Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
388/14.6T8BCL-A.G1
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS A MENORES
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR
CONSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I-A interpretação preconizada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 19.03.2015 no sentido de que a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário está conforme aos direitos sociais em causa consagrados na Constituição, por não ser afectado o conteúdo essencial dos mesmos em confronto com o poder de conformação do legislador nestas matérias.
II-A alteração da prestação de alimentos deve ser requerida através da propositura da acção respectiva e não no âmbito do incidente de incumprimento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I--RELATÓRIO
J.., na qualidade de legal representante do seu filho menor, D.., intentou incidente de incumprimento de prestação alimentícia contra a progenitora do menor, C.., alegando que a mesma nunca procedeu ao pagamento da prestação de alimentos estabelecida a favor do filho.
O tribunal decidiu o incidente, fixando em 150 Euros mensais a prestação a efectuar pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a favor do menor D.., a ser paga à sua tia paterna, F...
Foi requerida a manutenção da substituição do devedor pelo Fundo de Garantia de Alimentos.
O tribunal solicitou a elaboração do inquérito a que aludem os artigos 3º, nº 3 da Lei nº 75/98, de 19 de Novembro e 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de Maio e face aos elementos recolhidos foi determinada a substituição do devedor pelo Fundo de Garantia de Alimentos no que concerne ao pagamento da pensão de alimentos.
O Ministério Público, com vista nos autos, promoveu a manutenção da prestação já fixada a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos e a fixação de uma adjuvante cláusula actualizadora anual daquela obrigação pecuniária alimentícia [segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E.].
O tribunal concluiu, após ter analisado a prova, que se mantinham os pressupostos subjacentes à atribuição da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores e decidiu manter a prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, indeferindo-se no mais a promoção antecedente uma vez que está esgotada nessa parte o poder jurisdicional previsto no art. 619º do Código de Processo Civil.

Inconformado com esta decisão de indeferimento, o Ministério Público interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões :
1--No caso que nos ocupa, quem necessita de alimentos «está no fim da linha», são os «párias» que a egoística decadência de valores e a dura dinâmica económico-social vão criando, são os mais carenciados dos carenciados, são os indefesos que são crianças;2--A intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores depende da existência de uma obrigação de alimentos judicialmente decretada, que não é satisfeita, nem se mostra possível satisfazê-la pela forma prevista no artigo 189.° do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e do facto do alimentado não ter rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiar nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre;
3--A fixação daquela prestação alimentícia é feita atendendo às actuais condições do menor e do seu agregado familiar, podendo ser diferente da anteriormente fixada;
4--A criação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, deveu-se ao elevado número de situações de incumprimento das prestações de alimentos devidos a menores;
5--O referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, antes reveste natureza subsidiária, visto que é seu pressuposto legitimador a não realização coactiva da prestação alimentícia já fixada, através das formas previstas no artigo 189.° da Organização Tutelar de Menores;
6—Os presentes autos e os incidentes deles dependentes – como o presente – têm a natureza de proc. de jurisdição voluntária (tal como decorre por força do disposto no Artº150º da Organização Tutelar de Menores natureza esta que há que se entender ser extensível a todos os incidentes umbilicalmente dependentes da causa principal onde se hajam fixado os alimentos ao devedor originário);
7--Ademais estes processos, onde se Regulam as Responsabilidades Parentais e onde se processam os incidentes de incumprimento da prestação alimentícia e onde (por impossibilidade de se obter a cobrança desta através do mecanismo de incumprimento próprio p. no Artº. 189º da O.T.M.) se processa, como no presente, o incidente, legal e logicamente subsequente, p. no Artº. 1º da Lei 75/98 de 19/XII e no Artº. 3º nº1, do D.L.164/99 de 13 de Maio vigora – por tudo isto ser como dito jurisdição voluntária – o princípio da Equidade;
8--Chama-se Juízo de Equidade àquele em que o juiz resolve o caso que lhe é posto de acordo com um critério de justiça material, e, embora sem recurso linear a uma norma jurídica pré-estabelecida, dando, no entanto, uma solução que, no momento e segundo as circunstancias concretas averiguadas se afigura a mais justa…e, não sendo Fonte de Direito é critério de Correcção do Direito.
9--De tal Equidade como princípio conformador geral dos processos de jurisdição voluntária, provém, como precipitado natural, o princípio da modificabilidade das decisões por parte do Tribunal que as haja proferido – mesmo das decisões finais – vigorando aqui o disposto no artº 988.º do Cod.Procº Civil: (Valor das resoluções): «1 — Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem -se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso. 2 —Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça» ;
10--O que, sintomaticamente e como sinal duma reveladora unidade do sistema e da ordem jurídica, tudo entronca no artº 619º do Codº Procº Civil em que se estribou genericamente o indeferimento judicial ora em crise, o qual não atentou, porém, no estabelecido no respectivo nº2: “Artigo 619.º - Valor da sentença transitada em julgado - 1 —Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. 2 — Mas se o réu tiver sido condenado a prestar alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou à sua duração, pode a sentença ser alterada desde que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação.”
11--Fosse pelo disposto no nº2 do artº 619º do Codº Procº Civil fosse pelo disposto no artº988º do mesmo Código, o Tribunal recorrido podia (e devia) ter alterado a decisão inicial que condenou o Fundo de Garantia, proferida a 24/04/2009 (cfr.fls. 83-87 destes autos) e, tê-la alterado «…no que tange ao critério da actualização anual a fim de passar-se a adoptar o critério do aumento anual da prestação do F.G.A.D.M. segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E., corrigindo também a anterior ausência de critério actualizador conforme se vê da sentença de fls.11-12 (datada de 18/10/2004) que condenou inicialmente o devedor originário à obrigação alimentícia na qual ficou sub-rogado aquele mesmo Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores»;
12--É que essa decisão judicial proferida inicialmente no presente incidente de incumprimento é já datada de 24/04/2009 (cfr.fls. 83-87 destes autos) e, nessa altura, também a prestação alimentícia do devedor originário não se encontrava aumentada por virtude da inexistência de qualquer critério actualizador imprudentemente esquecido, como se disse, na Sentença de fls. fls. 11-12 destes autos que condenou tal obrigado originário e que, por sua vez, é datada de18/10/2004.
13--Ora, como dito supra, o Fundo de Garantia é efectivamente um garante e não um substituto das prestações em falta: na verdade atribuiu-se ao Estado, nos casos em que os alimentos judicialmente fixados ao filho menor não podem ser cobrados nos termos dos meios pré-executivos previstos no art. 189.° da O.T.M. a obrigação de garantir o pagamento até ao efectivo cumprimento da obrigação pelo progenitor devedor, ficando o mesmo Estado sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas as prestações, com vista a ser reembolsado do que pagou (ex vi artigo 5.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio).
14--Se isto assim é, então não se percebe porque é que a sua obrigação garantística não fica sempre sujeita a uma cláusula actualizadora da prestação alimentar garantida, independentemente de tal haver ou não sido fixado para o devedor originário na Sentença que condenára este último em tais alimentos;
15--Como se sabe, os factos notórios não carecem de ser alegados: Artigo 412.º do Codº Procº Civil: «Factos que não carecem de alegação ou de prova :1 — Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral. 2 — Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.»
16--No caso, são manifestos e notórios os factos supervenientes que impunham, independentemente de promoção ou requerimento alegatório, que o Tribunal alterasse a decisão condenatória inicial introduzindo-lhe a necessária cláusula actualizadora anual: seja o aumento anual (embora actualmente numa taxa inflacionária baixa) do custo de vida, seja o estado depauperado da economia nacional, sejam os números dramáticos do desemprego e das famílias acossadas pela falta dos rendimentos do trabalho, sejam as necessidades crescentes dos menores nas suas várias fases etárias, sejam as estatísticas europeias que dão as crianças (em particular as da Grécia, Portugal e Irlanda) como o sector da população mais duramente atingido pela pobreza;
17--Assim, atento o tempo decorrido avulta por si própria, e por elementar prudência ponderativa, a necessidade de estabelecer um mecanismo realmente equitativo que acautele uma adequada actualização da prestação alimentícia a que está obrigado o Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, actualização essa que seja, por um lado, compatível com o referido panorama de pesada crise sócio-económica reinante e, por outra banda, esteja à altura não só do actual nível da inflação e do custo de vida mas também consonante com as reais e sempre crescentes necessidades com a alimentação, vestuário, cuidados de saúde e despesas de educação que o(s) menor(es) aqui abrangido(s) demanda(m) nas fases sucessivas da infância, adolescência e juventude até à maioridade, necessidades essas que são sempre superiores àquelas dos adultos e se não compadecem com estritos calculismos e aritméticas economicistas;
18--Tal alteração aqui pugnada da decisão judicial proferida inicialmente nestes autos, impõe-se, naturalmente, como resultado de um mandatório Juízo de Equidade que, como se disse supra, é aquele em que o Juiz resolve o caso que lhe é posto de acordo com um critério de justiça material: e não lavando as mãos num errado entendimento do que é o caso julgado em matéria de alimentos a menores;
19--Pelo exposto, e porque também mais conforme à Equidade, é entendimento do Ministério Público nesta Instância Central de Família e Menores de Barcelos que as prestações a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores deverão sempre ser acompanhadas da imposição de uma cláusula actualizadora anual [segundo as taxas de inflação (preços ao consumidor) publicadas pelo I.N.E.], devendo ser rejeitada interpretação diversa, como aquela acolhida na Sentença ora em crise, a qual, violou, directamente, o disposto nos artigos 619º n.º 2, 987º e 988° do Código de Processo Civil, 150º da Organização Tutelar de Menores, 1.° da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, 3.° e 5.° do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, 2004.° do Código Civil, e 24°, n.º 1, e 69.°, n.os 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. contra-alegou no sentido de que vem defendendo a solução da decisão impugnada e da Orientação da Procuradoria Distrital de Lisboa, resultante do 2º Encontro de Magistrados do MP da Jurisdição de Família e Menores, realizado a 27 de Novembro de 2008, do seguinte teor: “O valor da prestação a cargo do FGADM não pode exceder o valor da prestação do devedor originário de alimentos, uma vez que, por força do disposto no nº 3 do artigo 6º da Lei nº 75/98, existindo sub-rogação legal, com vista à garantia do respectivo reembolso, o seu regime jurídico não contempla que uma parte d efectivamente pago não seja reembolsável.”
A M.ª Juíza manteve a sua decisão nos seguintes termos : “Mantendo na íntegra o já decidido e o sentido do recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência decidido no âmbito do Proc. nº 252/08.8TBSRP-B.A.E1.S1-A, da 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça no passado dia 19/03/2015, ainda não transitado em julgado (que considerou não ser possível a fixação da pensão de alimentos a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos em valor superior ao fixado ao devedor obrigado a alimentos), subam os autos ao Tribunal Superior que fará a habitual Justiça.”
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II--FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS
1--O menor D.. nasceu a 31.01.2001 e é filho do requerente J.. e da requerida C...
2--Por sentença proferida em 18.10.2004 nos presentes autos, já transitada em julgado, foi homologado o acordo estabelecido entre o ora requerente e a ora requerida, por força do qual esta última se obrigou a contribuir para o sustento do seu filho com o quantitativo mensal de 75 Euros.
3--O menor reside em casa dos avós paternos, a qual é propriedade destes últimos, onde residem também uma tia paterna e o marido, sendo a referida tia quem tem vindo a acompanhar mais de perto o seu desenvolvimento.
4--O avô paterno do menor aufere mensalmente 700 Euros, a tia 400 Euros e o marido desta última 500 Euros.
5--O abono de família respeitante ao menor ascende a 100 Euros mensais.
6--O requerente reside com uma companheira, sendo que apenas vê o menor esporadicamente e não contribui para o pagamento das despesas do mesmo.
7--A requerida encontra-se desempregada, auferindo mensalmente 189,84 Euros a título de subsídio social de reinserção e tem mais dois filhos menores. O seu marido encontra-se reformado por invalidez, auferindo a tal título uma pensão mensal no valor de 230 Euros, a que acrescem 156 Euros mensais por actividades desempenhadas na área têxtil. A tais rendimentos somam-se 212,65 Euros a título de abonos de família.
8--Vive em casa arrendada, pela qual paga mensalmente, a título de renda, 125Euros.
9--O menor D.. frequenta a escola, não sendo titular de quaisquer rendimentos.
10--A requerida não vem cumprindo com a sua obrigação de alimentos.
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III—DIREITO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente nos termos do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do C.P.Civil, pelo que as questões a resolver são as seguintes :
1—Saber se a decisão que mantém e renova a prestação de alimentos, a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, em substituição do devedor originário, pode ser superior àquela a que o mesmo ficou judicialmente vinculado.
2—E se a decisão que mantém a intervenção do Fundo com vista ao pagamento de alimentos pode incluir uma alteração quantitativa do montante anteriormente fixado ao devedor originário, adicionando-lhe uma cláusula actualizadora anual.

Da possibilidade de fixar ao FGADM uma prestação em montante superior àquela que foi determinada ao obrigado a alimentos
Por Alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário e compreendem também a instrução e educação do alimentado no cado de este ser menor (cfr. art. 2003.º, n.º 1 e 2 do C.Civil)
A lei elenca, por ordem, as pessoas obrigadas a alimentos no artigo 2009.º, n.º 1, assumindo, em primeira linha, essa responsabilidade o cônjuge ou o ex-cônjuge.
Esta obrigação legal concretiza a tutela constitucional do direito à vida, à integridade física, à saúde, e ao desenvolvimento integral da criança (cfr. arts. 24.º, 25.º, 64.º e 69.º, n.º 1 da CRP).
A Constituição impõe ainda aos pais iguais direitos e deveres no que concerne, além do mais, à manutenção e educação dos filhos (cfr. art. 36.º, n.º 3).
Atendendo à especial natureza dos interesses da criança, esta prestação deve ser actualizada e modificada, reduzindo-se ou aumentando-se o respectivo montante no caso de as circunstâncias se terem entretanto alterado (cfr. arts. 2004.º e 2012.º do C.Civil).
O artigo 1.º da Lei n.º 75/98, de 19.11 estabelece que “Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação.”
Estas prestações são fixadas pelo tribunal e na sua determinação deverá ser atendida a capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor—v. art. 2.º, n.º 1 e 2 do citado diploma legal.
O diploma que regulamentou a mencionada Lei n.º 75/98, Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, dispõe no art. 3.º, que o Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando :
a)A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro; e
b)O menor não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
Acrescenta o n.º 5 do referido preceito legal que estas prestações, a cargo do Fundo, são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, devendo aquele atender, na fixação deste montante, à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.
Por conseguinte, como referem Helena Bolieiro e Paulo Guerra [1] tal Fundo só entra em acção quando, de forma cumulativa :
--a pessoa está obrigada judicialmente a prestar alimentos a criança residente em Portugal, o que pressupõe que haja uma fixação, em sede de acção, de um quantum alimentício;
--não foi possível cobrar os alimentos em dívida pelo obrigado pela forma prevista pelo artigo 189.º da OTM (e pela forma do art. 933.º do CPC);
--o alimentado não possui rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
No caso em apreço, foi justamente esta situação que o tribunal deu como provada e, consequentemente, determinou que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores procedesse ao pagamento da prestação incumprida pela mãe do menor.
Sobre a questão de saber se, nessa fixação, o tribunal pode estabelecer um montante superior, a jurisprudência pronunciou-se em vários arestos, em sentidos opostos, nos Tribunais da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência no seguinte sentido : “Nos termos do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e no artigo 3.º, n.º 3 do DL n.º 164/99, de 13 de Maio, a prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores não pode ser fixada em montante superior ao da prestação de alimentos a que está vinculado o devedor originário” [2]
Em síntese, o entendimento que prevaleceu no Supremo Tribunal de justiça estribou-se nos seguintes argumentos essenciais :
--o montante da prestação a suportar pelo FGADM pode não ter correspondência com o valor da prestação alimentícia a que ficou vinculado o progenitor não convivente com o filho menor, mas não pode ser superior sob pena de desigualdade de tratamento;
--a cessação da intervenção do Fundo quando o progenitor faltoso cumpre a sua obrigação, em vez de prever a continuação da prestação social pelo remanescente, constitui uma solução legislativa que afasta a possibilidade do montante ser superior àquele que foi anteriormente fixado ao progenitor;
--as diligências instrutórias destinam-se a averiguar se o menor carece efectivamente do montante fixado ao progenitor, evitando-se possíveis abusos desencadeados com a fixação de valores que os progenitores sabem, à partida, que não estão em condições de suportar e de rigor na aplicação dos dinheiros públicos;
--mesmo tratando-se de uma prestação autónoma e independente, não pode dissociar-se do conceito de limite atendendo à sua natureza substitutiva e subsidiária;
--a exigência legal de restituição das quantias recebidas do Fundo indevidamente e o reembolso (sub-rogação legal) do que prestou ao menor em substituição do devedor originário não se coadunam com a perspectiva de ser fixada uma prestação de montante superior à fixada judicialmente a este último;
--os elementos literal, teleológico, sistemático e o teor da motivação do Projecto de Lei n.º 75/98 de 19 de Novembro apontam para um sentido mais restritivo dos normativos em causa, o qual não contende com qualquer comando constitucional.
Perante a interpretação, uniformizadora de jurisprudência, perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, cumpre apreciar, com o devido respeito, se a mesma está em conformidade com os princípios e normas consagradas na Constituição.
Na aplicação da lei o intérprete, para além de obedecer às directrizes previstas no art. 9.º do C.Civil, está obrigado a atender aos princípios e normas constitucionais (princípio da interpretação das leis conforme a constituição) bem como aos instrumentos internacionais integrantes da ordem jurídica interna.
Em matéria de infância, a Constituição, no seu artigo 69.º, n.º 1, proclama o direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral.
E assegura, a todos, o direito à segurança social—cfr. art. 63.º, n.º 1 da CRP.
Estes direitos, constitucionalmente consagrados, estão previstos no capítulo II referente aos Direitos e Deveres Sociais.
No que concerne a esta matéria de direitos e deveres sociais, ao legislador compete, dentro das reservas orçamentais e do desenvolvimento das “forças produtivas” do país, garantir as prestações integradoras desses direitos.[3]
E, o conteúdo essencial de todos os direitos deverá ser sempre assegurado, e só o que estiver para além dele poderá deixar ou não de o ser em função do juízo que o legislador vier a emitir sobre a sua maior ou menor relevância dentro do sistema constitucional e sobre as suas condições de efectivação. (…) Nesta apreciação, os órgãos de decisão política hão-se gozar, por certo, de uma relativa margem de liberdade—da liberdade de conformação a eles inerente e postulada pelo pluralismo democrático e pela alternância. [4]
O artigo 22.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos refere que toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.
E sobre a infância declara-se que tem direito a ajuda e a assistência especiais, gozando, todas as crianças, nascidas dentro ou fora do casamento, de protecção social—cfr. art. 25.º, n.º 2.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada em 1989 pelas Assembleia das Nações unidas e ratificada por Portugal em 21.09.1990, constitui igualmente um instrumento jurídico internacional, que vigora na ordem interna, e cujas normas e princípios subjacentes devem ajudar o intérprete na aplicação das normas constitucionais e legais.[5]
É reconhecido à criança o direito a um nível de vida suficiente de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social (art. 27.º, nº1), devendo os Estados garantir-lhe a protecção e cuidados necessários ao seu bem estar, tendo em conta os direitos e deveres dos pais (art. 3.º, n.º 2), assegurando, na medida do possível, a sobrevivência e o desenvolvimento da criança (art. 6.º, n.º 2) e o direito a prestações sociais, que deverão ser atribuídas tendo em conta os recursos e a situação da criança e das pessoas responsáveis pela sua manutenção (art. 26.º, n.º 1 e 2). (itálico nosso)
No caso dos direitos económicos, sociais e culturais, os Estados tomam as medidas necessárias à sua realização no limite máximo dos seus recursos disponíveis (art. 4.º). (itálico nosso)
Finalmente, as instituições, órgãos e organismos da União e os Estados-Membros quando apliquem o direito da união devem respeitar os direitos e princípios estabelecidos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, à qual foi atribuído valor jurídico de Tratado com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa em 01.12.2009.
A CDFUE reconhece também às crianças, no seu artigo 24.º, n.º 1, o direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem estar.
A Carta acolheu o novo entendimento da criança como ser humano em desenvolvimento, especialmente vulnerável mas dotado de uma capacidade progressiva, carecido de especial protecção mas também sujeito activo na construção do seu futuro ao qual devem ser reconhecidos direitos específicos.[6]
Retomando a questão da aferição da conformidade do entendimento maioritariamente expresso no Acórdão uniformizador com a Constituição, considera-se que o direito à protecção social conferido à criança em resultado do incumprimento do progenitor vinculado à prestação alimentícia mostra-se assegurado, não obstante o legislador, dentro dos seus poderes de conformação, ter apenas garantido o quantum alimentício em falta e não um montante superior ao fixado judicialmente.
É pacífico o entendimento no sentido de que a obrigação do Fundo é dotada de autonomia, nasce com a decisão judicial que a fixa, mas tem natureza subsidiária em relação à prestação do obrigado a alimentos na medida em que o não exonera desse vínculo.
A natureza subsidiária desta prestação social radica no incumprimento das quantias devidas pelo titular dessa obrigação, pressuposto da intervenção do Fundo, e caso se verifique a alteração das necessidades do menor terá de ser apreciada e decidida através do meio processual adequado e não no âmbito da obrigação de garantia. [7]
O Tribunal Constitucional [8], em Plenário, a propósito do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 07.07.2009 [9], teve oportunidade de reflectir sobre o enquadramento legal relativo à intervenção do Fundo em resultado das situações de incumprimento da obrigação de alimentos por parte do progenitor.
Esclareceu que a prestação pública realiza um típico direito social derivado do n.º 1 do artigo 69.º da CRP, um direito especial no campo do direito à segurança social (artigo 63.º, n.º 1 e 3 da CRP), num domínio em que se entrecruzam dois tipos de responsabilidade ou deveres de protecção, cada um com a sua lógica própria.
Concretizando este dever de protecção plasmado no art. 69.º, n.º 1 e n.º 3 do art. 63.º da CRP no que respeita às prestações públicas pecuniárias a favor do menor, o Tribunal Constitucional, no citado aresto, considerou que se traduz no dever do Estado de prover à situação de carência impeditiva de uma existência condigna no sentido do desenvolvimento de uma personalidade em formação ameaçada por esse incumprimento por parte do obrigado a alimentos. (sublinhado nosso)
Reconheceu, assim, um elevado padrão de exigência por se estar perante uma especial situação de carência de pessoas que, em razão da menoridade, não têm meios de subsistência, por um lado, mas por outro, um amplo poder de conformação do legislador perante a indeterminação típica das normas constitucionais relativas ao direito social em causa e o carácter multímodo das suas vias de concretização.
Alertou ainda que o tribunal só pode concluir pela violação do mandado de protecção perante a demonstração inequívoca da insuficiência ou inadequação manifesta das opções legislativas face ao fim ou ao sentido das normas constitucionais consideradas. (negrito nosso)
Esta linha de orientação está em sintonia com os instrumentos jurídicos internacionais, mais precisamente com a Convenção sobre os direitos das Crianças cujas disposições ressalvam sempre esse poder de actuação dos Estados tendo em conta o limite máximo dos seus recursos disponíveis.
Acompanhando o raciocínio do referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 400/2011, não é sustentável afirmar-se que a interpretação preconizada pelo Acórdão uniformizador de Jurisprudência ofende o conteúdo essencial deste direito social traduzido no especial mandamento constitucional de protecção das crianças com vista “ao seu desenvolvimento integral” que assenta na garantia da dignidade humana.
Por todas estas razões, a lei não permite que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores seja obrigado a pagar um quantitativo alimentício superior àquele a que estava obrigado o progenitor faltoso.
Do caso julgado
No que respeita à segunda questão resultante directamente da decisão impugnada, importa relembrar que a mesma indeferiu a promoção do Ministério Público destinada a incluir uma cláusula de actualização da prestação mensal uma vez que está esgotada nessa parte o poder jurisdicional previsto no art. 619º do Código de Processo Civil.
Como bem refere o ilustre recorrente, estamos perante um processo de jurisdição voluntária, cuja natureza é, sem dúvida, extensível a todos os incidentes dependentes da causa principal.
As decisões/resoluções podem ser alteradas com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração ao abrigo do artigo 2012.º do C.Civil e arts. 988.º e 619.º, n.º 2 do C.P.Civil.
No entanto, essa alteração deverá ser requerida através de uma acção de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais nos termos do artigo 182.º da OTM.
Ora, um dos possíveis fundamentos dessa acção é precisamente a desvalorização da moeda que actualmente não assume um nível significativo.
Portanto, competia ao Ministério Público ou ao progenitor que tem a guarda do menor requerer, por esse meio, essa alteração por forma a prestação ser indexada à taxa de inflacção.
Assim, e em bom rigor, não está em causa a ofensa do caso julgado previsto no artigo 619.º, do C.P.Civil, como parece ter sido o entendimento plasmado na decisão recorrida mas sim o uso de um meio processual inadequado para o efeito pretendido.
Pelos motivos expostos, e embora com fundamentação diversa, entendemos ser de manter a decisão recorrida.
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IV- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento ao recurso, e em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique e registe.
Guimarães, 17 de Setembro de 2015
Anabela Tenreiro
Francisca da Mota Vieira
Fernando Fernandes Freitas
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[1] Cfr. A criança e a Família—Uma Questão de Direitos, 2.ª edição, pág. 250, Coimbra Editora; no mesmo sentido v. ainda Poder Paternal e Responsabilidades Parentais, de Helena Gomes de Melo e outros, 2.ª edição, pág. 108, Quid júris.
[2] Cfr. Acórdão proferido no processo n.º 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A de 19.03.2015, com votos de vencido, disponível in www.dgsi.pt
[3] Cfr. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 3.ª edição, pág. 519, Almedina.
[4] Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 5.ª edição, pág. 484 e 485. Neste sentido, cfr. ainda Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 1987, pág. 249, Almedina : “Neste campo, o legislador dispõe da sua liberdade de conformação e estabelece autonomamente a forma e a medida em que concretiza as imposições constitucionais respectivas.”
[5] Cfr. art. 8.º, n.º 2 da CRP.
[6] Cfr. Rosa Cândido Martins, comentário ao artigo 24.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, anotada, Alessandra Silveira e Mariana Canotilho, coordenadoras, Almedina, págs. 298 e segs.
[7] Neste sentido v. Declaração de Voto do Juiz Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes (justificadora da alteração de posição sobre a questão em causa) anexa ao Acórdão Uniformizador do STJ de 19.03.2015.
[8] Cfr. Acórdão n.º 400/2011, processo n.º 194/11
[9] Acórdão que uniformizou a jurisprudência no sentido de que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo FGADM, em substituição do devedor, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só começa no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.