Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2676/10.1TBGMR.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APOIO JUDICIÁRIO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“Tendo o devedor junto, com a petição inicial com a qual se apresentou à insolvência, documento comprovativo da concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, está dispensado do pagamento das custas do processo, depois de proferida decisão final de exoneração do passivo restante”.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

Manuel instaurou, em 09/07/2010, a presente acção especial requerendo a sua declaração de insolvência.

Alegou, em síntese, que tem dívidas que no total perfazem € 179.206,51, que se encontra trabalhar, mas aufere o S.M.N., não tem outros rendimento ou bens pelo que se encontra impossibilitado de pagar aquela dívida (art. 3º nº 1, 20º nº 1 b) ex vi 18º do CIRE). Mais requereu a exoneração do passivo restante. Juntou comprovativo da concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo.
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Foi proferida sentença em 20/07/2010 que declarou a insolvência da Requerente com as consequências daí decorrentes e aí expressamente referidas que aqui se dão por reproduzidas.
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Em 25/01/11 foi proferida decisão que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e que determinou que, durante o período da cessão, o rendimento disponível do insolvente se considere cedido ao Sr. Fiduciário. Mais declarou encerrado o processo.

Em 22/11/16 o Sr. Fiduciário juntou relatório nos termos do art. 240º nº 2 do C.I.R.E. e requereu a notificação do insolvente a depositar a quantia de € 356,46 correspondente ao rendimento disponível.

Por decisão de 28/11/16, uma vez que o despacho inicial não fixou o montante do rendimento disponível, foi decidido que o rendimento disponível seria o que fosse superior ao S.M.N.. Mais se ordenou ao insolvente que depositasse a quantia acima referida.
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Em 06/01/17 foi apresentado relatório pelo Sr. Fiduciário nos termos do qual nada opõe à concessão da exoneração do passivo restante.
Por decisão de 25/01/17 foi concedida a exoneração do passivo restante nos termos do art. 244º nº 1 do C.I.R.E.; foram fixados honorários ao Sr. Fiduciário e foi ordenado que os autos fossem à conta.
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Em 18/01/18 foi elaborada conta que fixou a quantia de € 3.154,01 a cargo do insolvente.
Este apresentou requerimento, em 02/02/18, dizendo haver-lhe sido concedido beneficio de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e outros encargos.
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Em 22/02/18 foi proferida decisão que reproduzimos na íntegra:

Requerimento ref.ª 6624639: O pedido de exoneração do passivo restante afasta a concessão de qualquer forma de apoio judiciário ao devedor (salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono), pelo que o pagamento de custas por este será devido a final, beneficiando, querendo, do pagamento a prestações – artigo 248.º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
Proceda-se ao adiantamento dos honorários do Exmo. Fiduciário, a cargo do IGFEJ, devendo ser junto o competente recibo.”
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Não se conformando com a decisão recorrida veio o insolvente dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

A) – A QUESTÃO QUE SE PRETENDE SUBMETER À SEMPRE SÁBIA E PRUDENTE APRECIAÇÃO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, VENERANDOS SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, É A DE SABER SE O TRIBUNAL A QUO, AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 248º, PODE AFASTAR A CONCESSÃO, POR ENTIDADE ADMINISTRATIVA, DO BENEFÍCIO DE PROTECÇÃO JURÍDICA A INSOLVENTE QUE TENHA DESDE O INÍCIO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA DECISÃO ADMINISTRATIVA QUE DEFERE TAL BENEFÍCIO NA MODALIDADE DE DISPENSA DO PAGAMENTO DE TAXA DE JUSTIÇA E DEMAIS ENCARGOS COM O PROCESSO;
B) – O PROCEDIMENTO E DECISÃO SOBRE O PEDIDO DE PROTECÇÃO JURÍDICA É EXCLSUIVAMENTE DA COMPETÊNCIA DA SEGURANÇA SOCIAL – VIDE ARTº 20º DA L.A.J.;
C) - O TRIBUNAL APENAS TEM COMPETÊNCIA MATERIAL PARA APRECIAR OS PEDIDOS DE APOIO JUDICIÁRIO (OS FUNDAMENTOS DA SUA FORMAÇÃO) EM SEDE DE IMPUGNAÇÃO JUDICIAL DA DECISÃO ADMINISTRATIVA – VIDE ARTº 27º DA L.A.J.;
D) – AO RECORRENTE, EM MOMENTO PRÉVIO AO DO INÍCIO DO PRESENTE PROCESSO ESPECIAL DE INSOLVÊNCIA, FOI CONCEDIDO PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA COMPETENTE O BENEFÍCIO DE PROTECÇÃO JURÍDICA NA MODALIDADE DE ISENÇÃO DA TAXA D EJUSTIÇA E DEMAIS ENCOARGOS COM O PROCESSO;
E) - AO PRETENDER O TRIBUNAL RECORRIDO CANCELAR/REVOGAR COM A DECISÃO ORA EM CRISE AQUELE BENEFÍCIO CONCEDIDO AO RECORRENTE, ESTÁ NÃO SÓ A VIOLAR OS PRINCÍPIOS DO ACESSO AO DIREITO E DA SEPARAÇÃO DE PODERES CONSTITUCIONALMENTE CONSAGRADOS – ARTºS 20º E 11º, AMBOS DA C.R.P., MAS DE IGUAL MODO A COMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA PARA O EFEITO PREVISTA NA L.A.J. – ARTº 20º;
F) – O ARTº 248º APLICA-SE APENAS E TÃO SOMENTE À QUESTÃO INCIDENTAL DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO E ENQUANTO A MESMA ESTIVER PENDENTE;
G) – O AFASTAMENTO DA CONCESSÃO DE APOIO JUDICIÁRIO PREVISTO NO Nº 4 DO ARTº 238º SOMENTE TEM APLICAÇÃO QUANDO E SE O INSOLVENTE REQUERENTE DO PEDIDO DE EXONERAÇÃO BENEFICIAR DO DIFERIMENTO PREVISTO NO Nº 1 DO MESMO PRECEITO LEGAL – O QUE NÃO É O CASO PORQUANTO O RECORRENTE BENEFICIA DE PROTECÇÃO JURÍDICA NA ASSINALADA MODALIDADE;
H) - VERIFICA-SE ASSIM IN CASU UMA INTERPRETAÇÃO NORMATIVA INCONSTITUCIONAL DOS NºS 1 E 4 DO ARTIGO 248º QUE PELO TRIBUNAL FOI EFECTUADA, O QUE EXPRESSAMENTE SE INVOCA PARA TODOS OS DEVIDOS E LEGAIS EFEITOS.
I) – NO CASO EM APREÇO, TENDO SIDO DECRETADA A INSOLVÊNCIA, AS CUSTAS FICAM A CARGO DA MASSA INSOLVENTE E NÃO DO INSOLVENTE, ORA RECORRENTE – VIDE ARTº 304º;
J) – O BENEFÍCIO DE PROTECÇÃO JURÍDICA ATRIBUÍDO AO RECORRENTE EM MOMENTO ANTERIOR AO DO INÍCIO DO PRESENTE PROCESSO JUDICIAL MANTÉM-SE ATÉ AO MOMENTO DO PAGAMENTO DAS CUSTAS FINAIS;
K) – NÃO SE PODENDO OLVIDAR QUE HÁ MUITO SE MOSTRAM PROFERIDAS SENTENÇAS/DESPACHOS QUE CONDENAM A MASSA INSOLVENTE NO PAGAMENTO DAS RESPECTIVAS CUSTAS PROCESSUAIS;
L) – AO DECIDIR COMO DECIDIU O TRIBUNAL RECORRIDO VIOLOU E/OU INTERPRETOU DE FORMA ERRADA OS CITADOS PRECEITOS LEGAIS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS.”.
Pugna pela revogação da decisão recorrida
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é saber se, proferida a decisão final de exoneração do passivo restante, o insolvente tem que pagar as custas do processo no caso de ser beneficiário de apoio judiciário.
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II – Fundamentação

Os factos relevantes para a decisão da questão colocada são os que estão enunciados no supra elaborado relatório pelo que, por razões de economia processual, nos dispensamos de os reproduzir aqui.
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O processo de insolvência é um processo sujeito a custas, designadamente a pagamento de taxa de justiça inicial (art. 17º, 302º ss do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004 de 18 de Março, com as alterações entretanto introduzidas, e 1º, 14º do R.C.P.).

Dispõe o art. 304º do C.I.R.E., sob a epígrafe “Responsabilidade pelas custas do processo”:

As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão transitada em julgado.
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O instituto da exoneração do passivo restante é um instituto inovador introduzido pelo C.I.R.E., que significa a extinção de todas as obrigações do insolvente pessoa singular que não sejam integralmente pagas no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento e que ainda subsistam na data em que é concedida, mesmo que não reclamados e verificados (art. 235º, 245º nº 1 do C.I.R.E.), com excepção dos previstos no art. 245º nº 2 do C.I.R.E..
“A intenção da lei é a de libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de aprendida a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial” – Catarina Serra, in O Novo Regime da Insolvência, 4ª ed., pág. 133.
É uma medida susceptível de ser aplicada se o devedor, pelo seu comportamento anterior e ao longo do período de exoneração, merecer uma nova oportunidade. Para tal terá que ter adoptado e adoptar uma conduta em conformidade com a licitude, honestidade, transparência e boa-fé no que se refere à sua situação económica e ao cumprimento dos deveres associados ao processo de insolvência.

Este procedimento tem dois momentos fundamentais, o do despacho inicial previsto no art. 239º nº 1 e 238º do C.I.R.E. e o do despacho de exoneração, no final do período da cessão, previsto no art. 244º do C.I.R.E..

Dispõe o art. 248º do C.I.R.E., sob a epígrafe “apoio judiciário”:

1.O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período de cessão sejam insuficientes para o respectivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no nº 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevsitas no nº 1 do artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais.
4. O benefício previsto no nº 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono. (sublinhado nosso).

Não obstante a epígrafe deste preceito não estamos nesta sede perante uma situação de apoio judiciário propriamente dita, na acepção prevista na Lei nº 34/2004 de 29 de Julho, alterada pela Lei nº 47/2007 de 28 de Agosto (L.A.J.), mas perante um efeito similar ao visado pelo apoio judiciário.

Deste preceito resulta que, no período compreendido entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final desse pedido, o insolvente está dispensado do pagamento das custas cujo pagamento se difere para depois deste momento; depois de proferida a decisão final é chamado a pagar as custas que não tenham sido pagas pela massa e pelo rendimento disponibilizado ao abrigo da cessão feita ao fiduciário. Aplica-se a todas e quaisquer custas do processo de insolvência que devam ser pagas ou adiantadas pelo devedor.

A ratio desta norma prende-se com o objectivo de protecção do devedor de molde a não dificultar ou agravar a situação deste durante aquele lapso de tempo.

Acresce que, com a declaração de insolvência, o insolvente fica privado dos poderes de administração dos bens integrantes da massa insolvente, passando esta administração a ser assegurada pelo administrador de insolvência (art. 81º nº 1 e 4), a quem compete o pagamento das dívidas, designadamente as custas (art. 55º nº 1 a), 241º nº 1 a)).

Daí o previsto no nº 4 do referido preceito, nos termos do qual, durante tal período de tempo, está afastada a concessão de apoio judiciário que não na modalidade de nomeação e pagamento de honorários a patrono, porque desnecessária.
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O regime previsto no art. 248º do C.I.R.E. prevalece sobre o regime do apoio judiciário, mas não o afasta ou exclui tanto mais que o benefício de apoio judiciário tem como fim “assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, (…) por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos” (art. 1º nº 1 da L.A.J. e art. 20º da C.R.P.).

Esta ideia de que se trata de realidades distintas e conciliáveis ressalta do Ac. de 17/05/2012 desta Relação, in www.dgsi.pt onde se lê:

“I – O art. 248º nº 1 do C.I.R.E. concede ao devedor que requeira a exoneração do passivo restante um automático benefício ao diferimento do pagamento das custas.
II – Tal benefício implica que o devedor, goze ou não do apoio judiciário nos termos da legislação respectiva, não tenha que proceder ao pagamento prévio da taxa de justiça”.
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Revertendo ao caso em apreço verificamos que o devedor, antes de se apresentar á insolvência, requereu o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo, o qual lhe foi deferido, tendo o mesmo junto tal documento comprovativo à petição inicial.

Tendo na petição requerido a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no art. 248º nº 1 do C.I.R.E., ficou aquele, além do mais, dispensado do pagamento das custas até à prolacção da decisão final do pedido de exoneração.

Proferida esta decisão, não obstante haver sido elaborada a conta, encontra-se o insolvente dispensado do pagamento das custas uma vez que beneficia de apoio judiciário.
Assistindo, assim, razão ao apelante impõe-se a revogação da decisão recorrida.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e em revogar a decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 10/05/2018


(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)
(Afonso Cabral de Andrade)