os direitos dos cidadãos e os princípios gerais do Direito.
5. Com decisão de reconhecimento e declaração de executoriedade da sentença romena, foi violada também a cláusula de ordem pública prevista no artigo 34º do Regulamento 44/2001, pois que, com a falta de notificação à Requerida, foi-lhe negado princípio à igualdade e a tutela jurisdicional efectiva, princípios constitucionalmente consagrados pela ordem jurídica interna.
Termina pedindo que se declare nula a decisão, não se reconhecendo a sentença do tribunal de Prahova, nem lhe concedendo executoriedade.

A requerente contra alegou pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A única questão a resolver traduz-se em saber se deve ser reconhecida a sentença do Tribunal de Prahova, concedendo-lhe executoriedade.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Para além do que consta do relatório supra, dá-se aqui por reproduzido o teor da sentença proferida no Tribunal de Prahova, Roménia, cuja tradução para português se encontra junta a fls. 37 a 50 dos autos, bem como o Certificado referido nos artigos 54 e 58 do Regulamento referente às decisões e transações judiciárias, traduzido do romeno para português e junto a fls. 51 a 53 dos autos.

O Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial corresponde a um instrumento normativo de direito comunitário que permite unificar, no âmbito da sua aplicação, as normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem como simplificar as formalidades com vista ao reconhecimento e execução, rápidos e simples, das decisões proferidas sobre essas matérias – cfr. Neves Ribeiro, «Processo Civil da União Europeia», pag. 55.
Antecedendo o articulado do Regulamento considera-se que a «Comunidade atribuiu-se como objectivo a manutenção e o desenvolvimento de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça em que seja assegurada a livre circulação das pessoas» e que para «criar progressivamente tal espaço, a Comunidade deve adoptar, entre outras, as medidas no domínio da cooperação judiciária em matéria civil que sejam necessárias para o bom funcionamento do mercado interno», precisando-se que «para efeitos da livre circulação das decisões judiciais, as decisões proferidas num Estado-Membro vinculado pelo presente regulamento devem ser reconhecidas e executadas num outro Estado-Membro vinculado pelo presente regulamento, mesmo se o devedor condenado estiver domiciliado num Estado terceiro». Acrescenta-se que a «confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação» e que a «mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do procedimento para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro», pelo que «para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua própria iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada».
Quanto à exequibilidade da decisão – e é esse o âmbito em que nos situamos nos presentes autos - regem os arts. 38 e seguintes, sendo de salientar que consoante o nº 1 do art. 38 as «decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada». A condição fundamental da executoriedade da decisão comunitária é, pois, a de que tenha força executiva no Estado de origem. O juiz do Estado em que se pretenda que a decisão seja executada limita-se a apor uma declaração de executoriedade, como expressão da soberania deste Estado, sem que tenha lugar a aplicação do nº 1 do art. 49 do CPC.
Foi essa a pretensão da requerente nos presentes autos – a da declaração de executoriedade da sentença proferida em 22 de Junho de 2010 pelo Tribunal de Prahova, Roménia, sentença essa que aquele tribunal certificou ter força executiva no Estado em que foi proferida.
Consoante o art. 41 do Regulamento, a «decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artigo 53.º, sem verificação dos motivos referidos nos artigos 34.º e 35.º A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo».
Foi àquela declaração de executoriedade que o Tribunal Judicial da Comarca de Braga procedeu.
Os «trâmites previstos no artigo 53.º» reconduzem-se à apresentação de uma cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade e à apresentação de certidão emitida pelo tribunal (ou autoridade) que haja proferido a decisão «segundo o formulário uniforme constante do anexo V ao presente regulamento». No caso dos autos tais documentos encontram-se juntos.
É na fase de recurso da decisão que o requerido poderá invocar os motivos de recusa da declaração de executoriedade, dispondo o art. 45.º do Regulamento que o tribunal onde foi interposto o recurso apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35 º e que as «decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito».
“Esta última é uma regra fundamental do sistema, estruturado no reconhecimento da mútua confiança entre as jurisdições dos Estados-Membros, não podendo a vontade do juiz nacional quanto ao fundo da matéria ser substituída pela do juiz estrangeiro” – Acórdão da Relação de Lisboa de 21/02/2008, in www.dgsi.pt. – veja-se também, no mesmo sentido, Acórdão da Relação do Porto de 30/09/2004, disponível no mesmo local: “É que a confiança recíproca entre as jurisdições dos Estados-Membros é a pedra angular que justifica a livre circulação das decisões judiciais, no espaço de liberdade, de segurança e de justiça, como se tratasse de um único território estadual, ou espaço judiciário único”.
Ora, os motivos especificados nos arts. 34º e 35º são, respectivamente:
- a declaração de exequibilidade da decisão em causa ser manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido;
- o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não ter sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa (a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer);
- ser a decisão a que se reporta a declaração de exequibilidade inconciliável com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado-Membro requerido, ou ser inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido;
- terem sido desrespeitadas as regras referentes a competência (designadamente quanto a seguros, contratos celebrados por consumidores e competências exclusivas).
No caso de que nos ocupamos, a recorrente invoca a revelia absoluta do réu e a violação da cláusula de ordem pública, ou seja, os n.ºs 1 e 2 do artigo 34.º do Regulamento (pese embora se sustente nos mesmos factos, ou seja, alegando que nunca foi citada para contestar a ação na Roménia e que, também, não foi notificada da decisão).
Ora, o que verificamos dos documentos juntos é precisamente o contrário.
Desde logo, no Certificado referido no artigo 54.º do Regulamento, pode ler-se em 4.4. como data da notificação ou comunicação do acto de aviso da instância caso a decisão tenha sido proferida em ausência, a data de 27/08/2010, sendo a data da decisão, 22/06/2010 e o nome dos réus “P… SRL” e “P… SA”.
Por outro lado, resulta do teor da sentença proferida pelo Tribunal de Prahova que “no dia 23/09/2009 os réus P… SRL e P… SA contestaram o pedido, excepcionando….”. “Estas duas excepções irrefutáveis foram solucionadas pela instância de julgamento no sentido da rejeição, através do termo de 16/12/2009”. Após terem sido juntos documentos pelos reclamantes, “em tempo, no dia 20/01/2010, os réus contestaram o pedido”, esclarecendo o tribunal os fundamentos da impugnação. Mais à frente, vem dito que “a instância admitiu a prova documental e os depoimentos das testemunhas apresentados pelas partes litigantes (reclamante e réus respectivamente) e concluiu de facto e de direito nos termos seguintes: (…)”, sendo que, face à necessidade de tempo para estudar os documentos e demais prova produzida, o tribunal não proferiu, de imediato, a sentença, em audiência, tendo-o adiado por 6 dias, motivo pelo qual a mesma foi proferida em ausência das partes e notificada posteriormente.
Esta sentença tem um carimbo onde se pode ler que a mesma é definitiva e irrevogável, transitada em julgado por rejeição do apelo como sem fundamento.
Da análise dos documentos resulta, assim, que não houve qualquer revelia, pois não só as rés contestaram e apresentaram prova e, por consequência, tiveram conhecimento do processo e puderam apresentar defesa, como foram notificadas da decisão final, que transitou em julgado, ficando, portanto, afastada a hipótese de não reconhecimento constante do nº2 do artº 34º do Regulamento.

E, relativamente à hipótese do n.º 1 do artigo 34.º, para obstar à declaração de executoriedade, "tem de ser manifesta a contrariedade com a ordem pública local, ideia que se foi buscar ao artigo 16º da Convenção de Roma relativa à lei aplicável às obrigações contratuais e se repetiu no artigo 26º do Regulamento nº 1346 (Regulamento relativo aos Processos de Insolvência). A ordem pública pode ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão) ou de ordem pública material (lesão grave de regras de concorrência)." E, doutro passo, "a violação dos direitos de defesa é a preocupação do nº 2, embora ressalvando a hipótese do réu revel, não ter recorrido, tendo tido a possibilidade de o fazer, deixou perder o prazo do recurso, desistiu dele...". - António da Costa Neves Ribeiro, "Processo Civil da União Europeia", Coimbra, 2002, pags. 107 e 108, citado no Acórdão do STJ de 22/09/2005, in www.dgsi.pt.
Como quer que seja e seguindo de perto o já mencionado Acórdão da Relação do Porto de 30/09/2004, é manifesto que, «em bom rigor, a noção de ordem pública é muito ampla, sendo definida por Mota Pinto, (Teoria Geral Dir. Civil, 4ª ed., reimpressão, 1980, 434) como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”. Galvão Telles (Dir. das Obrigações, 3ª ed., 34) diz que a ordem pública é representada pelos superiores interesses da comunidade. Já Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, 334,335) diz que, pela dificuldade em definir tal noção, se faz apelo aos interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema. Não se pode, porém, esquecer que - como muito bem ensinava Vaz Serra, Bol. M. J., 74, Separata, pág. 127--, é sempre muito difícil definir o conceito de “ordem pública”, uma vez que o mesmo varia com os tempos. Exemplificativamente são as leis que têm por fim garantir a segurança do comércio jurídico e proteger terceiros, bem como as regras fundamentais da organização económica».
Não ocorre, in casu, qualquer violação dos princípios da ordem pública portuguesa - nos aspectos acima considerados – e, designadamente, no que concerne à violação do princípio do contraditório, que a recorrente não consegue provar face ao que consta dos documentos certificados pelo Tribunal que proferiu a decisão cuja executoriedade se peticiona, sendo que à recorrente não foi ilegitimamente coarctado o direito do contraditório ou da defesa, como vimos.

Em suma, não vemos razão para não confirmar a decisão recorrida, não só porque a declaração de exequibilidade à sentença do Tribunal de Prahova, Roménia, não é contrária à ordem pública do Estado-Membro (Portugal) requerido, como não se verifica o fundamento da não comunicação ou notificação ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, bem como, não se verifica qualquer dos demais motivos especificados nos arts. 34º e 35º para a recusa ou revogação de tal executoriedade.
Sumário:
1 – Nos termos do disposto no Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, os motivos de recusa da declaração de executoriedade de decisão proferida num Estado-Membro apenas podem abranger um dos motivos especificados nos artºs 34º e 35º do Regulamento.
2 - Ao juiz de 1ª instância não cabe a sindicância destes motivos.
3 – As decisões estrangeiras não podem ser objeto de revisão de mérito.
4 – Estando assente na sentença que se executa que a ré foi ouvida, contestou e apresentou prova, bem como certificada a notificação da decisão e o seu trânsito em julgado, não pode concluir-se pela ausência do contraditório e revelia do réu, de forma a revogar a declaração de executoriedade nos termos do artigo 34.º n.ºs 1 e 2 daquele Regulamento.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
***
Guimarães, 29 de outubro de 2013
Ana Cristina Duarte
Fernando Freitas
Purificação Carvalho