Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
106/12.3TBPTB-F.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
REQUERIMENTO
FACTOS
DISCRIMINAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: A imposição da indicação discriminada dos factos sobre os quais há-de recair o depoimento de parte não impede que seja pedida a sua prestação sobre todos os factos incluídos na base instrutória.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO
Por apenso ao processo de execução que A… instaurou contra B…, no qual foram penhorados, entre outros bens, duas quotas tituladas pelo executado na sociedade C…, Lda., veio D… deduzir embargos de terceiro, requerendo o levantamento da penhora.
Como o requerimento inicial, indicou a embargante a respectiva prova, requerendo o depoimento de parte do executado/embargado B… “à matéria constante dos arts. 2º, 3º e 4º daquele articulado”.
Proferido despacho saneador, seleccionada a matéria de facto assente e fixada a base instrutória, foram as partes notificadas para indicarem as respectivas provas.
A embargante apresentou o seu requerimento de prova, dando por reproduzida a prova indicada no requerimento inicial.
Foi, então, proferido o seguinte despacho:
«1 – Do depoimento de parte
Por ser matéria sujeita a confissão, admite-se o depoimento de parte da Embargante D… e do Embargado B… à matéria constante dos quesitos 1) a 16) da base instrutória, nos termos requeridos pela Embargada A… – artigos 552º e 554º do Código de Processo Civil
Convida-se a Embargante D… a, caso pretenda o depoimento de parte do Embargado B…, indicar, no prazo de 10 dias e sob pena de indeferimento, por referência ao despacho saneador proferido nos autos, qual a concreta matéria controvertida que pretende que tal depoimento vise».
A embargante veio informar que pretendia “o depoimento pessoal de B… a toda a matéria da base instrutória”.
Sobre este requerimento/informação recaiu o seguinte despacho:
«Requerimento da Embargante D… datado de 13.03.2013: Decorre do disposto nos artigos 552º e 554º do Código de Processo Civil, conjugados com o teor dos artigos 352º e 354º do Código Civil, que a prova por confissão das partes, a qual, em julgamento, só pode ser produzida através de depoimento de parte, é admissível se tiver por objecto factos pessoais do depoente ou de que este deva ter conhecimento, e factos que lhe sejam desfavoráveis e favoreçam a parte contrária.
Conforme se extrai do artigo 352º, do Código Civil, “confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.
Tendo em conta tal definição legal, pode então constatar-se que uma pessoa que seja parte só pode confessar a tese da parte contrária.
No despacho antecedente, foi a Embargante notificada para indicar a concreta matéria controvertida a que pretende o depoimento de parte, sob pena de indeferimento. Nessa sequência veio dizer que pretende o depoimento de parte de B… a toda a matéria controvertida. O requerido resulta inadmissível porquanto a Embargante não especifica a matéria, sendo que, naturalmente e nos moldes preditos, não é processualmente admissível o depoimento de parte do Embargado a toda a matéria controvertida.
Em face do exposto, indefere-se o requerido depoimento de parte do Embargado B….
Notifique».
Inconformada com essa decisão, dela veio a embargante interpor recurso para este Tribunal da Relação, apresentando alegações que termina mediante a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O tribunal a quo por despacho de fls. indeferiu o requerido depoimento de parte do Executado B….
2. A Embargante requereu ao abrigo do disposto no n° 1 do art° 552 do CPC o depoimento de parte do Executado B… a toda a matéria da base instrutória.
3. O depoimento de parte só pode ter por objecto factos pessoais ou factos de que a depoente deva ter conhecimento e para a confissão de factos que lhe sejam desfavoráveis.
4. A Embargada poderá ter excedido a matéria a abarcar no depoimento de parte requerido.
5. No entanto, o tribunal deveria admitir o depoimento requerido, cingindo tal depoimento às questões que permitam a confissão de um facto desfavorável, em observância aos supra referidos preceitos legais.
6. Nesse sentido, pelo menos, tem de se considerar o depoimento de parte do Executado B…, à matéria dos pontos 6), 8) a 12), 14) da base instrutória.
7. Ao decidir de forma contrária violou, entre outras, a tribunal a quo o disposto nos artº nº 1 do artº 552 e nº 1 do artº 554 ambos do CPC».
Não se mostra oferecida qualquer contra-alegação.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
A questão decidenda consiste em saber se foi correcto o indeferimento do depoimento de parte do executado/embargado, requerido pela embargante, por esta se ter limitado a indicar que esse depoimento devia recair sobre “toda a matéria da base instrutória”.

III – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Os factos a atender para o conhecimento do presente recurso são os que resultam do relatório acima elaborado, para o qual se remete.

B) O DIREITO
O depoimento de parte é o meio processual destinado a obter a prova por confissão judicial (artigos 352.º e 356.º do Código Civil), mas esse depoimento apenas tem valor confessório se tiver por objecto o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, caso em que faz prova plena em relação aos factos admitidos a favor da parte contrária.
Se esse reconhecimento dos factos desfavoráveis não puder valer como confissão – v.g. por falta de capacidade ou de legitimação do depoente –, o tribunal avaliará livremente, nos termos do artigo 361.º do Código Civil, o depoimento como elemento probatório. Não sendo os factos reconhecidos desfavoráveis ao depoente o seu depoimento não tem valor confessório.
Sendo certo que o depoimento de parte é um meio processual destinado a provocar a confissão judicial, mostra-se ultrapassada a concepção restrita de tal depoimento vocacionada exclusivamente àquela obtenção, já que o mesmo tem um campo de aplicação muito mais vasto.
O Juiz no depoimento de parte não está espartilhado pelo escopo da confissão, podendo ali colher alguns elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”[1].
A confissão e o depoimento de parte são, pois, realidades jurídicas distintas, sendo este mais abrangente do que aquela, por ser um meio de prova admissível mesmo relativamente a factos que não sejam desfavoráveis aos depoentes, caso em que ficará sujeito à livre apreciação do tribunal[2].
Efectivamente, o depoimento pode incidir sobre todos os factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, desde que não sejam criminosos ou torpes, incluídos na base instrutória - arts. 552º e 554º do CPC[3].
Esse depoimento pode ou não conduzir à confissão - art. 553º, n.º2, do CPC e 352º e 361º do CC[4].
Estas breves considerações, sem resolverem a questão decidenda, mostram-nos o caminho a seguir para a sua resolução.
O artigo 552º, n.º 2, do CPC determina que, quando o depoimento de parte é requerido por alguma das partes, deve esta indicar logo, de forma discriminada, os factos sobre que há-de recair.
Sabido que o efeito normal da não observância dum ónus processual é a preclusão, não sendo indicados os factos quando se requer o depoimento de parte, não pode mais a indicação ser feita e a consequência é que, sem prejuízo da iniciativa oficiosa (n.º 1 do art. 552.º), o depoimento não poderá ter lugar.
Deve entender-se, porém, que no esquema do Código saído da reforma de 1995-1996, “o juiz deve ainda convidar a parte a fazer a indicação que não tenha feito no requerimento de prova”, sendo este entendimento o preferível, sabido que “para a prossecução da verdade material, foram conferidos ao juiz maiores poderes de zelar pelo aproveitamento dos actos das partes que apresentem deficiências[5].
A Mm.ª Juíza a quo, apercebendo-se que no requerimento inicial havia sido requerido o depoimento de parte pela embargante/recorrente, convidou aquela para vir indicar a concreta matéria controvertida que pretendia que tal depoimento visasse, o que fez correctamente, tendo em conta o que acima se expôs.
Sucedeu, porém, que a embargante veio dizer que pretendia o depoimento do executado “a toda a matéria da base instrutória”, o que, segundo o entendimento acolhido na decisão recorrida, “resulta inadmissível porquanto a embargante não especifica a matéria, sendo que, naturalmente e nos moldes preditos, não é processualmente admissível o depoimento de parte do embargado a toda a matéria controvertida”.
Parece-nos, salvo o devido respeito, que não se decidiu bem.
Além de não ser exacto que a embargante tenha indicado o executado a depor a toda a matéria controvertida, mas sim a toda a matéria da base instrutória, o que não é exactamente a mesma coisa - se bem que a matéria controvertida deva figurar toda na base instrutória -, parece-nos que se podem considerar suficientemente discriminados os factos sobre os quais há-de recair o depoimento de parte requerido, ou seja, todos os factos integrantes dos vários pontos da base instrutória.
Na verdade, se a embargante tivesse indicado que pretendia o depoimento de parte do executado à matéria dos pontos 1 a 24 da base instrutória, não suscitaria qualquer dúvida que a mesma queria que tal depoimento incidisse sobre toda a matéria da base instrutória, pelo que não se vislumbram razões de fundo para não se considerar cumprido o ónus a cargo da embargante no caso concreto.
Na verdade, “a imposição da indicação discriminada dos factos sobre os quais o depoimento há-de recair não impede que seja pedida a sua prestação sobre todos os factos incluídos na base instrutória”[6].
Coisa diferente é saber se o requerido depoimento de parte do executado pode ou não incidir sobre todos os factos incluídos na base instrutória, sabendo-se que o depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento (art. 554.º, n.º 1).
Não estão seguramente neste caso os factos vertidos sob os pontos 17 a 24 da base instrutória, os quais respeitam a factos pessoais da embargante (cfr. 14 e verso), pelo que sobre os mesmos não pode recair o depoimento de parte.
Ademais, foi já admitido o depoimento de parte do executado à matéria constante dos pontos 1 a 16 da base instrutória, a requerimento da exequente/embargada Maria Odete, estando a questão resolvida de facto, pelo que bem podia ter-se evitado a interposição do presente recurso, até porque a recorrente, como decorre das conclusões, pugna pela admissão do depoimento de parte do executado, “pelo menos aos factos constantes dos pontos 6), 8) a 12 e 14) da base instrutória”, quando é certo que o executado foi já admitido a depor aos pontos 1) a 16) da referida base (cfr. o despacho transcrito no relatório).
Seja como for, procedem as conclusões da recorrente no sentido de ser admitido o depoimento de parte, mas apenas com a extensão assinalada.

Sumário:
A imposição da indicação discriminada dos factos sobre os quais há-de recair o depoimento de parte não impede que seja pedida a sua prestação sobre todos os factos incluídos na base instrutória.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar procedente a apelação e, nessa conformidade, revogar o despacho recorrido, admitindo-se o depoimento de parte do executado, requerido pela embargante, à matéria dos pontos 1) a 16) da base instrutória.
Sem custas.
Guimarães, 26 de Setembro de 2013
Manuel Bargado
Helena Melo
Amílcar Andrade
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[1] Ac. do STJ de 16.03.2011 (Távora Vítor), proc. 237/04.3TCGMR.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 02.10.2003 (Ferreira Girão), proc. 03B1909, in www.dgsi.pt e Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 573.
[3] Redacção anterior à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o novo Código de Processo Civil, que é a aqui aplicável, bem como os demais artigos do CPC que venham a ser citados sem menção de origem.
[4] Ac. RL de 31.05.2011, proc. 2030/09.8TBCLD-B.L1-1, in www.dgsi.pt.
[5] Lebre de Freitas - Montalvão Machado – Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, p. 500.
[6] Lebre de Freitas……, ob. e loc. cit.. No mesmo sentido, vd. o Ac. do STJ de 11.02.1988 (Joaquim Gonçalves), proc. 075962, cujo sumário está disponível in www.dgsi.pt. e da RP de 11.12.86 (Sampaio da Nóvoa), CJ, 1986, V, p. 241. Contra: Alberto dos Reis, Comentário ao CPC , IV, pp. 132 e ss.. No Ac. da RE de 21.02.2008 (Mário Serrano), proc. 2647/07-2, entendeu-se que não se poderia interpretar o requerimento de depoimento de parte formulado pelas agravantes (em que se omite qualquer discriminação de factos sobre que depor) como reportado a toda a matéria incluída na base instrutória, na medida em que essa matéria abrange vários factos a que os depoentes nunca poderiam ser inquiridos, pelo que sempre seria de exigir a discriminação imposta pelo art. 552º, nº 2.