Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1615/13.2TBBRG.G1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
HOSPITAL
NEGLIGÊNCIA
MÉDICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: É materialmente competente o tribunal judicial para conhecer de uma ação em que é alegada negligência médica ocorrida em hospital público em data posterior à sua transmissão para uma sociedade anónima de direito privado que o passou a gerir em vez do Estado e assumiu a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, e em que é formulado o correspondente pedido de reparação em dinheiro e em espécie contra a sociedade gestora, a médica ao serviço desta, clínica privada e médicos em serviço nesta e seguradora (esta no âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

Apelante: J… (autor)
Apelados: Hospital de Braga - Escala Braga Sociedade Gestora do Estabelecimento, SA e outros (réus).

Tribunal Judicial de Braga – Vara de Competência Mista

1. O A. intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinária contra:
1.º - HOSPITAL DE BRAGA – Escala Braga Sociedade Gestora do Estabelecimento S.A;
2.ª - Dr.ª M… com domicílio profissional no Hospital de Braga;
3.º - CASA DE SAÚDE…, S.A.;
4.º - Dr. N…, com domicílio profissional na Casa de Saúde…;
5.º - Dr. J…, com domicílio profissional na Casa de Saúde…; e
6.º - A…, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia global de € 145.311,44 (cento e quarenta e cinco mil e trezentos e onze euros e quarenta e quatro cêntimos), a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação até ao seu efetivo e integral pagamento, para além das custas judiciais e procuradoria condigna, assim como a assegurar-lhe o acesso aos necessários tratamentos de fisioterapia a realizar, pelo menos, três vezes por ano, ou o número de vezes que for determinado na competente prova pericial realizada para o efeito, bem como, a suportar todas as despesas e custos daí advenientes.
O A. alegou que recorreu aos serviços médicos dos réus, após um acidente por si sofrido, na sequência do qual foi transportado para os serviços de urgência da 1.ª R., onde foi submetido a exames de diagnóstico, análises e a medicação.
Invocou, ainda, a existência de negligência por parte, nomeadamente, das 1.ª e 2.ª RR. no tratamento hospitalar das lesões por si sofridas, dado que não foi submetido a RMN com vista a possibilitar a pronta deteção da gravidade das lesões que de padecia, o que lhe determinou sequelas por demora no diagnóstico e falta de tratamento.
Todos os réus apresentaram as suas contestações, tendo a 2.ª. R. deduzido a fls. 372 e segs. a exceção dilatória de incompetência material do tribunal, por entender que a presente ação emerge de responsabilidade civil extracontratual resultante de prestação de cuidados de saúde em estabelecimento público, o que determina a competência para a sua apreciação dos Tribunais Administrativos.
O A. respondeu a esta exceção, invocando que a 1ª. R. é uma entidade de natureza privada, cabendo-lhe o exercício e gestão da atividade de prestação de saúde desde 1 de setembro de 2009.
Notificados expressamente para se pronunciarem sobre a aludida exceção, nenhum dos restantes réus a sufragou.
Em 25.10.2013 foi proferido despacho nestes autos que decidiu julgar verificada a exceção dilatória de incompetência material e, em consequência, absolver os réus da instância.

2. Inconformado, o A. veio recorrer daquele despacho, e apresentou as seguintes conclusões:
(…)

3. Não foi apresentada resposta.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações formuladas pelo apelante, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir resume-se a apurar se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para conhecer do pedido deduzido contra os réus, ou se pelo menos é competente para os 3.º a 6.º réus.

II - FUNDAMENTAÇÃO

A1) Os factos com suporte nos autos a considerar são os que constam do relatório, despacho e alegações já acima expostos.

A2) APRECIAÇÃO

O tribunal recorrido decidiu que era incompetente em razão da matéria para conhecer da pretensão do A. e, em consequência, absolveu todos os RR. da instância, com o fundamento, em essência, e na parte em que não remete para os acórdãos do Tribunal de Conflitos, que “os atos levados a cabo pela segunda R., e especificamente os tratamentos de que foi objeto o requerente, para além do caráter técnico que os carateriza, são atos que devem considerar-se, para o presente efeito, de gestão pública, porque se regulam, também, por normas de direito administrativo”.
O A. discorda e entende que os atos não estão materialmente no âmbito da jurisdição administrativa.
O princípio geral é o de que os tribunais comuns têm competência para conhecer das matérias que não estejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art.º 26.º n.º 1 da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto (LOFTJ).
A competência do tribunal é determinada de acordo com o pedido formulado pelo autor e respetivos fundamentos que invoca na petição inicial. A competência material e a jurisdição competente terão que ser analisadas à luz da pretensão dos autores (1).
No caso dos autos, o tribunal recorrido decidiu que compete à jurisdição administrativa apreciar a pretensão do autor, nos termos do art.º 4.º n.º 1, alíneas al. a) e h), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro (e sucessivas atualizações).
Prescreve o art.º 4.º n.º 1, acabado de citar, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação, entre outros que ao caso não interessa, de litígios que tenham, nomeadamente, por objeto:
Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal (alínea a);
Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos (alínea d);
Questões relativas à validade de atos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (alínea e);
Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público (alínea f);
Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa (alínea g);
Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos (alínea h); e
Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público (alínea i).
Face aos factos alegados pelo A. e aos pedidos que formula, verificamos que a atividade dos 3.º a 6.º réus não se enquadra em nenhuma das normas jurídicas que antecedem. Os 3.º a 5.º réus atuaram como pessoas singulares e coletiva de direito privado, no âmbito da sua atividade. A 6.ª R. é uma seguradora que é demandada no âmbito do contrato de seguro que celebrou e que se estendeu à 3.ª ré.
Assim, o Tribunal Judicial de Braga, no caso a Vara de Competência Mista, tem competência em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados pelo A. contra os 3.º a 6.º RR..
Em relação às 1.ª e 2.ª RR., verificamos que a primeira é uma sociedade anónima de direito privado, a quem foi transmitido o estabelecimento Hospital de S. Marcos de Braga, pelo preço de € 15 milhões, para o gerir, em vez do Estado, o qual, fica apenas com o poder de fiscalização, tendo a 1.ª R. assumido a responsabilidade civil perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos seus colaboradores enquanto tal, nos termos do contrato que está junto aos autos, nomeadamente, cláusulas 5.ª, 14.ª, n.ºs 2 e 5, 56.ª, 57.ª, 111.ª e 142.ª.
O A. alega que a 2.ª R. foi negligente quanto aos cuidados médicos e ao empreendimento terapêutico (2) que lhe ministrou de acordo com as regras da ciência, donde resultaram danos na sua saúde e por isso a demanda. Está ainda alegado que foi contratada pela 1.ª R..
Ponderando o alegado pelo A. e os pedidos que formula, a atuação das 1.ª e 2.ª RR. não se enquadram no âmbito da jurisdição administrativa.
Embora o hospital seja um estabelecimento público, no sentido de que pertence ao Estado e são prestados cuidados de saúde às pessoas que aí se dirigem e deles carecem, é a 1.ª R. a responsável pelo regular e bom funcionamento do serviço de saúde a prestar, nos termos do contrato que celebrou com aquele. Não se trata de uma concessão de domínio público, mas da transmissão do estabelecimento hospitalar. Não estamos perante a atuação do Estado, mas de uma entidade privada, e é esta a responsável pelos danos que causar a terceiros no âmbito da atividade prestada no estabelecimento que gere, tal como resulta bem claro do contrato que está junto aos autos.
Assim, nos termos do art.º 26.º n.º 1 da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto (LOFTJ), compete aos tribunais judiciais apreciar a matéria em discussão nesta ação e conhecer do seu mérito.
Nestes termos, concede-se a apelação, revoga-se o despacho recorrido e declara-se a competência material da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga, para que o processo prossiga aí os termos ulteriores.

Sumário: É materialmente competente o tribunal judicial para conhecer de uma ação em que é alegada negligência médica ocorrida em hospital público em data posterior à sua transmissão para uma sociedade anónima de direito privado que o passou a gerir em vez do Estado e assumiu a responsabilidade pelos danos causados a terceiros, e em que é formulado o correspondente pedido de reparação em dinheiro e em espécie contra a sociedade gestora, a médica ao serviço desta, clínica privada e médicos em serviço nesta e seguradora (esta no âmbito de um contrato de seguro de responsabilidade civil).

III - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível desta relação em revogar o despacho recorrido e declarar a competência material da Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga para que o processo prossiga aí os termos ulteriores.
Sem custas.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).
Guimarães, 06 de fevereiro de 2014.
Moisés Silva (Relator)
Jorge Teixeira
Manuel Bargado
(1) Ac. RG, de 04.04.2013, processo n.º 110/12.1TBVVD.G1, relatado pelo ora relator e em que interveio o ora aqui 2.º adjunto.
(2) Rodrigues, Álvaro, O Artigo 150.º n.º 1 do Código Penal, Revista Julgar, n.º 21, Coimbra Editora, setembro/dezembro de 2013, pp. 11 a 26, onde aborda o tema do tratamento médico.