Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3604/12.5TBBCL.G1
Relator: CARVALHO GUERRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ESTADO
ACTO ADMINISTRATIVO
APREENSÃO DE VEÍCULO
PROCESSO
CRIME
DANO
DESVALORIZAÇÃO DO VEÍCULO
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - A responsabilidade civil extracontratual do estado encontra-se hoje regulada pela Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, que não prevê expressamente a responsabilidade por factos lícitos, mas a mesma emana das normas e princípios constitucionais, como seja a garantia da propriedade privada e a igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos.
II - Tal responsabilidade abrange não só os danos resultantes de actos administrativos propriamente ditos, em que a administração prevê já a verificação do dano, como ainda os acidentais, isto é, aqueles que derivam de operações materiais da administração, como sejam de obras e trabalhos públicos.
III - O dever reparatório do Estado encontra-se limitado pela anormalidade e especialidade do dano.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Civil do Tribunal da Relação de Guimarães:
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José…instaurou ação no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga contra o Estado Português, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de euros 7.656,69 acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento e ainda uma indemnização pelos danos derivados da privação do uso do veículo de matrícula 45-53-Q… que se vierem a liquidar em execução de sentença.
Para o efeito alegou, em síntese, que é dono do veículo automóvel marca Audi, modelo A6 Allroad, de matrícula 45-53-Q…que adquiriu, no estado de usado, em 22/01/2005, por euros 37.000,00 a Adérito….
Em 30/01/2008, levou o veículo às instalações da E…, a fim de o seu veículo ser submetido a uma revisão integral pagando, para o efeito, a quantia de euros 2.216,79.
Nessa ocasião, no seguimento de um pedido de uma peça original, a E…, na pessoa de um seu funcionário, constatou através do sistema informático interno que possui que o número de chassis do veículo em questão estava bloqueado e constava na base de dados como furtado, facto que foi comunicado à GNR de Vila do Conde, o que veio a despoletar o processo-crime nº 265/08.0GAVCD, que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Vila do Conde e cuja investigação coube à PJ – Diretoria do Porto, tendo o veículo sido apreendido em 24/04/2008.
Constava do sistema Schengen que o veículo em causa deveria ser apreendido para ser sujeito a perícia em processo penal, determinada a identidade dos ocupantes e efetuada comunicação ao G. N. Sirene.
No decurso do inquérito, constatou-se que inexistiam indícios da prática de qualquer crime e ordenou-se a entrega do veículo ao seu proprietário, o que ocorreu 21/01/2009.
Alegou que o veículo em causa lhe fazia falta para as suas deslocações profissionais e de lazer, que o mesmo sofreu uma desvalorização de euros 13.000,00, que o aluguer de um veículo com as mesmas características ascendia a euros 150,00/200,00, acrescida de caução de euros 1.500,00 e euros 183,19/dia sem seguro, mediante caução de euros 4.200,00, que despendeu cerca de euros 1.156,69 para colmatar os danos decorrentes da apreensão, o que diminuiu a dita desvalorização para metade, ou seja, euros 6.500,00, que os danos pela privação do uso se cifram em 15,00 euros por dia e que se viu obrigado a comprar um outro veículo, em 09/05/2008, pelo preço de euros 29.000,00.
Conclui, desta forma, que a informação constante do sistema Schengen era errada e que o Estado Português, enquanto signatário do acordo, era responsável pelas falhas do sistema, sendo igualmente desproporcionada e desnecessária a atuação de apreender o veículo pelo prazo de 9 meses, o que viola o direito de propriedade do Autor.
Finalmente, invoca o disposto nos artigos 11º do Decreto-Lei nº 31/85, de 25/11 e 22º e 271º da CRP que preveem a desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado e a responsabilização do Estado e das demais entidades públicas por ações e omissões praticadas pelos seus órgãos ou funcionários das quais resulte a violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.
Na contestação apresentada, o Ministério Público pugnou pela incompetência material do TAF, nos termos do artigo 4º, nºs 2, c) e nº 3 do ETAF.
Para além desta exceção dilatória, conclui pela improcedência da ação aduzindo, nesta esteira, em síntese, que não está prevista na lei penal a nulidade para o ato de validação da apreensão, que seria apenas um ato irregular, sendo que, em qualquer das hipóteses – nulidade/irregularidade – deveriam as mesmas ter sido arguidas nos prazos legais, que já se encontram transcorridos – artigos 118º, nºs 1 e 2, 119º e 120º, nºs 1 e 3, c) do Código Penal.
Mais refere que o Autor não lançou mão do disposto no Decreto-Lei nº 31/85 e que a apreensão do veículo, face às circunstâncias do caso, não foi infundada, injustificada ou desnecessária.
Refere que a notícia da prática de um crime divulgado através do sistema Schengen, que vincula o Estado Português e que compreendia um veículo com as características idênticas ao do veículo do Autor impunha a sua apreensão para posterior exame e investigação. Ademais, aduz que o Autor não consegue estabelecer com base na ilicitude nem na culpa o nexo de imputação ético-jurídica do facto ao agente, pois não consegue provar que este agiu sem a diligência devida.
Refuta os alegados danos peticionados e refere que se está no caso perante uma mera restrição do direito de propriedade, que não é passível de indeminização por não se verificarem as características de anormalidade e especialidade exigidas no artigo 16º da Lei nº 67/2007 de 31.12.
Questiona os danos peticionados pela privação do veículo, quando o Autor acaba por dizer que adquiriu um outro decorridos 15 dias e os demais danos alegados quando o veículo esteve recolhido num armazém, não havendo notícia de aquele veículo tenha sido vandalizado.
Quanto ao mais, alega que os valores peticionados não se encontram concretizados e são incongruentes e termina referindo que a apreensão do veículo por parte do Estado (da PJ e do MP) se prende com razões de segurança e acautelamento dos meios de prova que constituem um encargo normal decorrentes da administração da justiça numa sociedade de direito, que se consubstancia num encargo social compensada por vantagens de outra ordem proporcionadas pela atuação da máquina estatal.
Posteriormente, por sentença proferida pelo TAFB, foi julgada procedente a exceção da incompetência em razão da matéria e posteriormente determinada a remessa dos autos ao Tribunal Judicial de Barcelos, como requerido pelo Autor.
Em 15/05/2013, já depois de ter instaurado a presente ação o Autor, por requerimento junto a folhas 130, solicitou ao Magistrado do MP que fosse dado cumprimento ao disposto no artigo 11º do Decreto-Lei nº 31/85, de 25.01, para apuramento da desvalorização do veículo, tendo aquele Magistrado indeferido o requerido por considerar que não houve qualquer uso ou utilização do veículo apreendido por parte do Estado.
Ulteriormente, o Autor dirige pedido similar, agora ao Diretor Geral do Património do Estado, que veio a indeferir a pretensão pelo facto de o veículo não ter sido utilizado pelo Estado, conforme de folhas 374.
Foi, de seguida, proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o Estado Português dos pedidos formulados pelo Autor.
Desta sentença apelou o Autor, que apresentou alegações e formulou conclusões.
O Estado apresentou contra alegações em que defende a improcedência do recurso.
Cumpre-nos agora decidir.
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Sendo certo que são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso – artigos 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil – das apresentadas pela Apelante resulta que são as seguintes as questões que nos cumpre apreciar e decidir:
- verificar se, em face da prova produzida, diversa deveria ter sido a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto que especifica;
- em qualquer caso, apurar se estão provados os pressupostos de facto que fazem incorrer o Apelado na obrigação de indemnizar o Apelante pelos prejuízos por este sofridos em consequência da apreensão e, no caso de assim ser, fixar o montante adequado à reparação desses danos.
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De acordo com o disposto no artigo 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por seu turno, o artigo 640º do mesmo diploma estabelece:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Cremos que o Apelante cumpre com os ónus que lhe são impostos por essas normas pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso.
São os seguintes os factos em causa:
- que o tribunal considerou provados e o Apelante entende deverem ser dados como não provados:
26. “o veículo em questão deu entrada nas instalações da PJ a 24/04/2008 e foi acondicionado num armazém fechado até 21/01/2008, data em que foi entregue ao seu proprietário”.
27. “A 02/05/2008 o mesmo veículo foi submetido a exame técnico no qual foi detectado um dano na sua pintura, no painel traseiro direito, conforme ficha técnica para inspecção de viaturas”;
28. “Durante a sua permanência no armazém o veículo não foi alvo de vandalismo ou desmazelo”.
29. “No acto da entrega estiveram presentes os funcionários identificados no auto, nada sendo referido pelo proprietário quanto às condições em que o veículo se encontrava ou à hipotética falta de componentes”.
30. “O veículo estava operacional e evidenciava um regular estado geral de conservação, nada se tendo dito quanto à existência de qualquer anomalia”.
- que o tribunal considerou como não provados e o Apelante entende deverem ser dados como provados:
a) “que o veículo do autor nunca estivesse envolvido em qualquer furto fora ou dentro do país”;
b) “que o Autor despendesse cerca de euros 1.156,69 para colmatar tanto quanto possível os danos decorrentes da apreensão”;
c) “que aquando do levantamento da apreensão, o veículo propriedade do autor se encontrasse em mau estado de conservação, desmazelado e sem algumas peças, com sinais de completo descuido pela PJ”;
d) “Que os danos de privação do uso se cifram em 15 euros/dia”;
Passámos em revista todos os elementos de prova constantes do processo e procedemos à audição da gravação dos depoimentos e, começando pelo ponto 26º, em relação à data da apreensão, se não tivesse sido o próprio Apelante quem o alega na sua petição inicial, ela consta do respectivo auto cuja cópia se encontra a folhas 23 dos autos e quanto ao local onde o mesmo foi acomodado até ser devolvido ao Apelante, ele foi referido pela testemunha Elias…, inspector da Polícia Judiciária e não foi feita qualquer prova em contrário ou que revele que ele tenha dali sido removido enquanto esteve apreendido.
Quanto ao ponto 27º, o facto consta do respectivo auto constante do de folhas 42 a 45 do inquérito cuja cópia se encontra junta ao processo e não foi contrariado por outro meio de prova.
Com efeito e reportamo-nos já também aos factos constantes dos pontos 29º e 30º, não consta que o Apelante tenha apresentado qualquer reclamação no acto da entrega em relação ao estado da viatura; a testemunha João …, que o vira antes da apreensão, viu-o também aquando da entrega ao Apelante, pareceu-lhe que ele estava no estado em que foi levado e nada lhe foi referido pelo Apelante em contrário e só posteriormente é que lhe referiu que ele padeceria de algumas abnomalias; também a testemunha Fernando…, que também conhecia o veículo, não soube especificar qualquer problema que ele apresentasse na altura em que foi entregue, pelo que não podia o tribunal decidido de outra forma.
Passando aos factos que o tribunal considerou como não provados, quanto ao constante da alínea a), os elementos de prova constantes do processo apenas permitem concluir que o veículo não esteve envolvido no acto criminoso que foi investigado no âmbito do inquérito que decorreu deu azo à sua apreensão e mais do que isso não é reconhecido pelas autoridades que nele intervieram.
No que toca ao facto do ponto 28º, não foi produzida qualquer prova que revelasse que o veículo tenha sido objecto de qualquer acto de vandalismo ou que tenha sido desmazelado enquanto esteve apreendido.
Quanto ao da alínea b), os documentos de folhas 159 e seguintes, que não foram por qualquer forma postos em causa, impõem que se considere como provado apenas e só que o Autor despendeu a quantia de euros 1.156,69 numa reparação efectuada ao seu veículo em 10/02/2010.
No que toca ao da alínea c), já acima referimos por que se justfica considerar como provado o seu contrário e em relação ao da alínea d) não foi produzida prova consistente sobre o mesmo, nem nos parece sequer que o mesmo seja susceptível de ser demonstrado por meio de prova testemunhal.
São, pois, os seguintes os factos provados:
1. o Autor é dono e legítimo possuidor do veículo automóvel marca Audi, modelo A6 Allroad, de matrícula 45-53-Q…, de cor preta e chassis WAUZZZ4BZ1NO60…;
2. o Autor adquiriu o referido veículo no estado de usado, em 22/01/2005, por euros 37.000,00 a Adérito…, tendo sido intermediário da venda José …
3. em 30/01/2008, o Autor compareceu com o sobredito veículo automóvel nas instalações da E… – Comércio de Automóveis, S.A., sitas na Rua 1… Zona Industrial da V…, Vila do Conde, a qual tem por objeto a venda e reparação de automóveis novos e usados, a fim de o seu veículo ser submetido a uma revisão;
4. o Autor procedeu ao pagamento de euros 2.216,79, relativos à manutenção do sobredito veículo à E…, encontrando-se o mesmo, após a dita revisão, em perfeito estado de conservação;
5. nessa ocasião e no seguimento de um pedido de uma peça original, a E…, na pessoa de um seu funcionário, constatou através do sistema informático interno que possui – o qual se encontra ligado à rede internacional da marca de automóveis Audi – que o número de chassis do veículo em questão estava bloqueado e constava na base de dados como furtado;
6. tal facto foi comunicado por um funcionário da E… ao posto de Vila do Conde da Guarda Nacional Republicana (destacamento de Santo Tirso) o que veio a despoletar o processo-crime que com o nº 265/08.0GAVCD, que correu termos nos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial de Vila do Conde;
7. a investigação do caso coube à PJ – Diretoria do Porto;
8- o Autor, em 24/04/2008, foi ouvido pela PJ no âmbito do inquérito tendo referido, nomeadamente, além do aqui explanado nos pontos 1º e 2º, que o veículo na sua posse não havia sofrido qualquer acidente, encontrando-se no estado em que foi adquirido, sendo alheio a qualquer irregularidade que o mesmo pudesse apresentar ao nível dos seus elementos identificativos e ter sempre circulado em território português;
9. no âmbito desse inquérito, em 24/04/2008, o veículo automóvel propriedade do Autor foi apreendido pela Polícia Judiciária – Diretoria do Porto e transportado para as respetivas instalações devido ao facto de constar como furtado no sistema Schengen;
10. por comunicação do congénere polaco do Gabinete Nacional Sirene, constatou-se que o veículo do Autor foi falsificado através de um veículo gémeo de construção idêntica registado na Alemanha, encontrando-se este último envolvido num furto ocorrido em 27/09/2005, na Polónia, em Gleiwitz;
11. a informação constante do sistema Schengen era a seguinte; “Ação a desenvolver: Nos termos do direito nacional, apreender o veículo ou tomar todas as medidas conservatórias pertinentes, tomar cuidado para não destruir vestígios ou indícios necessários à realização de perícias no âmbito de um processo penal. Determinar a identidade do ou dos ocupantes. Comunicar ao G. N. Sirene”;
12. o veículo do Autor esteve apreendido desde 24/04/2008 até 21/01/2009;
13. a PJ procedeu ao exame direto ao veículo apreendido, verificando-se que o mesmo possuía gravado a frio e sem qualquer indício de falsificação do número de chassis WAUZZZ4BZ1NO60…; os autocolantes referentes à placa de identificação e ao de serviço pós venda se encontravam nos locais próprios e afixados de forma original e sem indícios de falsificação; o motor do veículo tinha o número AKE 032292, gravado de forma original e em local próprio do bloco; a caixa de velocidades tinha o número 03794662FGZ, gravado de forma original e em local próprio da mesma; o número de produção 4212567 foi encontrado no veículo na placa de identificação, no autocolante de serviço pós venda e gravado a frio e sem indícios de falsificação em local próprio na carroçaria; os números dos componentes mecânicos supra referidos, nomeadamente do motor e caixa de velocidades, bem como de produção correspondem aos montados originalmente pelo fabricante;
14. em face do supra referido, concluiu a PJ que o veículo examinado não apresentava qualquer tipo de falsificação ao nível dos elementos identificativos, encontrando-se os mesmos como de origem; foi matriculado legalmente em Portugal, no estado de novo, em 14/12/2000, tendo sido atribuído ao mesmo a matrícula 45-53-Q…; o veículo circulou sempre em Portugal, razão pela qual não poderá ser este o veículo furtado na Polónia;
15. o sobredito processo-crime foi arquivado por despacho proferido em 19/01/2009;
16. no qual se ordenou o levantamento da apreensão sobre o veículo e a sua entrega ao seu proprietário com os respetivos documentos;
17. em 21/01/2009 foram entregues ao autor os documentos do automóvel;
18. por inúmeras vezes, o autor pediu informações sobre o estado da investigação ao Sr. Inspetor da PJ;
19. o Autor colaborou desde o início com as autoridades, prestando todas as informações que lhe eram solicitadas e que eram do seu conhecimento;
20. o veículo propriedade do Autor era pelo mesmo utilizado, aquando da supra referida apreensão, diariamente para se deslocar para o trabalho e para as demais deslocações rotineiras, como ida às compras e transporte dos seus filhos, sendo o carro de família e único existente para esse fim;
21. atenta a apreensão do veículo, o Autor viu alterada a sua rotina diária que passou por constantes boleias e pedidos a pessoas mais próximas que lhe emprestassem um veículo em que se pudesse deslocar;
22. sendo o único veículo que detinha para o efeito, necessitando o Autor de outro que o substituísse;
23. o Autor adquiriu outro veículo dada a impossibilidade prática de prosseguir o seu quotidiano e assumir os seus compromissos profissionais e familiares, o que veio a fazer em 09/05/2008, pelo preço de euros 29.000,00;
24. o aluguer de um veículo com as características do da propriedade do Autor objeto de apreensão ascendia por altura da apreensão a euros 150,00/200,00, acrescida de caução;
25. em consequência da sobredita apreensão e da sua paragem por cerca de nove meses, o veículo da propriedade do autor sofreu uma desvalorização de valor de cerca de euros 3.500,00/euros 3.750,00;
26. o veículo em questão deu entrada nas instalações da PJ a 24/04/2008 e foi acondicionado num armazém fechado até 21/01/2009, data em que foi entregue ao seu proprietário;
27. a 02/05/2008 o mesmo veículo foi submetido a exame técnico no qual foi detetado um dano na sua pintura, no painel traseiro direito, conforme ficha técnica para inspeção de viaturas;
28. durante a sua permanência no armazém, o veículo não foi alvo de vandalismo ou desmazelo;
29. no ato de entrega, estiveram presentes os funcionários identificados no auto, nada sendo referido pelo proprietário quanto às condições em que o veículo se encontrava ou à hipotética falta de componentes;
30. o veículo em questão, apesar do seu exterior não se encontrar polido, encontrava-se operacional, evidenciando um regular estado geral de conservação, tendo sido examinado pelo Autor, nada tendo este referido quanto à existência de alguma anomalia;
31. o veículo tinha 116.957 Km;
32. em 21/01/2009, o valor comercial deste veículo era de euros 17.000,00;
33. em 15/05/2013, já depois de ter instaurado a presente ação, o Autor por requerimento junto a folhas 130, solicitou ao Magistrado do MP que fosse dado cumprimento ao disposto no artigo 11º do DL nº 31/85, de 25.01, para apuramento da desvalorização do seu veículo, tendo aquele Magistrado indeferido o requerido por considerar que não houve qualquer uso ou utilização do veículo apreendido por parte do Estado e mais tarde dirige o Autor outro pedido agora ao Diretor Geral do Património do Estado que veio a indeferir a pretensão pelo facto de do veículo não ter sido utilizado pelo Estado, conforme de folhas 374;
34. o Autor não foi notificado do apuramento indemnizatório respeitante ao veículo apreendido, pelas razões que constam do ponto 33, dos quais não reclamou/recorreu;
35. o Autor despendeu a quantia de euros 1.156,69 numa reparação efectuada ao seu veículo em 10/02/2010.
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Antes do mais, devemos referir que não está nem o Apelante põe em causa a licitude da actuação do Estado ao proceder à apreensão da viatura do Autor no sentido de investigar a sua eventual participação em acto criminoso.
A questão remete-nos directamente para a problemática da responsabilidade civil do Estado por factos lícitos de natureza administrativa.
Do ponto de vista estritamente civilista, a responsabilidade civil assenta na culpa, configurando-se a responsabilidade objectiva como excepcional: “Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”, estabelece o artigo 483º, n.º 2 do Código Civil.
Porém, quando se passa para o direito público, a doutrina tende a atribuir à responsabilidade objectiva relevância igual à subjectiva – J. J. Gomes Canotilho, O Problema da Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, páginas 95 e seguintes.
Marcelo Caetano via nos artigos 2.396º e 2.397º do Código Civil de 1887 “... a consagração de que o sacrifício especial imposto a um património para benefício da colectividade deve ser por esta indemnizado pelo modo mais adequadamente estabelecido na lei” e acrescentava não se tratar de “... mero afloramento incidental ou casuístico de uma regra implícita ou subjacente: estávamos perante a formulação da própria regra”.
E o artigo 2.397º preceituava que, se o dano fosse ordenado pela autoridade pública no exercício das suas atribuições, seria indemnizado pela colectividade em benefício da qual houvesse sido determinado, fazendo-se a distribuição do encargo pelos membros dessa colectividade na conformidade dos regulamentos administrativos, nada mais faltando para traduzir o princípio geral da responsabilidade da administração pelos danos causados por factos lícitos – Manual de Direito Administrativo, Volume II, página 1240.
O Código Civil de 1967 não regulou a matéria, mas o Decreto-Lei n.º 48.051 de 21 de Novembro de 1967, no seu artigo 8º veio afirmar a existência de um princípio autónomo de responsabilidade objectiva e o artigo 9º, n.º 1 veio estabelecer que o Estado e demais pessoas colectivas de direito público “indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causem prejuízos especiais e anormais”, acrescentando no n.º 2 que, quando o Estado ou outra pessoa colectiva de direito público “tenham, em estado de necessidade e por motivo de imperioso interesse público, de sacrificar especialmente, no todo ou em parte, coisa ou direito de terceiro, deverão indemnizá-lo”.
As normas citadas, das quais se retira o estabelecimento de um princípio geral de responsabilidade objectiva, mais não representará do que a consagração de uma corrente doutrinal, iniciada ainda no século XIX que “... vinha proclamando a necessidade de distribuição equitativa dos prejuízos advindos de actividades lícitas da administração, mesmo em face da inexistência de preceitos directamente consagradores do dever reparatório do Estado” – J. J. Canotilho, obra citada, página 232.
E é certo que, se do que se trata essencialmente é fazer repartir pela colectividade o sacrifício ao interesse público do direito de uma só pessoa, mediante a atribuição a essa pessoa do correspondente pecuniário ao direito sacrificado, pago pelo erário público para o qual contribui a generalidade dos cidadãos através do pagamento de impostos então, na ausência de consagração positiva, sempre o princípio se imporia pela ponderação dos direitos constitucionalmente garantidos à propriedade privada e à igualdade – artigos 13.º, n.º 1 e 62º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa – pois que indemnizar os danos provocados por actos ainda que lícitos da administração não só assegura o princípio da igualdade dos cidadãos na repartição dos encargos públicos, mas também é ainda proteger a propriedade.
A responsabilidade civil extracontratual do estado encontra-se hoje regulada pela Lei n.º 67/2007 de 31 de Dezembro, que não prevê expressamente a responsabilidade por factos lícitos; no entanto, os princípios explanados, porque o reflexo directo das normas e princípios constitucionais mencionados não poderão ser postergados.
Mas se tal responsabilidade abrange não só os danos resultantes de actos administrativos propriamente ditos, em que a administração prevê já a verificação do dano, como ainda os acidentais, isto é, aqueles que derivam de operações materiais da administração, como sejam de obras e trabalhos públicos, a verdade é que, conforme resulta dos artigos 8º e 9º do citado Decreto-Lei n.º 48.051 e vem sendo afirmado sem discrepâncias pela doutrina – ver autores citados – o dever reparatório do Estado encontra-se limitado pela anormalidade e especialidade do dano sendo que, de acordo com o artigo 2º daquela Lei, “Para os efeitos do disposto na presente lei, consideram-se especiais os danos ou encargos que incidam sobre uma pessoa ou um grupo, sem afectarem a generalidade das pessoas, e anormais os que, ultrapassando os custos próprios da vida em sociedade, mereçam, pela sua gravidade, a tutela do direito”.
O prejuízo há-se ser anormalmente grave, desde logo porque o direito sacrificado tem uma contrapartida de interesse público, mas não só; assim, “Os pequenos sacrifícios, oneradores de alguns cidadãos, constituem simples encargos sociais, compensados por vantagens de outra ordem proporcionadas pela máquina estatal. Se o dano não exceder os encargos normais exigíveis como contrapartida dos benefícios emergentes da existência e funcionamento dos serviços públicos, não há lugar ao pagamento de indemnização, sob pena de insolúveis problemas financeiros, paralisadores da actividade estadual” – J. J. Canotilho, obra citada, página 272.
Para além disso, o dano há-de ser especial, isto é, há-de atingir apenas um indivíduo ou grupo de indivíduos em razão de uma posição só do ou dos lesados e não os cidadãos em geral.
No caso dos autos, provou-se que, no âmbito desse inquérito, em 24/04/2008, o veículo automóvel propriedade do Autor foi apreendido pela Polícia Judiciária – Diretoria do Porto e transportado para as respetivas instalações devido ao facto de constar como furtado no sistema Schengen e esteve apreendido até 21/01/2009 tendo, em consequência, sofrido uma desvalorização de, pelo menos, euros 3.500,00.
Da mesma forma do que dispõe o artigo 562º do Código Civil, também nos termos do artigo 3º da mencionada Lei, o responsável pela reparação de um dano deve reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o facto que obriga à reparação, sendo o dano o prejuízo real que o lesado sofreu e que se determina pela diferença entre a sua situação real actual e aquela em que se encontraria se não tivesse havido a lesão, abrangendo, por isso, não só os prejuízos directamente resultantes do facto, como ainda os benefícios que ele deixou de obter em consequência da lesão (artigo 564º) segundo o princípio da actualidade, que manda atender ao momento mais recente que o tribunal possa considerar que, em regra, é o do encerramento da discussão da causa.
Se a dita desvalorização do veículo constitui um evidente dano patrimonial resultante da sua apreensão, passando a reposição do património do Apelante necessariamente pelo pagamento da quantia em que se traduziu essa desvalorização, temos para nós que a imobilização do veículo em consequência de danos que sofreu em consequência de acidente de viação pode dar origem a danos de naturezas diferentes; a privação do uso e fruição, nomeadamente de coisa móvel constitui em si já um dano, que pode assumir a natureza de dano patrimonial, se reportado às vantagens que o titular deixou de retirar da coisa ou às despesas que teve de suportar por a não poder utilizar, como se apurou, mas também um dano de natureza não patrimonial, traduzido este tão só na colocação desse titular na impossibilidade de exercício de um seu legítimo direito de uso, em nossa opinião digno da tutela do direito.
Neste caso, o pedido formulado reporta-se apenas à mera privação do uso; nesta parte, o montante da indemnização terá de ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494º, grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso.
Não existe qualquer critério legal orientador para a fixação da indemnização e os elementos disponíveis no processo, nesta parte, também não revelam mais do que uma normal situação em que a titular do bem que lhe é fornecido pelo uso do veículo se encontrou impedida de o fruir; por isso, achamos de todo em todo legítimo, como critério referencial para a fixação da indemnização partir dos custos de uma situação susceptível de colmatar o dano de privação do uso, qual seja o aluguer de uma viatura equivalente para substituição da acidentada durante o período de tempo de impossibilidade de utilização da própria, pelo que a quantia pedida de euros 15,00/dia se peca é por parcimoniosidade; o Apelante esteve 272 dias privado do uso do seu veículo por 272 dias (de 24/04/2008 a 21/01/2009) pelo o montante indemnizatório ascende a euros 4.080,00.
E deverá dizer-se que as características de especialidade e anormalidade desses danos exigidas pelo citado artigo 2º daquela Lei são evidentes, face ao prolongado lapso de tempo que lhes deu origem.
Ascendem, assim, os danos sofridos pelo Apelante a euros 7.580,00 (3.500,00+4.080,00), a que acrescem juros à taxa legal de 4% a contar da citação – artigos 805º, n.º a e 806º do Código Civil.

Pelo exposto, acorda-se em revogar a sentença recorrida, condenando-se o Estado Português a pagar ao Autor, José…, a quantia de euros 7.580,00 (sete mil quinhentos e oitenta euros), acrescida de juros à taxa anual de 4% contados desde a data da citação até integral pagamento.
Custas pelo Apelante na proporção do decaimento.
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Guimarães, 15.01.2015

Carvalho Guerra
Estelita Mendonça
Conceição Bucho