Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3720/13.6TBBCL.G1
Relator: MANUEL BARGADO
Descritores: INVENTÁRIO
HOMOLOGAÇÃO
PARTILHA
CASO JULGADO MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I – A sentença homologatória da partilha em processo de inventário forma caso julgado material quanto às questões condicionantes ou modeladoras da forma de efectivação dessa partilha, relativamente às quais não tenha ocorrido remessa dos interessados para os meios comuns.
II – Deste modo, se a partilha, expressa no mapa respectivo homologado por sentença, assentou no pressuposto de que uma determinada parcela era comum ao prédio da autora e ao prédio dos réus, não pode em acção posterior voltar a discutir-se se aquela parcela era ou não comum.
III – Tanto mais quando no processo de inventário foi dada oportunidade aos interessados de se pronunciarem sobre essa questão.
Decisão Texto Integral: Acordam nesta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO
AA… instaurou a presente acção com processo comum contra BBB…e CC…, pedindo que os réus sejam condenados:
a) a reconhecer que autora é legítima proprietária do prédio rústico composto por terreno de pastagens e videiras em ramada denominado Leiras de Montezelo situado no lugar de Montezelo, freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos com o nº …;
b) a reconhecer que a área de acesso quer ao prédio rústico da autora quer ao prédio urbano dos réus é comum;
c) a derrubar no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida, o muro que construíram dentro do prédio rústico da autora;
d) a destruir, no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença que vier a ser proferida, o pavimento em cimento efectuado dentro do prédio rústico da autora;
e) a remover o entulho resultante do derrube do muro bem como da destruição mencionados nas alíneas precedentes;
f) a abster-se de quaisquer actos ofensivos do direito de propriedade da autora relativamente ao seu prédio acima identificado;
g) a pagar à autora a quantia de € 5.000,00 acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ser dona do prédio supra identificado em a), por o ter adquirido no inventário que correu seus termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos sob o nº 604/04.2TBBCL, por óbito do pai da autora, Justino…, e outros factos conducentes à aquisição do mesmo por usucapião, sucedendo que a irmã e o cunhado, aqui réus, em virtude do aludido inventário, adquiriram uma parcela de terreno onde edificaram a sua habitação. Porém, os mesmos apropriaram-se de uma parcela de terreno que constituía a entrada para ambos os prédios, da autora e dos réus, com cerca de 22,50 m2, tendo construído um muro que arrebatou essa parcela de terreno.
Os réus contestaram, contrapondo que a parcela em discussão não é comum, fazendo antes parte integrante do seu prédio, dispondo a autora de uma outra entrada para o seu prédio a sul, a qual além disso confronta com tal prédio em toda a sua extensão nascente com o caminho público.
Terminam pedindo que a acção seja julgada improcedente e a autora condenada como litigante de má-fé.
Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido saneador tabelar, definiu-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e em consequência, condeno os RR, a reconhecerem que a A. é legítima proprietária do prédio rústico composto por terreno de pastagens e videiras em ramada denominado Leiras de Montezelo situado no lugar de Montezelo, freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos com o nº …; a reconhecer que a área de acesso quer ao prédio rústico da A. quer ao prédio urbano dos RR é comum. Mais condeno os RR. a derrubarem no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado desta sentença, o muro que construíram encostado ao prédio rústico da A. e a removerem o entulho resultante do derrube do muro. Finalmente, condeno os RR. a abster-se de quaisquer actos ofensivos do direito de propriedade da A. relativamente ao prédio que lhe foi adjudicado no inventário e compropriedade relativamente ao trato de terreno de acesso aos prédios, que é uma decorrência do facto de se ter considerado o mesma comum aos dois prédios.
No mais improcede a acção, bem como os pedidos de condenação de ambas as partes como litigante de má-fé.»
Inconformados, os réus apelaram do assim decidido, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
«A) Salvo o devido e merecido respeito, que é muito, mal andou o tribunal “a quo” ao reconhecer que a área de acesso ao prédio dos RR., prédio esse inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos é de comum acesso ao prédio da Autora, prédio esse inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos.
B) Fundamenta o tribunal que a compropriedade da parcela de acesso comum havia sido decidida no processo de inventário n.º 604/04.2TBBCL, que correu termos pelo 3º juízo Cível do tribunal Judicial de Barcelos por óbito do pai da Autora e da Ré mulher, formando-se quanto a tal decisão caso julgado.
C) Salvo o devido e merecido respeito pela posição sufragada na douta sentença ora em crise, in casu, a decisão proferida nos autos de inventário/partilha não conheceu do mérito ou demérito da compropriedade da parcela de terreno supostamente de acesso comum aos prédios dos RR. e da A.
D) No referido processo de inventário não existiu qualquer reclamação á relação de bens apresentada pela cabeça de casal, sendo apenas pedidos sucessivos esclarecimentos pela interessada Clara, aqui A., ao Sr. perito nomeado no processo, quanto às áreas das verbas objecto de partilha.
E) Do mesmo passo que não existiu qualquer rectificação á relação de bens apresentada inicialmente, nem tal parcela foi objecto de apreciação em sede de conferência de interessados, aliás, os prédios adjudicados à A. e à R. mulher foram licitados sem qualquer parcela de acesso comum.
F) Ficou amplamente provado que a A. procedeu ao averbamento e registo do prédio que lhe foi adjudicado no processo de partilha por morte de seu pai na competente conservatória do registo predial com a seguinte composição: prédio rústico com a área de 322m2, confrontando de Norte com a R. mulher; sul, nascente e poente com caminho, não constando em tal registo a parcela de acesso comum.
G) Não consta porque jamais o tribunal onde correu o inventário/partilha decidiu que a parcela de acesso ao prédio dos RR. é de comum acesso ao prédio da A .. Pois o processo de inventário serve para por termo à comunhão hereditária e efectuar as correspondentes partilhas e não para discutir questões de propriedade como a dos presentes autos, em virtude da sua complexidade e necessidade de brevidade da decisão da questão.
Tal medida implica ou podia implicar alguma complexidade probatória, motivo pelo qual podia a respectiva decisão comprometer a garantia das partes. Até porque a A. não deduziu qualquer reclamação á relação de bens no processo de inventário, onde aí sim, o contraditório se encontraria assegurado.
H) Não pode colher ainda a argumentação do tribunal ao fundamentar a sua decisão no parecer dado pelo Sr. Perito no processo de inventário, pois a função do mesmo num processo judicial é de emitir pareceres técnicos e não de decidir, sendo que tal função cabe ao juiz, e tal não aconteceu no referido processo de inventário, não foi dada qualquer decisão de mérito quanto à compropriedade da parcela supostamente de acesso comum.
I) Pelo que, não andou bem o Tribunal “a quo” ao decidir-se pelo caso julgado entre a presente acção e o processo de inventário para partilha de bens por morte do pai da A. e da R. mulher, quanto á parcela de acesso comum, tendo assim, a sentença apelada violado, entre outros, o disposto nos artigos 236º, n.º 1 do C. Civil, 576º n.º 1 577º i), 580º, 581º, 619º, 620º e 621º
J) Acresce que da matéria de facto apurada, ponto 35 dos factos provados, resulta de forma clara e inequívoca que o parecer técnico do Sr. Perito nomeado no processo de inventário foi dado com base numa errada realidade do local, desconhecimento da entrada a sul no prédio da Autora.
K) Face á prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente dos depoimentos das testemunhas dos RR., não podem os RR./Apelantes concordar com a fundamentação do tribunal “a quo” quando considera que mesmo tendo sido dado como provada tal factualidade de que o prédio da A. tinha uma entrada a sul, a mesma era precária.
L) Aliás, ficou provado que os RR. abriram a rampa de acesso para o seu prédio quando iniciaram a construção da sua habitação, e que anteriormente o acesso ao prédio mãe era feito pela entrada a sul, entrada essa que continua a servir o prédio da Autora e que a mesma se encontra em perfeitas condições para sobre si fazer circular tractores e maquinas. A A. no decorrer dos presentes autos mandou uma máquina de grande porte limpar as silvas e ervas do terreno, sendo que foi por ai que a mesma entrou e saiu.
M) Pelo que padece a sentença apelada de vício porquanto procede a um incorrecto julgamento da matéria de facto, ao mesmo tempo que não extrai de forma correcta as consequências jurídicas da matéria de facto apurada no decurso da audiência de julgamento.
N) E mesmo que ficasse provado o contrário, não pode o dono do prédio onerar o prédio vizinho pelo simples facto de o seu prédio não ter boas condições de acesso. Pois estamos a falar de um prédio que para além da entrada a sul, confronta em toda a sua extensão nascente com caminho público.
O) Consigna-se que a dita parcela de acesso comum, não pode ser autonomizada, é indivisível, não tem artigo matricial independente e os prédios da A. e dos RR., têm natureza diversa. In casu, estamos perante uma coisa imóvel, que não se enquadra na classificação estipulada no artigo 204º do C. Civil, pois a suposta parcela de acesso comum inclui natureza rústica e urbana, o que não se concebe.
P) Verifica-se assim que face á matéria dada como provada e face á prova produzida teria o tribunal “a quo” que dar como provado que a entrada do prédio da A. era pela entrada a sul do prédio da mesma, sendo que a mesma não é nem nunca foi precária, declarando improcedente a acção na sua totalidade.
Q) A Autora alegou que os RR. se apropriaram de parte da sua propriedade relativa à parcela que alegam ser comum e que os mesmos construíram um muro que os impedia de acederem ao seu prédio (vide art. 24º a 27º da Petição Inicial).
R) Da prova produzida resultou assente coisa bem diversa, mais concretamente que a dita parcela de acesso comum mantinha-se com as mesmas características desde a abertura da mesma aquando da construção da habitação dos RR., apenas se tendo alterado quanto á sua pavimentação (cimento), que à data do inventário já existia. Do mesmo passo que se provou que a entrada do prédio da A. era a sul do seu prédio. (ponto 34 e 35 dos factos provados).
5) Salvo o devido e merecido respeito mal andou o tribunal “a quo” ao não condenar a A. por litigância de má fé, violando assim os artigos 542º e seguintes do Cód. Proc. Civil.»
Foram apresentadas contra-alegações, tendo a autora/recorrida pugnado pela manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se a sentença recorrida devia ter conhecido do mérito da alegada área comum de acesso ao prédio da autora e ao prédio dos réus, por não se verificar in casu, relativamente a essa situação, a excepção do caso julgado.
- se a autora deve ser condenada por litigância de má fé.

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A A. é dona e legítima proprietária do prédio rústico composto por terreno de pastagens e videiras em ramada denominado Leiras de Montezelo situado no lugar de Montezelo, freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos com o nº ….
2. Adquiriu-o no inventário que correu seus termos pelo 3º Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 604/04.2TBBCL, por óbito do pai da A., Justino
3. Os RR. são, por sua vez, donos e legítimos proprietários do prédio urbano constituído por casa de rés-do-chão situado no lugar de Sobreiros, freguesia de Tregosa, concelho de Barcelos e inscrito na respectiva matriz sob o artigo … .
4. O referido prédio urbano foi registado provisoriamente, a favor da R. na referida Conservatória com o nº … tendo, entretanto, quer a inscrição da aquisição quer a do ónus de eventual redução da doação caducado.
5. A A. e a R. são irmãs.
6. A parcela de terreno sobre a qual os RR. implantaram o prédio urbano identificado no artigo 3º foi adjudicada à R., no inventário judicial.
7. Não obstante constar da escritura de doação celebrada no dia 30 de Julho de 1993, no primeiro Cartório Notarial de Barcelos, que os pais da A. e da R doaram a esta, a raiz de um prédio urbano, o que foi efectivamente doado foi a parcela de terreno sobre a qual os RR. implantaram o prédio urbano tendo sido declarado na referida escritura de doação, que o prédio urbano “foi implantado em parte no prédio rústico situado no mesmo lugar e freguesia, inscrito na matriz predial rústica, sob o artigo …, proveniente do antigo artigo …, com a área de mil metros quadrados, a confrontar do norte nascente e poente com caminho e do sul com Gorete Gonçalves Pires, e não descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho”.
8. Foi doado à R. pelos seus pais, uma parcela de terreno com 500 m2 a destacar de um prédio rústico cuja área total era de 1000 m2.
9. Com a aludida doação, o prédio rústico passou a ter a área de 500 m2.
10. No referido inventário judicial, a fim de ser fixada a área correcta quer do prédio rústico que veio a ser adjudicado à A. bem como do prédio urbano dos RR., foi requerido por aquela que a cabeça-de-casal juntasse aos autos, um levantamento topográfico de modo a permitir ao senhor perito indicar a área para cada um dos prédios.
11. Após a junção da planta topográfica, a A. veio requerer que o senhor perito fosse notificado do referido documento, devendo este indicar: a) “se o espaço em vazio existente entre o prédio urbano e o prédio rústico corresponde a uma entrada para acesso àquele prédio”; b) “se a área total do prédio urbano demarcado na planta apresentada sob o documento nº 2 corresponde a 518 m2 ou a 654 m2 (incluindo a eventual entrada); c) “se a área do prédio rústico demarcado no documento nº 1 é de 324 m2 ou de 365 m2”.
12. No dia 10 de Março de 2008, o senhor perito veio responder o seguinte: a) “Da análise dos levantamentos topográficos, referentes aos prédios n.ºs 2 e 5, verifica-se que de facto existe um espaço vazio entre os dois prédios representando uma área de terreno, que não foi considerada para nenhum dos prédios aqui referidos. Do conhecimento do local poderá constatar-se que tanto a entrada para o prédio urbano, como para o prédio rústico é efectuada por essa área que, sem outra definição, considera-se uma entrada comum, visto que não se visualiza mais nenhuma entrada para esses prédios”; b) “a área do prédio urbano demarcada no doc. n.º 2 é de 528 m2, sem contabilizar a eventual entrada. Para que esta seja contabilizada, torna-se necessário delimitá-la, por todos os lados, o que não acontece na representação gráfica apresentada, por outro lado esta eventual entrada apresenta-se de formas diferentes no doc. n.º 1 e no documento n.º 2. A área aqui apresentada é resultado da digitalização do documento fornecido em papel pelo tribunal, pelo que se ressalva a possibilidade de erro, numa tolerância de mais ou menos 10 m2” e c) “A área do prédio rústico demarcada no doc. n.º 1 é de 332 m2. Da mesma forma que na área anterior, esta área é resultado da digitalização do documento fornecido em papel pelo Tribunal, pelo que se ressalva a possibilidade de erro, numa tolerância de mais ou menos 10 m2”.
13. Na sequência desta informação, a A. requereu que fossem entregues ao senhor perito, as plantas topográficas, a fim de serem atribuídas as áreas correctas.
14. Uma vez na posse das plantas, o senhor perito fixou a área de 322 m2 para o prédio rústico que veio a ser adjudicado à A. e 514,50 m2 para o prédio urbano dos RR tendo declarado que “a área do espaço considerado como acesso é de 22,50m2”.
15. Por considerar que o prédio rústico tinha um outro acesso, a A. requereu ao senhor perito que fosse integrada a “área do espaço considerado como acesso” na área do prédio urbano dos RR.
16. Relativamente à questão suscitada, o senhor perito esclareceu que “em nova visita ao local, verifica-se que a parcela de terreno com a área de 22,50 m2, revelada no relatório anterior, mantém as características indicadas, ou seja, continua a ser considerada como acesso comum às duas verbas n.º 2 e n.º 5, como se poderá verificar nas fotos abaixo. Como se pode ver as duas verbas apresentam entradas por esse mesmo espaço tornando-o comum a elas. Pesquisando no local, não foi encontrada outra entrada para a verba n.º 2, apesar de a sul (não a norte como, por lapso, se escreve no relatório) da verba se encontrar de facto outro caminho, mas que não confronta directamente, existindo uma vala com uma largura demasiado expressiva, que para ser ultrapassada seria necessário colocar um passadiço, como se vê na foto.
17. Após o trânsito em julgado da sentença que homologou a partilha, a A. requereu junto do Serviço de Finanças de Barcelos, a rectificação da área do prédio rústico que lhe foi adjudicado uma vez que aí constava a área de 1000 m2.
18. Posteriormente, requereu, na Conservatória do Registo Predial, o registo a seu favor.
19. Quando pretendeu proceder à vedação do prédio rústico cuja propriedade lhe pertence, a A. deparou com um muro em blocos de várias fiadas e com um comprimento de cerca de 7 m.
20. Muro que se encontra ligado a um outro muro de várias fiadas e com cerca de 5 m de comprimento o qual se encontra na estrema do prédio dos RR.
21. A A. e os anteriores possuidores do prédio rústico, há mais de 20, 30, 40 anos, que vêm exercendo a sua posse sobre o identificado imóvel à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
22. Sem oposição de ninguém.
23. Com o conhecimento de todos.
24. Sem qualquer interrupção.
25. Na convicção de que não estão a ofender direitos de terceiros.
26. Os RR. sabem que a A. é emigrante em França.
27. Os pais da R. Noémia doaram a esta a nua propriedade de um prédio rústico a destacar do artigo …/Tregosa, por escritura de doação de trinta de Julho de 1993 no 1º Cartório Notarial de Barcelos, tendo os RR construído, em data anterior à doação, nesse terreno, a expensas suas, um prédio urbano.
28. Desde 30 de Julho de 1993, os RR. sem interrupção, vêm retirando do prédio todas as vantagens, cultivando-o, habitando-o de modo permanente, detendo-o, usando-o, usufruindo-o materialmente, pagando os inerentes encargos, despesas, contribuições e impostos que lhe respeitam, sempre com a intenção de o fazer seu.
29. Actos que os RR. vem praticando à vista de todos, nomeadamente vizinhos, sem oposição de quem quer que seja, com conhecimento de todas as pessoas nomeadamente da A., e na convicção de exercer direito próprio e de não lesar direitos de outrem e sem violência.
30. Desde sempre, que têm sido os RR., quem exclusivamente fazem obras de restauro, conservação e melhoramentos no prédio, pagando os respectivos custos, na convicção de que o fazem em coisa sua.
31. Sendo também os RR, desde sempre, quem cultivam o quintal, comprando as sementes, os adubos, quem semeiam e plantam, quem colhe e faz seus os frutos do que tal terra produz.
32. Os RR. procederam à pavimentação de uma rampa em cimento, de acesso à sua habitação, há 7 anos atrás, altura em que o seu filho casou.
33. Rampa essa que anteriormente era em terra batida, pela qual os RR, desde a construção da sua habitação acediam à mesma.
34. Os RR. não alargaram a rampa de acesso, apenas se limitaram a cimentar a mesma, com o esclarecimento que a rampa já estava cimentada no decurso do processo de inventário.
35. O prédio da A. possui uma entrada, a sul que se situa sobre a vala mencionada pelo Sr. perito no art. 16º supra e que o mesmo refere como sendo “uma vala com uma largura demasiado expressiva”, com o esclarecimento que a mesma assenta sobre uma aduela de cimento por onde escorrem águas vindas do monte e da chuva e com uma largura de cerca de 2,5 metros, e confronta em toda a sua extensão nascente com caminho público.
36. O Sr. Perito, no âmbito do Processo de inventário, atribui aos prédios da A. a área de 322 m2 e dos RR. 514,50, mais referindo que a parcela de 22,50 m2 era de acesso comum aos prédios da A. e dos RR.

E foram dados como não provados os factos a seguir indicados:
- que os RR sem o conhecimento e sem o consentimento da autora tenham alargado a parcela de terreno de acesso comum, tendo cimentado o solo;
- que a área de 22,50 m2 que o senhor perito considerou de acesso quer ao prédio rústico da autora quer ao prédio dos réus tem actualmente a área de cerca de 52,50 m2.
- que os cerca de 30 m2 que excedem os 22,50 m2 pertencem à autora por serem parte integrante do seu prédio rústico;
- que os réus tenham tirado o acesso ao seu prédio pela autora;
- que a autora se veja impedida de dar o uso ao prédio, nomeadamente, de plantar castanheiros e outro tipo de árvores, bem como, de o vedar de modo a impedir a entrada dos réus e de outros intrusos.
- que em consequência dos actos praticados pelos réus, a autora se sinta revoltada e ofendida, vivendo momentos de intensa ansiedade, nervosismo, preocupação, desespero, cansaço e tristeza tendo tal vindo a reflectir-se no seu meio familiar.
- que só agora, devido à presente acção, solicitaram os serviços de um topógrafo, para que procedesse à medição do seu prédio, assim como da rampa de acesso e tivessem concluído que o seu prédio tem a área de 605,00 m2, nele se englobando a área de 38,00 m2 da rampa de acesso e o prédio da autora tem a área de 354,00 m2.
- que nos actos de posse mencionados nos arts 21º e ss e 28º e ss se integrasse a parcela em discussão nos autos.

O DIREITO
Como resulta do relatório deste acórdão, dir-se-á, em traços gerais, que o tribunal a quo considerou que o caso trazido à presente acção se reportava a questão que incidentalmente havia já sido resolvida em processo de inventário, estando ela – a questão – relacionada com a existência de uma área comum de acesso ao prédio rústico da autora e ao prédio urbano dos réus.
Concluindo estarmos perante a excepção do caso julgado, decidiu a Mm.ª Juíza a quo que aquela parcela de terreno se deve ter como comum à autora e aos réus para acesso aos respectivos prédios, com a aplicação do regime da compropriedade/composse.
Contrariamente, sustentam os recorrentes que «jamais o tribunal onde correu o inventário/partilha decidiu que a parcela de acesso ao prédio dos RR. é de comum acesso ao prédio da A .. Pois o processo de inventário serve para por termo à comunhão hereditária e efectuar as correspondentes partilhas e não para discutir questões de propriedade como a dos presentes autos, em virtude da sua complexidade e necessidade de brevidade da decisão da questão».
Até porque, acrescentam, «tal medida implica ou podia implicar alguma complexidade probatória, motivo pelo qual podia a respectiva decisão comprometer a garantia das partes. Até porque a A. não deduziu qualquer reclamação á relação de bens no processo de inventário, onde aí sim, o contraditório se encontraria assegurado» - cfr. conclusão G).
A questão que se coloca prende-se, pois, com o alcance temático do caso julgado formado pela sentença homologatória da partilha proferida no processo de inventário, importando determinar – porque disso depende a aferição da incidência aqui do caso julgado – se desta decorre o contrário do afirmado na decisão ora impugnada, gerando-se a situação de sobreposição (de conflito) de afirmações sobre o mesmo tema, sejam elas contraditórias ou redundantes, a que a excepção de caso julga obsta[1].
Escreveu-se, a este propósito, na sentença recorrida:
«No identificado processo de inventário e como resulta da factualidade dada como provada, na sequência da avaliação a que se procedeu, foram pedidos esclarecimentos ao Sr. Perito que aos mesmos respondeu e que não vieram a merecer a oposição ou a reclamação por parte dos interessados, tendo-se definido relativamente aos prédios que iriam ser objecto de licitações a configuração dos prédios, no caso o adjudicado à A. e o adjudicado aos RR., com as entradas nele definidas que mereceram a anuência do tribunal quando proferiu a sentença homologatória da partilha, já transitada em julgado.
E registe-se que a integração da referida parcela de terreno no prédio que veio a ser adjudicada aos RR. foi colocada ao Sr. Perito pela própria A. que ademais se referiu à existência de um outro caminho que serviria o prédio que lhe veio a ser adjudicado.
Na verdade, resultou provado que por considerar que o prédio rústico tinha um outro acesso, a A. requereu ao senhor perito que fosse integrada a “área do espaço considerado como acesso” na área do prédio urbano dos RR. Relativamente à questão suscitada, o senhor perito esclareceu que “em nova visita ao local, verifica-se que a parcela de terreno com a área de 22,50 m2, revelada no relatório anterior, mantém as características indicadas, ou seja, continua a ser considerada como acesso comum às duas verbas n.º 2 e n.º 5, como se poderá verificar nas fotos abaixo. Como se pode ver as duas verbas apresentam entradas por esse mesmo espaço tornando-o comum a elas. Pesquisando no local, não foi encontrada outra entrada para a verba n.º 2, apesar de a sul da verba se encontrar de facto outro caminho, mas que não confronta directamente, existindo uma vala com uma largura demasiado expressiva, que para ser ultrapassada seria necessário colocar um passadiço, como se vê na foto.»
É sabido que os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte (art. 421º, nº 1, do CPC).
Ora, diversamente do que afirmam os recorrentes, a prova pericial realizada no processo de inventário na qual o senhor perito fixou a parcela de terreno com a área de 22,50 m2, considerando-a como acesso comum aos dois prédios que vieram a ser adjudicados, um à recorrida e o outro aos recorrentes[2], teve a observância da audiência contraditória não tendo havido oposição por parte dos recorrentes e, ademais, aquela perícia ofereceu às partes todas as garantias que uma perícia a realizar nesta acção poderia oferecer, pelo que não vale aqui apenas como princípio de prova (2ª parte do nº 1 do art. 421º do CPC).
Significa isto, como se escreveu na sentença recorrida, que «a questão que ora se nos coloca foi suscitada no âmbito do processo de inventário, de forma clara e aberta pela aqui A., não tendo os aí interessados deduzido qualquer reparo aos esclarecimentos produzidos pelo Sr. perito, que o Tribunal, como referido viria a aceitar, é manifesto que a posição dos RR., negligenciando a natureza contenciosa do processo de inventário, não podem ver revivificada essa questão, pois podem assim actuando por em causa o caso julgado formado ou, numa forma mais atenuada, a excepção do caso julgado».
Pode, por isso, afirmar-se que a sentença homologatória de partilha se debruçou especificamente sobre a questão central dirimenda que constitui o objecto mediato da presente acção, qual seja a existência de uma área comum de acesso ao prédio rústico da autora e ao prédio urbano dos réus com uma área de 22,5 m2.
Quanto ao caso julgado formado no processo de inventário, relativamente a questões condicionantes ou modeladoras da forma de realização da partilha, nas quais não tenha ocorrido remessa dos interessados para os meios comuns, entendemos abrangidas estas questões condicionantes ou modeladoras pelo efeito de caso julgado gerado nesse inventário, nos termos do artigo 619º, nº 1, do CPC (art. 671º, nº 1, do CPC revogado).
A este respeito, tenha-se presente o entendimento comum na nossa doutrina quanto aos reflexos do caso julgado material formado pela sentença de partilha:
«Na pendência do inventário agitam-se questões e o juiz deve procurar dar-lhes solução sempre que as provas a produzir se compadeçam com a índole do processo, isto é, quando não demandem larga indagação.
Da decisão do juiz resultam efeitos não só para os interessados na herança como também para os intervenientes na solução, salvo se for expressamente ressalvado o direito às acções competentes, entendendo-se que intervieram na solução de uma questão as pessoas que a suscitaram ou sobre ela se pronunciaram, e ainda as que foram ouvidas, embora não tenham dado resposta (CPC, artigo 1397º, nº 2).
Daqui resulta a subsistência de caso julgado no tocante a todas as questões assim discutidas, com os efeitos atribuídos por lei, desde que procurem suscitar-se de novo entre tais intervenientes»[3].
É também esta a jurisprudência conhecida[4].
Assim, importa concluir que a referida parcela de terreno se deve ter como comum à autora e aos réus para acesso aos respectivos prédios, com a aplicação do regime da compropriedade/composse, irrelevando para o caso a existência de uma entrada a sul do prédio da autora, a qual se situa, aliás, sobre uma vala com uma largura demasiado expressiva e para a qual seria necessário colocar um passadiço (cfr. pontos 16 e 35 do elenco dos factos provados).

Da má fé da autora
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” (art. 456º, nº 2, do CPC).
O instituto da litigância de má fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade.
Escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 16.07.2014 (Carlos Gil) [5]:
«A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (art. 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental.
Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida.
(…).
Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.
Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave».
Ora, no caso concreto, é evidente a falta de razão dos recorrentes, tendo a sentença recorrida apreciado de forma correcta o problema ao julgar improcedente «a condenação como litigantes de má fé por banda de ambas as partes, pois as questões/teses colocadas e defendidas assumem contornos de direito e de diferente forma de interpretação dos factos».
Também neste particular não merece censura a sentença recorrida.
Improcedem deste modo todas as conclusões do recurso, o que implica o total inêxito do mesmo e a manutenção da decisão recorrida.

Sumário:
I – A sentença homologatória da partilha em processo de inventário forma caso julgado material quanto às questões condicionantes ou modeladoras da forma de efectivação dessa partilha, relativamente às quais não tenha ocorrido remessa dos interessados para os meios comuns.
II – Deste modo, se a partilha, expressa no mapa respectivo homologado por sentença, assentou no pressuposto de que uma determinada parcela era comum ao prédio da autora e ao prédio dos réus, não pode em acção posterior voltar a discutir-se se aquela parcela era ou não comum.
III – Tanto mais quando no processo de inventário foi dada oportunidade aos interessados de se pronunciarem sobre essa questão.

IV – DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes desta Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a douta sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
*
Guimarães, 12 de Fevereiro de 2015
Manuel Bargado
Helena Gomes de Melo
Heitor Gonçalves
____________________________________
[1] Como refere Miguel Teixeira de Sousa, «[…] o caso julgado produz […] dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na excepção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade do caso julgado. Aquela excepção visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões (ne bis in idem) e impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariarem uma decisão anterior, como a repetirem essa decisão. Em contrapartida, a autoridade de caso julgado garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, pelo que impõe que aqueles tribunais e estes particulares acatem (e, neste sentido, repitam) o que foi decidido anteriormente (quanto, por exemplo, a uma questão que é prejudicial para o conhecimento de uma outra questão)” - Preclusão e “contrário contraditório”, Cadernos de Direito Privado, nº 41, Janeiro/Março, 2013, pp. 24/25.
[2] Daí não a ter integrado na área de nenhum desses dois prédios.
[3] Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 3.ª ed., Almedina, Coimbra - 1990, pp. 530.
[4] Cfr., inter alia, os Acs. do STJ de 22.042004 (Ferreira de Almeida), proc. 04B987, da RG de 17.09.2013 (António Santos), proc. 594/05.4TBCBT.G2 e da RC de 21.01.2014 (Teles Pereira), proc. 3255/09.1TBFIG.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[5] Proc. 117/13.1.TBPNF.P1, in www.dsgsi.pt.