Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1163/13.0TBPTL-G.G1
Relator: RAQUEL BAPTISTA TAVARES
Descritores: DIVÓRCIO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
COMPENSAÇÃO PELO USO A FAVOR DO OUTRO CÔNJUGE
ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Tendo sido acordado no âmbito de acção de divórcio, onde foi proferida sentença já transitada em julgado, que o cônjuge marido ficaria a residir na casa de morada de família até à partilha dos bens, sem ter sido fixada a contrapartida de qualquer compensação/renda, pode a mulher requerer posteriormente ao tribunal que seja fixada em seu benefício uma quantia mensal por aquela ocupação se, entretanto, se alteraram em seu desfavor, as circunstâncias que estiveram na base daquele acordo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

V. A., divorciada, residente no Caminho de …, Ponte de Lima, veio intentar contra P. C., residente no Lugar …, Ponte de Lima, por apenso à acção de divórcio que correu termos com o nº 1163/13.0TBPTL, os presentes autos que denominou de “Incidente de fixação de compensação nos termos do artigo 1793º do Código Civil”, pedindo a condenação do Requerido no pagamento de uma compensação à Requerente do valor mensal de pelo menos €350,00 pelo uso e fruição plenos da casa de morada de família, bem comum do ex-casal até à partilha.
Alega em síntese que por sentença proferida nos autos principais, de que estes são apenso, foi decretado o divórcio entre Requerente e Requerido e que nos termos da sentença a casa de morada de família do ex-casal foi atribuída ao Requerido, até à partilha dos bens comuns do casal.
Alega ainda que aufere o salário mínimo nacional e tem a seu cargo dos filhos menores, que se viu obrigada a arrendar uma casa para si e para os seus filhos, pagando uma renda de €250,00 mensais e que o Requerido usufrui da casa sem que tenha sido fixada qualquer compensação à Requerente em virtude dessa utilização.
O Requerido pugnou pelo indeferimento da pretensão da Requerente defendendo que o disposto no artigo 1793º do Código Civil invocado pela Requerente não tem aplicação à situação concreta pois não parece ser pretensão daquela tomar de arrendamento a casa em questão.
Foi proferida decisão que decidindo pela improcedência da acção absolveu o Requerido do pedido.
Inconformada com a decisão a requerente interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
“(…)
3) Salvo melhor opinião, a decisão recorrida carece de fundamento legal.
4) Com efeito, com a publicação da Lei n.º 61/2008, de 31/1, a qual, entre outras
alterações, veio aditar ao artigo 1793° do Cód. Civil o n.º 3, a diversidade de opiniões quanto à possibilidade de alteração do acordo sobre o destino da casa de morada de família deixou fazer sentido e, por isso, de existir.
5) Nesse sentido, refere o seguinte o ac. STJ nº 4162/09.3TBSTB.E1.S1, de 7/06/2011 : “Várias decisões judiciais se pronunciaram no sentido da inalterabilidade do acordo homologado por sentença judicial (…). Esta questão foi resolvida na recente alteração do Código Civil introduzida pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro que aditou ao artigo 1793° do Código Civil com a epígrafe "Casa de Morada de Família" o n° 3 com a seguinte redacção: "o regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária”.
6) Ou seja, pelo menos, desde a publicação da referida lei que o acordo sobre o
destino da casa de morada de família pode ser alterado e, consequentemente, pode e deve ser tramitada como incidente a alteração que venha a ser requerida.
7) No mesmo sentido, refere o Ac. TRP nº 201302252891/11.0T8VNG.P1: “A atribuição da casa de morada de família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária, pelo que as suas resoluções podem ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial não acautelarem, devidamente, os interesses de um dos ex-cônjuges”.
8) Transcrevendo ainda este acórdão um excerto do manual do Prof. Salter Cid defendendo a possibilidade de alteração do antes acordado pelos cônjuges ou decidido judicialmente desde que tenha ocorrido alteração substancial e anormal das circunstâncias tidas em consideração para o acordo inicial que se pretende alterar.
9) Ora, no caso vertente, foi exactamente isso que sucedeu, conforme resulta inequivocamente do requerimento do ora recorrente, no qual, em síntese, alega e demonstra a alteração substancial e anormal das circunstâncias que foram tidas em consideração no acordo sobre a atribuição da casa de morada de família que foi homologado por sentença.
10) Com esta alteração superveniente das circunstâncias deixaram de estar acautelados os interesses do ex-cônjuge mulher, ora recorrente, e dos filhos.
11) Fica, pois, evidente que a decisão carece de fundamento legal quanto à questão da tramitação da requerida alteração como incidente e quanto à possibilidade de
alteração do acordo sobre a atribuição da casa de morada de família.
12) Por conseguinte, pode e deve a requerida alteração ser classificada e tramitada como incidente e é o acordo inicial, não obstante o divórcio ter transitado em julgado, passível de ser alterado desde que ocorra uma alteração substancial, superveniente, das circunstâncias que estiveram na base do mesmo.
13) Seguiremos neste particular o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 5 de Fevereiro de 2007, disponível em ww.dgsi.pt, e cujo sumário se transcreve: “Tendo sido celebrado na pendência de divórcio acordo nos termos do qual o cônjuge marido ficaria a residir na casa de morada de família – bem comum do casal – até à partilha dos bens – sem a contrapartida de qualquer pagamento, pode a mulher requerer que o tribunal fixe em seu benefício uma quantia mensal por aquela ocupação se, entretanto, se alteraram em seu desfavor, as circunstâncias que estiveram na base da gratuitidade daquela consentida ocupação.”
14) As partes deste processo haviam acordado, para que fosse decretado o divórcio por mútuo consentimento, que a casa de morada de família, bem comum de ambos os cônjuges, fosse atribuída ao cônjuge marido e até à realização da partilha.
15) Este acordo fora homologado por sentença que decretou o divórcio.
16) A questão essencial a decidir é averiguar se este acordo, mesmo homologado por sentença, não mais poderá ser alterado, em incidente de jurisdição voluntária, quanto ao destino dado à casa de morada de família.
17) Quotidianamente os ex casais portugueses e os tribunais são confrontados com este tipo de situação. Assim, vemos que desde alterações do uso da casa de morada de família a quem inicialmente fora atribuída, ora por abandono intencional e querido ou por se retirar para outro local, ora por aquisição de outra morada, de modificação e alteração da guarda e cuidados dos filhos, da mãe para o pai e deste para aquela e que justificaram e pesaram mesmo a entrega da casa de morada de família, ora por alteração imprevisível dos rendimentos até então auferidos ou mesmo ainda por dificuldades económicas não previstas anteriormente, vários casos reais têm sido e são ainda colocados à apreciação jurisdicional.
18) Diremos que, o legislador não pode ter ficado indiferente e insensível a estas
situações da vida real e manter situações desajustadas da realidade, com prejuízo das partes envolvidas e sem reflectirem já os interesses em causa e apenas com base num formalismo legal, pensamos que será algo que não terá sido pensado nem querido por este - artigo 9º do CC.
19) O direito e a lei não pode ser vista nem analisada numa visão estática, imutável e formal e antes como forma a dar resposta aos problemas comuns e normais que a sociedade enfrenta.
20) O tribunal não pode ser alheio aos problemas que o rodeiam e a lei tem que
servir como instrumento de justiça, mais ainda quando possui mecanismos próprios e típicos que prevêem mesmo para o direito obrigacional a alteração posterior dos contratos em função de circunstâncias supervenientes anormais - artigo 437º do CC.
21) Dispõe o artigo 1793º, n.º1 do C. Civil que, “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada cônjuge e o interesse dos filhos do casal”.
22) Pereira Coelho, RLJ, ano 122, pág.137, afirma que “a lei quererá que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro”.
23) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol. IV, 2ª ed., págs. 570 e 571, afirma que o primeiro factor atendível, dentro da solução flexível adoptada pela lei, são as necessidades de cada um dos cônjuges, sendo o segundo factor o do interesse dos filhos do casal (proximidade do estabelecimento do ensino que frequentam, do local de trabalho, etc.), isto porque, no dizer dos mesmos autores, “Não se trata efectivamente de um resultado do ajuste de contas desencadeado pela crise do divórcio, que a lei queira resolver ainda com base na culpa do infractor, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar”.
24) E Leite de Campos, “Lições de Direito da Família e das Sucessões”, págs. 305, comentando o citado artigo 1793º, escreve que “A casa de morada de família é, para uma grande parte das famílias portuguesas, o único bem com algum significado económico de que dispõem. Portanto, a sua atribuição depois do divórcio tem uma particular importância. É, normalmente, objecto de acesa disputa entre os cônjuges, antes do divórcio e depois deste”.
25) Considerando a função e finalidade primordial da norma, o tribunal deve considerar aceite a admissibilidade da alteração do acordo estabelecido, dentro dos condicionalismos dos arts. 1793º do CC e 988º do CPC, por entender ser o que mais se adequa ao fim da norma. Tanto mais que, reapreciando o caso concreto dos autos, o acordo que foi realizado vigora apenas e só até à realização da partilha.
26) Ora, este entendimento tem como suporte, para além do já anteriormente afirmado, mais os seguintes argumentos:
27) Em primeiro lugar, todos aceitam hoje que se está perante um incidente para
fixação de arrendamento da casa de morada de família, que se processa no domínio da jurisdição voluntária, cujas resoluções podem ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração - artigo 988º do CPC -
28) Em segundo lugar, o artigo 1793º do CC prevê a possibilidade de ser dado de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja própria ou comum, desde que se considere as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
29) Em terceiro lugar, mesmo fixando o artigo 1775º n.º 2 e 3 do CC a obrigatoriedade de os cônjuges acordarem previamente o destino da casa de morada de família e a sua utilização no período da pendência do processo, nada impede que tal acordo seja alterado, em função das circunstâncias supervenientes, tanto pela parte como pelo tribunal.
30) É que este mesmo normativo determina de igual forma quanto à prestação de
alimentos e exercício de poder paternal e não há vozes que impeçam a sua alteração - artigo 2012º do CC.
31) Em quarto lugar, este entendimento que concede a possibilidade de alteração do acordo, verificadas que estejam certas circunstâncias relativas aos cônjuges e filhos, dá melhor resposta ao fim e função essencial do artigo 1793º do CC, disposição inovadora que pretendeu proteger a habitação da família, mantendo desta forma o equilíbrio de interesses subjacentes - Pires de Lima e A. Varela, CC Anotado, vol. IV, pág. 570.
32) Em quinto lugar, podemos mesmo entender, em certos casos da vida moderna, como veiculando este normativo uma prestação alimentar em espécie, motivada por dificuldades económicas de qualquer um dos cônjuges e de a casa de morada de família, quando bem comum, produzir o seu efeito útil normal, qual seja de proporcionar um rendimento a quem dela está privado e dele necessita.
33) Por fim, o acordo efectuado em sede de divórcio não pode significar a renúncia a qualquer direito, concretamente da possibilidade de arrendamento facilitada pelo artigo 1793º do CC.
34) Em suma, a alteração será possível desde que tenha ocorrido alteração substancial e anormal das circunstâncias tidas em consideração aquando da celebração e homologação do acordo - Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, págs. 314/316 -
35) E este mesmo autor apresenta um caso prático da vida real em que considera que seria imoral manter um acordo sobre a casa de morada de família em mera obediência a um pretenso “caso julgado”, ou no caso dos autos preclusão do pedido.
36) A atribuição da casa de morada de família a um cônjuge, para seu uso exclusivo, em acordo prévio ao divórcio por mútuo consentimento, não pode impedir,
verificadas as condições do artigo 1793º do CC, quais sejam as necessidades dos cônjuges ou os interesses dos filhos, que seja aquele alterado.
37) E esta alteração pode consistir em se manter a atribuição da casa de morada de família ao cônjuge inicial, pagando este uma renda ao outro cônjuge, sobre a metade que àquela pertence, caso, repete-se, haja alteração das circunstâncias em que aquele assentou.
38) Neste sentido veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 8 de Outubro de 2015.
39) Face ao supra exposto, deve assim ser dado provimento ao presente recurso,
alterando-se, em consequência, a sentença recorrida por violação, nomeadamente, dos artigos 1793º do Código Civil e 988º do Código de Processo Civil.”
O Requerido contra alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão proferida pela 1ª instância.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, é a de saber se estamos no âmbito de um processo de jurisdição voluntária que permite, atenta a sua natureza, que o regime de atribuição do direito à habitação da casa de morada de família determinado por acordo possa vir a ser alterado até à partilha, após trânsito em julgado da sentença proferida.
***
III FUNDAMENTAÇÃO

As incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório.
Relembra-se aqui o teor do despacho recorrido:

“V. A. intentou contra P. C. a presente acção, classificando-a como Incidente de fixação de compensação nos termos do art. 1793º do CC. Para tanto alega que por sentença proferida nos autos de principais de que este são apenso, foi decretado o divórcio entre requerente e requerido. Mais alega que nos termos da referido sentença, a casa de morada de família do ex-casal foi atribuída ao requerido, P. C., até à partilha dos bens comuns do casal.
Acontece que a requerente aufere o salário mínimo nacional e tem a seu cargo dos filhos menores. A requerente viu-se obrigada a arrendar uma casa para si e para os seus filhos, pagando uma renda de € 250,00 mensais. No entanto, o requerido usufrui da casa sem que tenha sido fixada qualquer compensação à ora requerente em virtude dessa utilização.
Com estes fundamentos, pede a condenação do requerido no pagamento de uma compensação à requerente do valor mensal de pelo menos € 350,00 pelo uso e fruição plenos da casa de morada de família, bem comum do ex-casal até à partilha.
Notificado, o requerido pugnou pelo indeferimento da pretensão da acção, defendendo que o disposto no art. 1793º do CC invocado pela requerente não tem aplicação à situação concreta pois não parece ser pretensão da requerente tomar de arrendamento a casa em questão.
Cumpre decidir:
Resulta, de forma clara, do pedido formulado pela requerente que nesta acção não está em causa o processo de jurisdição voluntária previsto no art. 990º do CPC, pois a requerente não pretende a atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793º do CC.
Tendo sido requerido o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, realizou-se a tentativa de conciliação prevista no art. 931º do CPC, tendo as partes acordado na convolação do divórcio para mútuo consentimento. Posto isto, apresentaram os acordos mencionados no art.994º do CPC, nomeadamente quanto ao destino da casa de morada de família, tendo acordado que esta ficaria atribuída ao requerido até à partilha.
No momento oportuno foi entendido pelas partes não fixar qualquer compensação pelo uso da habitação, como parece pretender agora a requerente.
No entanto, tendo a referida sentença transitado em julgado, estando finda a referida acção de divórcio, o pedido de compensação agora efectuado é extemporâneo e não tem fundamento legal.
Por tudo o que vai exposto, decido pela improcedência da acção, absolvendo o requerido do pedido.
Custas pela requerente.”
Vejamos então.
A questão a decidir consiste em saber se estamos de facto no âmbito de um processo de jurisdição voluntária que permite, atenta a sua natureza, que o regime de atribuição do direito à habitação da casa de morada de família determinado por acordo possa vir a ser alterado até à partilha, após trânsito em julgado da sentença proferida.
Na decisão recorrida entendeu-se que não.
Foi entendimento do tribunal de 1ª instância que em face do pedido formulado pela Requerente não está aqui em causa o processo de jurisdição voluntária previsto no artigo 990º do Código de Processo Civil uma vez que a Requerente não pretende a atribuição da casa de morada de família nos termos do artigo 1793º do Código de Processo Civil e que tendo a sentença proferida na acção de divórcio transitado em julgado, estando tal acção finda, o pedido de compensação agora efectuado é extemporâneo e não tem fundamento legal.
Conforme consta da decisão proferida tendo sido requerido o divórcio sem consentimento do outro cônjuge, realizou-se, no âmbito da acção de divórcio, a tentativa de conciliação prevista no artigo 931º do Código de Processo Civil, tendo as partes acordado na convolação do divórcio para mútuo consentimento e apresentado os acordos mencionados no artigo 994º do Código de Processo Civil, nomeadamente e no que aqui interessa, quanto ao destino da casa de morada de família, tendo acordado que esta ficaria atribuída ao Requerido até à partilha, não tendo então acordado fixar qualquer compensação à Requerente pelo uso da habitação.
Temos pois por assente que a Requerente e o Requerido no âmbito da acção de divórcio acordaram que a casa de morada de família ficaria atribuída ao Requerido até à partilha e não fixaram então qualquer compensação/renda para a Requerente pelo uso da habitação por parte do Requerido.
O que a Requerente pretende nos presentes autos, fazendo apelo ao preceituado no artigo 1793º do Código Civil, é que não obstante aquele acordo quanto ao destino da casa de morada de família e o trânsito em julgado da sentença proferida na acção de divórcio, seja o acordo alterado de modo a ser agora fixada uma compensação à Requerente.
A questão essencial a colocar e a que urge responder é então se o acordo quanto ao destino da casa de morada de família, já homologado por sentença transitada em julgado, não mais poderá ser alterado, em incidente de jurisdição voluntária ou se, pelo contrário, o poderá ser.
A resposta a esta questão contida na decisão recorrida é de que o não poderá ser pois que na mesma se decidiu que tendo a sentença transitado em julgado e estando finda a acção de divórcio o pedido de compensação era extemporâneo e sem fundamento legal.
Não é esse o entendimento que perfilhamos; pelo contrário, pensamos que a resposta à questão formulada tem de ser no sentido da admissibilidade da superveniente fixação de uma compensação ou renda pela utilização acordada originalmente sem qualquer retribuição, sendo esta em nosso entender a posição que melhor se coaduna com o preceituado no nº 3 do artigo 1793º do Código Civil.
Dispõe o artigo 1793º, nº 1 do Código Civil que “pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada cônjuge e o interesse dos filhos do casal”.
O legislador pretendeu sem dúvida que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro, mas também o interesse dos filhos do casal (v. a este propósito Pereira Coelho, RLJ, ano 122, página137).
O nº 2 do referido preceito dispõe ainda que o arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
Resulta destes normativos que se a casa pertencer, na totalidade, a um dos cônjuges, a renda fixada ser-lhe-á paga na totalidade, sendo pertença de ambos, pagará a sua quota-parte nessa renda, ou seja, metade desse valor.
Estamos perante direito a declarar no âmbito de processo de jurisdição voluntária conforme decorre do preceituado no artigo 990º do Código de Processo Civil, de acordo com as regras do artigo 986º e seguintes do mesmo Código, designadamente tendo sempre presente que nas providências a tomar o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna (cf. o seu artigo 987º).
De facto prevê o referido artigo 990º do Código de Processo Civil que aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família nos termos do disposto no artigo 1793º do Código Civil deduz o seu pedido indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito.
E o artigo 1793º nº 3 do Código Civil veio admitir expressamente que o regime fixado seja o resultante da homologação do acordo dos cônjuges seja o resultante de decisão do tribunal, possa ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
E tal alteração terá de ser entendida não só para as hipóteses em que se pretenda a atribuição da casa de morada de família mas também quando a alteração tem a ver com a fixação superveniente de uma compensação ou renda pela utilização acordada originalmente sem qualquer retribuição.
Aliás, já assim pensava grande parte da doutrina e da jurisprudência antes da redacção introduzida pela Lei nº 61/2008 de 31 de Outubro (vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/02/2007, disponível em www.dgsi.pt, com extensa argumentação nesse sentido e a que a Recorrente faz também referência; também no mesmo sentido se pode ler no Acórdão daquela Relação de 10/04/2007, também disponível em www.dgsi.pt, que “tendo em consideração a natureza dos processos de jurisdição voluntária, o regime de atribuição do direito à habitação da casa de morada de família determinado por acordo pode ser alterado até à partilha com fundamento em circunstâncias ocorridas posteriormente ou em circunstâncias anteriores que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso”.
Mais recentemente, decidiu-se nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 25/02/2013 que “a atribuição da casa de morada da família é um processo (ou incidente) de jurisdição voluntária, pelo que as suas resoluções podem alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão judicial não acautelarem, devidamente, os interesses de um dos ex-cônjuges” e de 22/05/2017 que “pode revelar-se atendível o pedido unilateral de modificação do acordo sobre o destino da casa de morada de família homologado pelo tribunal, com fundamento em circunstâncias supervenientes, face ao disposto no n.º 3 do artigo 1793.º (…)”. Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 08/10/2015, ainda que a propósito da questão da competência, se decidiu que “em face das citadas disposições legais, não oferece, assim, dúvida que, sendo admissível a alteração do regime, quanto a tal questão, anteriormente fixado, a competência para daquela conhecer, tendo havido acção de divórcio, pertence ao tribunal onde essa acção haja corrido” (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Temos pois de concluir que tal como preceituado no nº 3 do artigo 1793º do Código Civil o regime fixado pode ser alterado nos termos gerais de jurisdição voluntária.
Ora, a atribuição da casa de morada da família é um processo de jurisdição voluntária e como tal as suas resoluções podem alteradas com base desde logo em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, o que ocorre sempre que o acordo realizado ou a decisão proferida não acautelem devidamente os interesses de um dos ex-cônjuges, devendo o tribunal reponderar a situação dos mesmos, caso se alterem os pressupostos de facto (emprego, habitação, situação dos filhos, etc) que fundamentaram a decisão ou estiveram na base do acordo.
E conforme já referido é actualmente direito vigente a possibilidade de se alterar o regime (cfr. artigo 988º do Código de Processo Civil) e sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adoptando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna (artigo 987º do Código de Processo Civil).
E tal poderá passar não só pela alteração quanto à própria atribuição da casa de morada de família mas também pela fixação de uma renda/compensação devida pelo uso que o outro ex-cônjuge faz da habitação.
Conforme decidido no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/02/2007 “a atribuição da casa de morada de família a um cônjuge, para seu uso exclusivo, em acordo prévio ao divórcio por mútuo consentimento, não pode impedir, verificadas as condições do art. 1793º do CC, quais sejam as necessidades dos cônjuges ou os interesses dos filhos, que seja aquele alterado. E esta alteração pode consistir em se manter a atribuição da casa de morada de família ao cônjuge inicial, pagando este uma renda ao outro cônjuge, sobre a metade que àquele pertence, caso, repete-se, haja alteração das circunstâncias em que aquele assentou”.
Por fim, diremos apenas que não é este o momento para apreciar atenta a fase processual, a questão substantiva e de fundo, se terá ou não a Recorrente o direito que pretende, se se verifica alteração das circunstâncias ou a questão suscitada pelo Recorrido relativamente à propriedade da casa de morada de família, posto que a decisão recorrida não incidiu sobre as mesmas e que no presente recurso está apenas em causa apreciar e decidir da admissibilidade ou não da superveniente fixação de uma compensação ou renda pela utilização acordada originalmente sem qualquer retribuição.
E ao contrário da posição defendida na decisão recorrida entendemos que tal é admissível e por isso a pretensão da recorrente não pode ser considerada extemporânea.
Impõe-se, pois, julgar procedente o recurso.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil):

I – Tendo sido acordado no âmbito de acção de divórcio, onde foi proferida sentença já transitada em julgado, que o cônjuge marido ficaria a residir na casa de morada de família até à partilha dos bens, sem ter sido fixada a contrapartida de qualquer compensação/renda, pode a mulher requerer posteriormente ao tribunal que seja fixada em seu benefício uma quantia mensal por aquela ocupação se, entretanto, se alteraram em seu desfavor, as circunstâncias que estiveram na base daquele acordo.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por despacho que determine o prosseguimento do incidente.
Custas pelo Recorrido.

Guimarães, 28 de Setembro de 2017
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária


(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Fernandes Almeida)
(Margarida Sousa)