Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1028/09.0GBGMR.G1
Relator: TOMÉ BRANCO
Descritores: AMEAÇA
AGRAVAÇÃO
NATUREZA DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: O crime de ameaça agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 153º, n.º1 e 155º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, reveste natureza pública.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do tribunal da Relação de Guimarães
I)

Relatório

No processo comum singular supra referenciado do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, o arguido José P... está acusado de prática de um crime de ameaça, p. e p. pelos artºs153º, nº1 e 155º, nº1, al.a), ambos do C.P., sendo ofendido António M....
Através do requerimento que constitui fls. 148 o ofendido declarou desistir da queixa apresentada.
O MºPº, por seu lado, considerando que relativamente o crime de ameaça reveste a natureza pública, opôs-se por entender que a declaração de vontade do ofendido não tem relevância jurídica para extinguir o procedimento criminal nesta parte.
Apesar disso, o Sr. Juiz homologou a desistência de queixa por, contrariamente, entender que o crime reveste natureza semi-pública.

Inconformado, recorreu o MºPº interpôs, terminando a sua motivação com conclusões das quais resulta ser uma a questão a decidir - saber qual a natureza do crime de ameaça, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs153º, nº1 e 155º, nº1, ambos do C.P..

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Foi admitido o recurso.
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A Exmª Procuradora-Geral Adjunta, nesta Relação, emitiu parecer no qual conclui pela sua procedência.
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Foi cumprido o disposto no artº417º nº2 do C.P.P..
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre decidir:
A questão a decidir, como se disse, é a de saber qual a natureza do crime de ameaça, p. e p. pelos artºs153º, nº1 e 155º, nº1, al.a), ambos do C.P. – se semi-pública, como foi considerado na decisão recorrida, se pública, como defende o recorrente.
Pois bem, esta questão já foi decidida no acórdão desta Relação de 15.11.2010, proc. 343/09, relatado pela Exmª Desembargadora Maria Augusta e no qual interviemos como adjunto.
Ora os fundamentos invocados nesse acórdão são utilizáveis para o presente processo tendo em conta, como acima sublinhámos, tratar-se da mesma questão.
Assim limitar-nos-emos a reproduzir a argumentação explanada no referido acórdão.
Como é sabido, no essencial, há crimes cujo procedimento criminal, segundo a lei, está dependente de queixa, outros cujo procedimento criminal está dependente de acusação particular e, por fim, outros em que a lei nada diz.
Os primeiros são denominados doutrinariamente crimes semi-públicos, os segundos de crimes particulares e os últimos de crimes públicos.
Relativamente aos primeiros, para que o MºPº, titular da acção penal, tenha legitimidade para iniciar a investigação criminal, é necessário que o ofendido ou pessoa(s) a quem e lei confira legitimidade para tal, apresente queixa (artº49º do C.P.P.).
Já quanto aos segundos, a legitimidade do MºPº para exercer a acção penal também está dependente de queixa do ofendido ou de quem para tal tenha legitimidade mas, para além disso, aquele tem que constituir-se assistente e deduzir acusação particular (artº50º do C.P.P.).
Finalmente, nos crimes públicos, o MºPº, por sua iniciativa, tem legitimidade para promover a acção penal.
No que se refere ao crime de ameaça, integrado no Título I, do Livro II, Capítulo IV - «Dos crimes contra a liberdade pessoal» - está previsto o crime de ameaça simples e o crime de ameaça qualificada.
Na redacção do artº153º do C.P., anterior à alteração introduzida pela Lei nº59/2007, o procedimento criminal, quer pela ameaça simples, prevista no seu nº1, quer pela agravada, prevista no seu nº2, dependia de queixa, conforme expressamente dispunha o nº3, que abrangia os dois números anteriores.
Actualmente, o crime de ameaça simples continua a estar previsto no artº153º, mantendo-se o procedimento criminal dependente de queixa. Já a ameaça agravada passou a estar prevista em artigo autónomo – o artº155º -, o qual nada diz quanto ao procedimento criminal.
A questão que se coloca nos autos é, como se disse, a de saber se o procedimento criminal pelo crime de ameaça agravada continua a depender de queixa ou, como nada consta do artº155º, passou a ser crime público.
Defende o Sr. Juiz a quo tratar-se de crime semi-público argumentando da seguinte forma:
Os crimes de ameaça e coacção, entre outros, estão inseridos no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal.
No artº153º do C.P., onde se inicia esse capítulo, vem previsto o crime de ameaça "simples", punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
O crime de ameaça, previsto no artº153º, nº1 do C.P., como resulta do nº2 do mesmo preceito, assume sem qualquer margem para dúvida natureza semi-pública.
No artº154º do C.P., vem previsto o crime de coacção. Trata-se de um crime a que o legislador atribui maior gravidade, expressa na moldura penal aplicável: prisão até 3 anos ou multa.
Configura o crime de coacção, um crime público, a não ser na hipótese prevista no nº4 do artº154º. Assumirá natureza semi-pública quando o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges.
Ainda no mesmo capítulo, o artº155º contém a agravação dos crimes de ameaça e coacção.
Dispõe o artº155º, nº1 do CP que:
(...)
Por ordem de gravidade dos crimes, atentas as molduras penais aplicáveis, temos: o crime de ameaça "simples", previsto no artº153º, o crime de ameaça "agravada" previsto nos artºs153º e 155º, o crime de coacção "simples", previsto no artº154º e o crime de coacção "agravada", previsto nos artºs154º e 155º.
Ora, sendo o crime de coacção "simples", na óptica do legislador, mais grave que o crime de ameaça "agravada", justificar-se-á que este último assuma natureza pública, mesmo quando o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, ao invés do que sucede com o crime de coacção "simples", atento o disposto no artº154º, nº4 do C.P.?
Sendo o bem jurídico tutelado o mesmo, que razão explica que um crime de coacção "simples", nestas circunstâncias, assuma natureza semi-pública e o crime de ameaça "agravada" - cuja moldura é, ainda assim, menos gravosa - revista sempre natureza pública?
Uma de duas soluções pode ser avançada:
a) tornamos aplicável ao crime de ameaça "agravada" o nº4 do artº154º do CP, fazendo depender de queixa o procedimento criminal nos casos em que a ameaça tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges; ou
b) entendemos que o crime de ameaça, mesmo nas hipóteses previstas no artº155º do CP, assume natureza pública.
Propendemos para esta última, não só porque se nos afigura que não esteve na mente do legislador estender a aplicação do nº4 do artº154º ao crime de ameaça "agravada", mas também porque nos parece ser aquela que melhor se coaduna com a unidade do sistema jurídico, com aquilo que parece ter sido a intenção do legislador e com a aparente inexistência de razões de política criminal que justifiquem que, com a Lei nº59/2007, de 04/09/07, o crime de ameaça "agravada", que anteriormente assumia natureza semi-pública, passe agora a revestir natureza pública.
A solução para o problema passa pela consideração de diversos elementos na interpretação da lei, designadamente, o elemento literal, o histórico, o teleológico e o sistemático, os quais, no seu conjunto, cremos, apontam no sentido de que o crime de ameaça agravada passou a ter natureza pública.
Assim:
Antes da Lei nº59/2007, o crime de ameaça – quer o simples quer o agravado – estava, como se disse, previsto num só artigo - o artº153º do C.P.. O nº1 previa, tal como hoje, a ameaça simples, enquanto que o nº2 previa a ameaça agravada.
O procedimento criminal por qualquer um destes crimes, de acordo com o nº3 (correspondente ao actual nº2), dependia de queixa.
Com a alteração introduzida pela Lei nº59/2007, o artigo 153º ficou reduzido a dois números, continuando a ameaça simples a ser definida no nº1 e passando o nº2 a ter a redacção do anterior nº3, ou seja, mantendo a natureza semi-pública.
A ameaça agravada autonomizou-se, passando a estar prevista no artº155º, que nada prevê quanto à natureza do crime.
Esta autonomização é explicada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº98/10, que procede à vigésima primeira alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, da seguinte forma:
O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.
Significa, pois, ter sido intenção do legislador aproximar o crime de ameaça agravado ao crime de coacção grave, agravando mesmo substancialmente a pena, no caso do nº1 do artº154º.
Ora, o crime de coacção já era e continua a ser crime público, a não ser, após a reforma de 1995, quando o facto tiver lugar entre conjuges, ascendentes e descendentes ou adoptantes e adoptados, ou entre pessoas que vivam em situação análoga à dos cônjuges, em que o procedimento criminal depende de queixa, o que se mantém.
Subjacente ao novo artº155º está, pois, uma clara intenção agravativa da conduta até então prevista no nº2 do artº153º, passando em determinadas circunstâncias, o crime a ser punido apenas com pena de prisão, variável entre 1 e 5 anos, situação em que dificilmente se compreenderia que o procedimento criminal continuasse a depender de queixa.
Por outro lado, a técnica legislativa utilizada noutras disposições do Código Penal leva-nos também a pender para que a ameaça agravada tenha passado a crime público. Na verdade, e citando o Exmº Des. Fernando Monterroso, sempre que «há um crime "simples" e um "qualificado" ou "agravado", se o legislador pretende atribuir natureza "semi-pública" ao simples e "pública" ao qualificado, coloca a menção de que "o procedimento criminal depende de queixa" após a definição do tipo simples e antes do qualificado, leva-nos a concluir que se trata de crime público. É assim nas ofensas corporais (arts. 143 e 144), no furto (arts. 203 e 204), no abuso de confiança (art. 205 nºs 1, 3 e 4) e na burla (arts. 217 e 218). Quando pretende definir a natureza particular ou semi-pública de vários crimes da mesma espécie, é no fim do respectivo capítulo que faz a concretização - p. exemplo, arts. 178 (para os crimes sexuais) e 187 (para os crimes contra a honra)».
Por tudo isto, entendemos que o crime de ameaça agravado passou, após a redacção da Lei nº59/2007, de 04/09, a ter natureza pública.
Foi também neste sentido que decidiu o acórdão da Relação do Porto de 15/09/2010 http://www.dgsi.pt/jtrp. .
DECISÃO:
Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar procedente o recurso e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que julgando irrelevante a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravado imputado ao arguido José P... , prossiga com o julgamento.
Sem custas.

Guimarães, 9 de Maio de 2011